A hercúlea tarefa de construir doutrinária e jurisprudencialmente o “Estado Defensor” no Brasil tem reunido ao longo da última década incessantes esforços por parte de todas as Defensorias Públicas, mas o mérito e o vanguardismo da Defensoria Pública do Amazonas sempre foram de clareza solar, sobretudo em razão da inigualável tese do custus vulnerabilis capitaneada por Maurilio Casas Maia.

 

A singularidade do projeto constitucional para a Defensoria Pública tem sido, é, e continuará sendo objeto de constante debate, o que não raras vezes depende do cenário jurídico-hermenêutico dos tribunais locais e superiores. Mas fato é que com o reconhecimento e fortalecimento da autonomia e independência funcional pelo Supremo Tribunal Federal, a almejada paridade de armas parece estar cada vez mais próxima de deixar de ser uma utopia.

 

Com o advento da EC 80/2014, a Defensoria Pública fortaleceu-se como instituição nacional voltada à promoção de direitos humanos a partir do momento em que à missão defensorial foi atribuída eficácia declaratória e expressa alterando a exegese do artigo 134, não obstante todo o trabalho já desempenhado anteriormente.

 

Guardiã dos vulnerabilizados

A atual visão da instituição passa pelo reconhecimento da atuação em favor de pessoas vulnerabilizadas, seja de forma individual, coletiva ou como interveniente (custus vulnerabilis), o que ratifica ser a Defensoria Pública verdadeiro “contrapoder” freando eventuais abusos praticados por outras instituições, inclusive em contrassenso, dentro do próprio sistema de Justiça.

 

Paradigmaticamente, o STF, por meio de decisão monocrática do relator ministro Luís Roberto Barroso nos autos dos embargos de declaração na ADPF 709, acolheu a tese do custus vulnerabilis, possibilitando que a Defensoria Pública ingresses em ações, na condição de guardiã de grupos ou de pessoas em situação de vulnerabilidade, ainda que haja advogado constituído.

 

Embora Maurilio Casas Maia tenha construído doutrinariamente o custus vulnerabilis em 2014 e o Código de Processo Civil de 2015 tenha o acolhido no procedimento das ações possessórias (artigo 554, §1º), contando com a admissão em tribunais por todo o país, inclusive no STJ, até o momento não havia um delineamento das condições para que a intervenção defensorial em nome próprio efetivamente ocorresse.

 

Acertadamente, como bem pontuou o relator do EDecl. ADPF 790:

 

“(…) o instituto não é um fim em si mesmo, tampouco deve ser manejado de forma banalizada ou voluntarista, a depender dos interesses pessoais ou corporativos de quem subscreve a peça. Ao revés, está a serviço da missão constitucional da Defensoria Pública e dos valores que o art. 134, caput, da CF buscou proteger: a democracia, os direitos humanos e a igualdade. Assim, embora a instituição tenha autonomia funcional para avaliar quando requerer habilitação, a justificação do ingresso deverá estar ancorada em sua própria razão de ser: a defesa dos direitos das pessoas necessitadas e a especial relevância do feito para a sua consecução.”

 

Assim, fixaram-se os seguinte requisitos para a intervenção defensorial na condição de custus vulnerabilis: (1) a vulnerabilidade dos destinatários da prestação jurisdicional; (2) o elevado grau de desproteção judiciária dos interesses que se pretende defender; (3) a formulação de requerimento por defensores com atribuição para a matéria; e (4) a pertinência da atuação com uma estratégia de cunho institucional, que se expressa na relevância do direito e/ou no impacto do caso sobre um amplo universo de representados.

 

Nova situação

A jurisprudência, sobretudo a paulista, é cautelosa e caminha cadenciadamente para reconhecer a figura do custus, sendo os 34 acórdãos sobre o tema perante o repositório do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo voltados quase que exclusivamente a demandas possessórias.

 

Ainda que a atuação coletiva seja mais facilmente aferível na prática, lides entre pessoas físicas singularmente consideradas também são de igual possibilidade, como a inédita decisão da 3ª Câmara Cível do TJ-AM em julho de 2021, que houve por admitir um recurso da DPEAM em uma ação de divórcio para resguardar os direitos de uma mulher em situação de vulnerabilidade processual.

 

Através da apelação da Defensoria Pública amazonense, preservou-se o direito à manutenção do nome da ex-consorte revel, que por não ter havido qualquer requerimento de sua alteração nos autos, gerou uma sentença que invadiu indevidamente a esfera privada dela, atingindo direitos existenciais e de personalidade.

 

Sendo o Direito de Família área eminentemente individual, o caso poderia ser isolado e as hipóteses de identificação da intervenção defensorial via custus vulnerabilis poderia, a primeiro olhar, ser mais árdua.

 

É sabido, porém, que pela leitura do artigo 178, II do Código de Processo Civil, o Ministério Público deve intervir em todas as ações em que envolva o interesse de incapaz. Mas, e se há advogado nos autos que, desidiosamente, não informou ser o seu cliente incapaz? Não só, e se em ação de inventário esse incapaz, desconhecido pelo juízo originário e pelo parquet, está com os seus direitos hereditários lesados? A quem caberá a sua salvaguarda?

