O segundo semestre do ano de 2024 foi marcado por uma forte reação do Congresso Nacional à atuação do STF, considerada, por parte da classe política, exagerada, por supostamente usurpar competências do Poder Legislativo.

 

O tema não é novo. Já a intensidade da reação, sim.

 

O chamado “pacote anti-STF” contêm diversas medidas. Uma, em particular, é objeto de análise nesta coluna: a limitação de decisões monocráticas pelos Ministros do STF, objeto da PEC 08/211.

 

Decisões monocráticas são aquelas proferidas por um único julgador, ao contrário das decisões colegiadas, que envolvem a participação de diferentes magistrados.

 

A PEC 08/2021, já aprovada pelo Senado2, teve seu texto chancelado pela CCJ da Câmara dos Deputados. Aguarda a deliberação pelo plenário da Câmara, em dois turnos votação3.

 

Em linhas gerais, visa a proibir decisões individuais por parte de Ministros do STF, que suspendam a eficácia de leis ou atos dos presidentes dos poderes Executivo e Legislativo.

 

Admite, excepcionalmente, decisões monocráticas proferidas durante o recesso do STF, em casos de grave urgência ou risco de dano irreparável, com prazo de 30 dias para o julgamento colegiado, após o fim do recesso.

 

Ela determina, ainda, prazo de seis meses para o julgamento de ações que questionem a constitucionalidade de leis após a concessão de medida cautelar, garantindo prioridade na pauta do plenário do STF após esse período.

 

A reflexão diz respeito à motivação política que embasa a alteração da CF/88, em juízo de ponderação com sua pertinência e constitucionalidade.

 

Inegavelmente, estamos diante de um quadro de revanchismo. As medidas do chamado pacote anti-STF, inclusive a que limita as decisões monocráticas dos Ministros, situam-se antes em uma relação de disputa de poder, do que no sentimento de aprimoramento da jurisdição constitucional.

 

Isto não significa que esta medida seja necessariamente ruim, mas revela que as intenções que a permeiam podem não ser as melhores.

 

De fato, o Congresso Nacional vem propondo restrições às ações do STF como forma de retaliação política ao necessário freio que o Tribunal vem tentando, sem grande sucesso, diga-se de passagem, impor à nociva sistemática das emendas parlamentares.

 

Em inúmeras ocasiões neste espaço venho apontando que o Legislativo Federal vem se apropriando, de modo desproporcional, de fatias do orçamento público, em completa violação aos princípios constitucionais da Administração, em particular da transparência, rastreabilidade e eficiência4.

 

Infelizmente, o STF não vem obtendo êxito em eliminar a nociva prática das emendas parlamentares do jogo político. É bem verdade que o Ministro Flávio Dino, em correta decisão, restringiu a prática5. Contudo, é provável que o Congresso, por meio de artifícios diversos, volte a contornar as limitações, como vem fazendo nos últimos anos.

 

O Congresso Nacional colocou em pauta propostas de diferentes calibres, algumas razoáveis, como a PEC 08/21, que trata dos limites às decisões monocráticas e outras nada razoáveis ? flagrantemente inconstitucionais ? como a PEC 28/24, que permite ao Congresso suspender decisões do STF6, que não será objeto de análise nesta oportunidade.

 

Está-se diante de um típico jogo de poder: colocam-se diversas propostas no mesmo caldo, para garantir a aprovação da mais razoável e, em troca de evitar a aprovação das propostas inconsequentes, receber do STF maior condescendência em assuntos de interesse direito dos parlamentares, como o tema das emendas parlamentares ao orçamento.

 

Será que o STF irá morder a isca?

 

Cabe a nós, neste debate, apontar o que é razoável aprovar, ainda que dentro de um quadro de revanchismo – o que nunca é o ideal, logicamente – e o que não é razoável aprovar. Um típico juízo de ponderação, entre vantagens e desvantagens.

