Questões envolvendo família muitas vezes podem envolver situações delicadas, especialmente quando essas questões dizem respeito a patrimônio, herança e testamento. Como sempre destacamos aqui, em se tratando de sucessão/transmissão de herança a igualdade de direitos entre os filhos deve ser rigorosamente observada, porém não é incomum que em determinados casos, queira o genitor beneficiar um filho diferentemente em relação aos demais, seja designando para esse algumas vantagens especificamente, seja lhe deixando parcela maior do patrimônio. A ideia não é estranha ao Direito onde, seguindo texto atribuído ao ilustre Rui Barbosa, “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam”.

Importa compreender inicialmente que, por mais que todos os filhos sejam, por exemplo, de mesmo pai e mesma mãe, tendo inclusive, pelo menos em tese, a mesma criação, nenhuma garantia terão os pais que todos eles serão pessoas idênticas, nos mais variados aspectos, inclusive em seus pensamentos, tratamento e cuidados com os genitores. Nesse aspecto, pode ser muito importante saber se pode ser possível e principalmente legal, do ponto de vista do Direito Sucessório, que o genitor possa beneficiar de modo diferente e mais vantajoso um filho em detrimento dos demais, de modo inclusive que essa vantagem por si só (como por exemplo, o recebimento de parcela maior da herança) não possa ser anulada no futuro.

A resposta a essa indagação reside no equilíbrio que o Direito Sucessório estabelece entre a autonomia da vontade do testador e a proteção conferida aos herdeiros necessários. O TESTAMENTO, como ato de última vontade, é o instrumento que prestigiando a ideia de planejamento sucessório, permite, dentro dos limites legais, que o titular do patrimônio possa definir uma destinação/divisão diversa daquela que seria imposta pela sucessão legítima (quando o sujeito falece sem deixar testamento). Essa liberdade conferida pelo Código Civil sofre limitações pelo mesmo Código, como por exemplo, a legítima que pertence aos herdeiros necessários (art. 1.845 e 1.846 do CCB).

Nos termos do citado artigo 1.845, são herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge (aqui é preciso incluir também o(a) companheiro(a) deixado(a) pelo(a) “de cujus”). Para essas pessoas a Lei assegura, a título de “legítima”, o direito a, no mínimo, 50% do patrimônio deixado pelo falecido, calculado sobre o valor dos bens existentes na abertura da sucessão, abatidas as dívidas e as despesas do funeral etc., nos termos dos arts. 1.846 e 1.847 do CC. Os outros 50% constituem a “porção disponível”, sobre a qual o testador possui PLENA LIBERDADE para dispor da maneira que lhe aprouver, podendo, inclusive, destiná-la integralmente a um único herdeiro necessário – como um(a) filho(a) preferido(a) – , a um terceiro ou a uma Instituição ou Fundação, por exemplo.

Por Lei, o TESTAMENTO pode ser formalizado por duas vias principais: o Testamento Público, lavrado por qualquer Tabelião em Cartório de Notas, e o Testamento Particular, elaborado pelo próprio testador, ou por terceiro a seu rogo, e lido perante três testemunhas. Ambos os formatos possuem A MESMA VALIDADE JURÍDICA, desde que observadas as solenidades legais específicas para cada modalidade (arts. 1.864 e 1.876 do CC). Dada a complexidade das regras e o risco de nulidade por vício formal, é de suma importância a assistência de um Advogado Especialista em Direito Sucessório. Este profissional garantirá a conformidade do ato com a lei e orientará o testador na estruturação da partilha para que sua vontade seja efetivada sem futuras contestações judiciais, inclusive sugerindo, se for o caso, outras medidas que possam ser mais efetivas que o Testamento (como por exemplo, uma Doação com Reserva de Usufruto e outras cláusulas restritivas – ou ainda uma combinação de ferramentas jurídicas alinhadas com o caso concreto e a vontade do titular dos bens).

Outro aspecto de importância é compreender que o Testamento apenas produz efeitos após o óbito do testador/proprietário dos bens: com o falecimento, torna-se necessário instaurar um procedimento judicial específico, denominado “Ação de Abertura, Registro e Cumprimento de Testamento”. Nesta fase, o Poder Judiciário verificará a regularidade formal da cártula testamentária e a capacidade do testador no momento da sua lavratura. Somente após a sentença que ordena o seu cumprimento é que as disposições de última vontade se tornam exequíveis, sendo um pré-requisito para o início do procedimento de Inventário, seja ele judicial ou EXTRAJUDICIAL. O art. 446 do Código de Normas Fluminense autoriza expressamente a realização do Inventário Extrajudicial mesmo havendo Testamento válido deixado pelo(a) falecido(a):

“Art. 446. