A regulamentação da arbitragem tributária e aduaneira, em tramitação no Congresso Nacional, é uma tentativa de dar celeridade às demandas sobre esses temas e, consequentemente, promover a desjudicialização. Há, no entanto, muitas dúvidas sobre a efetividade desse mecanismo, especialmente porque o Estado estará com a faca e o queijo nas mãos: caberá a ele estabelecer o rol de situações em que o procedimento é aceitável e também recusar a arbitragem se entender que ela não é conveniente.

Essas preocupações foram expostas por especialistas em Direito Tributário e Aduaneiro e também em arbitragem ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

A regulação desse tipo de arbitragem é discutida no Projeto de Lei 2.486/2022, proposto pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que preside o Senado. O texto partiu de uma comissão de juristas instalada por ele em fevereiro de 2022, em iniciativa conjunta com o então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux.

Depois de aprovado pelo Senado, em junho deste ano, o PL avançou na Comissão de Finanças e Tributação (CFT) da Câmara no último dia 11, quando foi encaminhado para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da casa.

Se for aprovado pela CCJ da Câmara sem alterações, o texto seguirá direto para sanção presidencial, já que tramita em caráter conclusivo, um rito que dispensa a apreciação pelo Plenário, a não ser que haja recurso assinado por ao menos 52 deputados solicitando isso.

O texto prevê que a arbitragem deverá ser requisitada pelo contribuinte, que terá de assumir antecipadamente os custos do procedimento. Se a sentença arbitral condenatória impuser obrigação pecuniária ao Estado, esses gastos serão devolvidos mediante precatório ou, nos termos de legislação específica, por meio de compensação de débitos tributários.

Não poderão ser arbitradas as dívidas que tenham sido reconhecidas por ato inequívoco, ainda que extrajudicial, e sobre as quais a exigibilidade tenha sido objeto de decisão judicial com resolução de mérito transitada em julgado.

Além disso, o rol de hipóteses nas quais a arbitragem será admitida ficará a cargo de cada ente federativo, que poderá editar ato administrativo próprio sobre o tema. Quando solicitada a arbitragem, o Estado ainda terá autonomia para decidir se a aceita ou não. Em caso de negativa, deverá fazer isso de maneira devidamente motivada.

Isonomia e discricionariedade

Para Augusto Fauvel de Moraes, sócio-fundador do Fauvel Moraes Advogados, escritório especializado em Direito Tributário e Aduaneiro, a adesão à arbitragem tributária e aduaneira vai depender do nível de discricionariedade na análise dos pedidos de mediação e do rol de hipóteses de cada ente — ou seja, se o Estado permitirá levar para a arbitragem casos que interessam também aos contribuintes, e não apenas a ele mesmo.

“A partir do momento em que se torna um ato discricionário, cabe, mediante conveniência e oportunidade, ao fiscal deferir ou não. Mas isso cria uma insegurança jurídica. Qual será o critério? Para que seja alcançado o objetivo da norma e exista imparcialidade, tem de haver um ato vinculado e taxativo. Ou seja, as possibilidades ficariam previstas em lei, e o ato administrativo seria apenas para entender se estão preenchidos os requisitos.”

“Se não for assim, o ato administrativo pode decidir o que quer ou não, o que lhe interessa. Cria-se uma insegurança jurídica e um desvio de finalidade da própria norma. Ela não atinge o objetivo da natureza jurídica inicial”, afirma o tributarista.

O advogado Carlos Henrique Machado avalia que, havendo um rol taxativo formulado por cada ente federativo, pode faltar isonomia entre eles, problema potencializado pelo fato de o Brasil não ter uma instituição centralizadora da arbitragem — cada ente deverá credenciar previamente as câmaras de arbitragem habilitadas à mediação. Em Portugal, país que inspirou a lei brasileira, isso é uniformizado pelo Centro de Arbitragem Administrativa (Caad).

“Como a arbitragem é um mecanismo consensual, existe uma legislação lá que autoriza o Poder Executivo, por meio de uma portaria de vinculação, a aderir a determinadas matérias em arbitragem. Isso se transforma em um direito potestativo do contribuinte, que, diante da manifestação prévia do Estado, decide ou não ir para a arbitragem. Se o contribuinte decide ir, não tem como o Estado voltar atrás, diferentemente de como tem sido desenhado o projeto brasileiro, que prevê uma decisão administrativa antes de ser constituída a arbitragem”, explica ele.