 

A par do quadro de revanchismo, a PEC que restringe as decisões monocráticas dos ministros do STF tem aspectos positivos, que não ferem a CF/88 e tendem a aprimorar a jurisdição constitucional.

 

Nos últimos anos, o número de decisões monocráticas proferidas no STF aumentou, consideravelmente. Pode-se afirmar que se tornaram rotina no Tribunal. Estatísticas oficiais confirmam esta realidade.

 

Para se ter uma ideia da dimensão do tema, no ano de 2023 o STF proferiu 106.028 decisões, sendo 18.191 colegiadas e 87.837 monocráticas7.

 

No ano de 2024, até o mês de outubro, foram 93.337 decisões, sendo 17.375 colegiadas e 75.962 monocráticas8.

 

Os dados falam por si só: Têm prevalecido, no STF, decisões individuais em detrimento das colegiadas, nos mais diversos temas.

 

A rigor, a riqueza de um Tribunal reside no princípio da colegialidade, marcado pelo debate que contempla diferentes visões sobre determinados temas constitucionais. Considerando que as decisões do STF têm grande relevância para o país, o risco de erro é sempre maior quando se decide isoladamente.

 

Assim, forte na convicção de que a base da autoridade do Tribunal Constitucional vive na força de convencimento (Überzeugunskraft) dos seus argumentos jurídicos, que só podem, em contrapartida, ser derivados da CF/889, tem-se presente que serão tão mais legítimos quanto mais forem construídos por decisões conjuntas entre seus membros e não individualmente.

 

É por esta razão que a maioria dos tribunais constitucionais mundo afora não emprega, como regra, o recurso às decisões monocráticas, ao contrário do que vem fazendo, progressivamente, o STF.

 

Restringir decisões monocráticas, ao contrário do que pensam alguns juristas e políticos, é um mecanismo que fortalece o STF e não o enfraquece, pois o tribunal, por sua natureza, é um órgão colegiado. A eficácia contra todos e o efeito vinculante das suas decisões, como prega a própria CF/88 (art. 102, § 2.º ), provêm do plenário

 

Pode-se afirmar que supremo, na acepção da palavra, é apenas o órgão máximo do tribunal ? o plenário, composto por 11 julgadores. É justamente o princípio da colegialidade que consagra a precedência das decisões coletivas do tribunal, o que se revela como maior fator de legitimação dos julgamentos da própria Corte.

 

Há muito se demanda maior disciplina do STF no emprego das decisões monocráticas que, constantemente, são empregadas de forma abusiva. Não raro, decisões individuais vêm sendo empregadas por diferentes julgadores como meio de bloqueio, para que determinados temas não avancem no tribunal.

 

Um artifício técnico para relativizar, no mínimo, o próprio princípio da colegialidade do órgão julgador.

 

Não se nega que avanços foram obtidos, por iniciativa do próprio tribunal, por ocasião da presidência da ministra Rosa Weber (emenda regimental 58/22), que limita em 90 dias os pedidos de vista e estabelece o mesmo prazo para apreciação pelo plenário, das medidas cautelares (monocráticas)10.

 

Todavia, é inegável que a PEC 08/2021 representa mais um passo no fortalecimento do princípio da colegialidade, tão caro à jurisdição constitucional.

 

De outra banda, três argumentos costumam ser apresentados para combater a PEC 08/21.

 

O primeiro sugere que a PEC seria inconstitucional, por ter um vício de origem, pelo fato de que a CF/88 exigiria que as propostas de alteração das regras do Judiciário devessem ser apresentadas apenas pelo próprio STF (hipótese de iniciativa privativa no processo legislativo), para depois serem debatidas pelo Congresso Nacional.

 

Neste sentido, o suposto vício de origem impediria que mudanças nos ritos de julgamento dos magistrados fossem propostas por parlamentares. A questão diz respeito a procedimentos processuais.

 

Por vários motivos, o argumento não resiste à melhor análise.