 

Humildemente, pensa essa autora estarmos diante de uma nova situação que poderia dar azo a uma cota defensorial na condição de custus vulnerabilis para informar a existência do incapaz e solicitar a intervenção ministerial em seu favor.

 

Guardiã das famílias vulneráveis

O professor Cássio Scarpinella Bueno, aliás, vem sustentando a possibilidade de existir interesse institucional da Defensoria Pública também em processos individuais. Segundo ele:

 

“(…) o ‘fiscal dos direitos vulneráveis’, deve atuar, destarte, sempre que os direitos e/ou interesses dos processos (ainda que individuais) justifiquem a oitiva (e a correlata consideração) do posicionamento institucional da Defensoria Pública, inclusive, mas não apenas, nos processos formadores ou modificadores dos indexadores jurisprudenciais (…). Trata-se de fator de legitimação decisória indispensável e que não pode ser negada a qualquer título” (p. 219, g.n.)

 

Assim, na área do Direito de Família, surge paulatinamente a figura da Defensoria Pública enquanto guardiã das famílias vulneráveis – analisada em obra recente por Helom Nunes. Do mesmo modo, autores como Conrado da Rosa vem debatendo a temática em tal área, especialmente à luz da teoria das vulnerabilidades processuais de Fernanda Tartuce.

 

Vale lembrar, ainda que não fosse necessário, a dicção do enunciado 9 do I Colóquio Amazonense da Advocacia e da Defensoria Pública: “O membro da Defensoria Pública possui autonomia e independência funcional para definir se há ou não hipótese de intervenção custos vulnerabilis, devendo tão somente se abster de manifestações gravosas ao vulnerável presente no processo e que ensejou sua intimação para eventual atuação”.

 

Significa dizer que, de forma alguma, a intervenção da Defensoria Pública na condição de custus vulnerabilis representará um desprestígio à atividade do representante postulatório, o que em casos de requerimento pelo próprio causídico deve ser visto como um instrumento de advocacia estratégica (segundo enunciado 03 do mesmo Colóquio).

 

Mas sim, como um valioso instrumento hábil a construir uma decisão efetivamente justa e alicerçada na participação ativa das partes sob um crivo da igualdade material, formal e processual.

 

Coragem

Por diversas formas, a Defensoria Pública como expressão e instrumento do regime democrático, tem como função precípua a promoção da inclusão satisfatória de pessoas vulnerabilizadas. Entretanto, apenas através de um aguerrido posicionamento institucional é que a jurisprudência será construída e efetivamente fomentará casos, individuais e coletivos, para vislumbrarmos a figura do custus vulnerabilis.

 

Que haja sobejante coragem dos membros e nenhum esmorecimento, para que, enfim, a experiência da desigualdade e insensibilidade não se repita a outros jurisdicionados vulnerabilizados.

 

 

 

Referências

 

AMAZONAS. DEFENSORIA PÚBLICA DO AMAZONAS. Custos Vulnerabilis: tese amazonense é aceito no Supremo Tribunal Federal (STF). Disponível em: https://defensoria.am.def.br/2023/10/20/custos-vulnerabilis-tese-amazonense-e-aceita-do-supremo-tribunal-federal-stf/. Acesso em: 22 Jul. 2024.

 

BARROS, Gabriela Wanderley da Nóbrega Farias de. O Estado-defensor e os litígios possessórios multitudinários: reflexões sobre atuação da defensoria pública no contexto do Art. 554, §1º do CPC. Revista da Defensoria Pública da União, Distrito Federal, n. 17, Jan.-Jun. 2022. Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/166750/estado_defensor_litigios_barros.pdf. Acesso em: 22 Jul. 2024.

 

CASAS MAIA, Maurilio. Custos Vulnerabilis constitucional: o Estado Defensor entre o REsp nº 1.192.577-RS e a PEC nº 4/14. Revista Jurídica Consulex, Brasília, n. 417, jun. 2014, p. 55-57.

 

CASAS MAIA, Maurilio. Luigi Ferrajoli e o Estado Defensor enquanto magistratura postulante e Custos Vulnerabilis. Revista Jurídica Consulex, Brasília, n. 425, Out. 2014, p. 56-58.

 

CASAS MAIA, Maurilio (Org.). (Re)pensando Custos Vulnerabilis e Defensoria Pública: Por uma defesa emancipatória dos vulneráveis. São Paulo: Tirant Brasil, 2021.

 

CONSULTOR JURÍDICO. Referência para decisões: Leia os enunciados aprovados sobre custos vulnerabilis em colóquio no Amazonas. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-05/leia-enunciados-aprovados-custos-vulnerabilis-am/. Acesso em: 22 Jul. 2024.

 

IBDFAM. Ineditismo: TJAM admite Defensoria como custos vulnerabilis em ação de divórcio. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/8736/Ineditismo%3A+TJAM+admite+Defensoria+como+custos+vulnerabilis+em+a%C3%A7%C3%A3o+de+div%C3%B3rcio. Acesso em: 22 Jul. 2024.

 

NUNES, Helom César da Silva. Custos Vulnerabilis Familiae: Defensoria Pública e a proteção emancipatória das Pessoas Vulneráveis. São Paulo: D’Plácido, 2023.

 

ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 915-918.

 

SCARPINELLA BUENO, Cássio. Curso sistematizado de Direito Processual Civil. V. 1: 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

 

TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

 

Fonte: Conjur

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