“Em Portugal, existe esse órgão especializado, que, em tese, tem um alinhamento das decisões. Aqui no Brasil vai ser um pouco aleatório, haverá o risco de um tribunal do norte do país ter decisões diferentes de um outro do sul, você vai querer consensualizar onde eventualmente lhe for mais favorável”, diz Machado, que é professor da Universidade Católica de Brasília e do Unicesusc, além de sócio da banca Marchiori, Sachet, Barros e Dias Advogados.

Celeridade e custos

José Eduardo Tellini Toledo, que é vice-presidente executivo do Instituto Brasileiro de Arbitragem e Transação Tributárias (Ibatt), diverge de ambos e diz que a promessa de celeridade da arbitragem será o maior atrativo para as partes, além da perspectiva de recebimento de créditos pelo Estado.

O projeto de lei de regulamentação prevê prazo máximo de 12 meses entre a instalação da arbitragem e o fim da fase de instrução, que pode ser prorrogado por igual período. Encerrado esse prazo, a sentença deverá sair em até 60 dias úteis.

“É um prazo mais do que suficiente para resolver um conflito tributário. Ter a previsibilidade de uma decisão final de determinado conflito é fundamental, tanto para o Estado, quanto para os contribuintes.”

Toledo afirma ainda que o projeto acerta ao estabelecer que a sentença arbitral não é passível de recurso, o que dá maior segurança a ela, e que o contribuinte poderá escolher um dos três árbitros da mediação, o que garante que a matéria estará sob análise especializada — o Estado indicará um outro árbitro e o terceiro será designado por consenso entre as partes. Além disso, o advogado argumenta que o recolhimento inicial de custas não é um desestímulo.

“Isso não é diferente em processos judiciais, onde o contribuinte é obrigado a pagar as respectivas custas e despesas ao interpor uma medida judicial”, diz o especialista, que é também sócio da banca Toledo Sociedade de Advogados.

Carlos Henrique Machado contra-argumenta lembrando que, na arbitragem tributária portuguesa, há opções mais baratas para quem contesta o débito: “No Caad, há a possibilidade de submissão a um tribunal singular, em que o árbitro é indicado pelo próprio Caad, com taxas mais módicas e atrativas. Se o contribuinte tiver uma questão mais intrincada e quiser designar um árbitro também, já para um tribunal com três designados, muda totalmente o custo.”

Augusto Fauvel de Moraes, por sua vez, diz que o prazo de duração da arbitragem precisaria ser encurtado para atrair a adesão dos sujeitos passivos: “As questões aduaneiras exigem celeridade, principalmente quando se tratam de mercadorias perecíveis e em razão dos altos custos de armazenagem e demurrage”.

Desjudicialização

O advogado afirma ainda que, se a intenção com a arbitragem é promover a desjudicialização, a estratégia para alcançar essa meta deveria ser outra: modernização e simplificação das normas aduaneiras e tributárias.

“Avançamos muito com a criação recente de turmas especializadas em Direito Aduaneiro no Carf (Conselho de Administração de Recursos Fiscais), que têm feito um trabalho excepcional”, diz Fauvel de Moraes.

“O Cejul (Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras), apesar de não respeitar a paridade e a Convenção de Quioto, tem também desempenhado um relevante papel, garantindo o duplo grau de jurisdição nas penas de perdimento. Mas ele pode ser aperfeiçoado em relação à composição e ao efeito suspensivo dos recursos”, completa ele.

Machado diverge do colega nesse ponto, por entender que a arbitragem pode, sim, ser uma boa aposta, mas não nos termos esboçados pelo Congresso até aqui. Ele diz ver um açodamento na tramitação do PL, o que parece atender a interesses alheios aos dos contribuintes, em razão, por exemplo, do mercado que se abre para a advocacia tributária.

“Existe o lobby de alguns setores, porque se cria um universo de fuga. O contribuinte que tenha um profissional gabaritado com um entendimento diferente sobre algo que sabidamente vá perder na Justiça busca uma alternativa.”

“A arbitragem não deveria se transformar em uma rota de fuga em relação ao que não se alcança na Justiça, deveria ser um ambiente em que a especialidade dos árbitros e a celeridade justifiquem a saída do Judiciário. Há questões que se discutem no Carf, por exemplo, como de classificação de produtos, que transcendem o entendimento jurídico. Em casos assim, um tribunal arbitral poderia permitir a colaboração de outros profissionais. Há potencialidades diferentes do Direito mais estrito nesse ambiente arbitral. Mas esse não é o caminho que tem sido adotado”, diz Machado.

Clique aqui para ler o projeto
PL 2.486/2022

Fonte: Conjur

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