 

Primeiro, porque em matéria de emendas constitucionais o tema de vício de origem não costuma se colocar, já que não integra o conjunto das chamadas cláusulas pétreas da CF/88. Matérias de iniciativa do processo legislativo não representam, por si só, risco de abolição da separação dos poderes.

 

A hipótese de o Congresso Nacional impor restrições às decisões monocráticas do STF passa longe, e muito, de qualquer interferência na prerrogativa do Tribunal em reconhecer a inconstitucionalidade de atos do poder público.

 

A própria CF/88, em passagem relevante (art. 97), consagra a regra de reserva de plenário (full bench), oriunda do Direito norte-americano, que exige quórum de maioria absoluta dos tribunais para reconhecer a inconstitucionalidade11.

 

Dito de outro modo, o Congresso Nacional não estaria suprimindo do STF a prerrogativa de dizer se um ato é, ou não, inconstitucional. Apenas está exigindo que o faça por maioria absoluta dos seus membros, como exige o próprio art. 97 da CF/88.

 

Retirar do Congresso Nacional a prerrogativa de definir, em termos processuais, o quórum para que uma decisão jurídica seja tomada, implica incompreensão profunda do que significa, de fato, o fundamental princípio da separação dos poderes. Algo que Montesquieu jamais defenderia.

 

Vale dizer: exigir um quórum de maioria absoluta para suspender atos dos demais poderes não impede o tribunal de fazê-lo, com poder decisório e última palavra. Não há falar, pois, em abolição da separação dos poderes.

 

Há que se lembrar o significado da palavra abolir, que é suprimir, eliminar, remover. Ações que não estão em jogo, por força da eventual restrição à prática de decisões monocráticas pelo STF.

 

Suprimir competência do STF significaria privar-lhe do poder de decidir, o que não é o caso.

 

Nesta linha, como lembra o próprio STF, o sistema constitucional de proteção das cláusulas pétreas não impede que o regime das matérias por elas garantidas venha a ser modificado. Impede, apenas, que venha a ser suprimido, abolido.

 

Portanto, tais cláusulas não impõem a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege12. O chamado conteúdo essencial da garantia de separação dos poderes.

 

Como se pode sugerir que exigir quórum de maioria absoluta para declarar a inconstitucionalidade de atos do poder público, ainda que de forma provisória, significaria violar o núcleo essencial da separação dos poderes?

 

Não há, portanto, que cogitar abolição da separação dos poderes, razão pela qual o argumento de que haveria vício de origem na iniciativa da PEC 08/21 não se mostra razoável.

 

Entendimento contrário imporia ao STF o ônus de assumir para si a iniciativa para encaminhar ao Congresso Nacional todo e qualquer projeto de lei que modificasse regras processuais, o que se mostra, de todo, irrazoável.

 

Repita-se: A PEC em questão não diz como o STF deve julgar, apenas exige quórum de maioria absoluta para suspender um ato dos demais poderes, no período de funcionamento regular do Tribunal.

 

O segundo argumento aponta que a matéria seria de competência regimental do STF e não do Congresso Nacional.

 

Igualmente, não merece prosperar, até por uma questão elementar: o regimento interno do Tribunal não pode se sobrepor à lei específica, muito menos a uma regra constitucional. Em matéria de regras processuais, não cabe a qualquer Corte ignorar as normas vigentes, ainda mais quando sobre elas não paira juízo de inconstitucionalidade.

 

Neste ponto é bom recordar que já existe lei vigente, que proíbe a prática de decisões monocráticas pelos Ministros do STF, em controle concentrado de constitucionalidade, fora do período de recesso do Tribunal.

 

Com efeito, a lei 9.868/1999, que disciplina o processamento das ações diretas no STF, já prevê, há muito tempo, que salvo no período de recesso, a medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal (art. 10). Idêntica previsão ocorre em face do processamento das ações diretas de inconstitucionalidade por omissão (art. 12-F) e das ações declaratórias de constitucionalidade (art. 21)13.

 

Uma lei que vige há cerca de 25 anos, que vêm sendo solenemente ignorada pelo STF, a partir do seu regimento interno, e que jamais despertou qualquer objeção consistente de inconstitucionalidade por vício de iniciativa, quando da sua proposição ao Congresso Nacional (teve origem no Poder Executivo)14.

 

Esta lembrança abre espaço para outra reflexão: por força da vigência da lei 9.868/1999, a PEC das decisões monocráticas não seria, sequer, necessária. Ocorre que, por diversos fatores, vem se desenvolvendo uma indesejável cultura no Brasil, de que se a matéria não está constitucionalizada, ela pode ser ignorada. Trata-se de visão nefasta, que vem contribuindo não apenas para fomentar a insegurança jurídica, como para inchar, ainda mais, uma Constituição que já nasceu analítica e prolixa, com as externalidades negativas daí inerentes.

 

Por fim, rebato o terceiro argumento. Para os críticos da PEC 08/21, a prática corriqueira das decisões monocráticas constitui um imperativo da realidade para o STF ter funcionamento regular, pois seria inviável que todas as decisões fossem tomadas pelo plenário da Corte.

 

Esta afirmação foi feita pelo próprio ministro Barroso, no exercício da presidência do Tribunal, no encerramento do ano judiciário de 202315.

 

Invariavelmente, este é o argumento mais difícil de combater. As estatísticas de julgamento de ações pelo STF confirmam que, dificilmente, outro Tribunal Constitucional no mundo possua carga de trabalho semelhante, com apenas onze julgadores.

 

O problema é que esta constatação ofusca um dos grandes problemas institucionais que o STF enfrenta, por força de uma configuração constitucional que eu considero equivocada: o excesso de matérias abarcadas pela CF/88 e o excesso de competências de julgamento por ela diretamente conferidas ao Tribunal.

 

Neste sentido, penso que ao invés de o STF combater iniciativas parlamentares para restringir o número de decisões monocráticas, deveria atacar as causas do problema e não meramente suas consequências.

 

Há que se provocar um sério e técnico debate em torno de uma reforma constitucional, que possa desafogar o Tribunal.

 

Este sim, é um imperativo de sobrevivência da capacidade funcional do STF, assunto que deve ser objeto de reflexão específica.

 

Caso contrário, encontraremos justificativas para manter uma disfuncionalidade, por força da manutenção das causas que dão azo às disfuncionalidades.

 

Neste diapasão, quando se trata do STF, a afirmação de que não se deve mexer em instituições que estão funcionando e cumprindo bem a sua missão, por interesses políticos e circunstâncias eleitorais, deve ser compreendida e interpretada com as devidas cautelas e ressalvas16.

 

Colaborar para o fortalecimento da jurisdição constitucional e do próprio Estado democrático de direito é missão irrenunciável por parte de qualquer constitucionalista.

 

A crítica, quando bem fundamentada e apresentada, pode ser uma grande aliada do STF e jamais sua inimiga.

 

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1 Disponível aqui.

 

2 Disponível aqui.

 

3 Disponível aqui.

 

4 Disponível aqui.

 

5 Disponível aqui.

 

6 Disponível aqui.

 

7 Disponível aqui.

 

8 Disponível aqui.

 

9 BENDA, Ernst. Das Bundesverfassungsgericht im Spannungsfeld von Recht und Politik. In: Zeitschrift für Rechtspolitik (ZRP), n. 77, Heft 1, 10. Jahrgang, (Hrsg. von Rudolf Gerhardt und Martin Kriele). München: Beck, 1977, p. 5.

 

10 Disponível aqui.

 

11 Art. 97 CF. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.

 

12 Disponível aqui.

 

13 Disponível aqui.

 

14 Disponível aqui.

 

15 Disponível aqui.

 

16 Disponível aqui.

 

Fonte: Migalhas

 

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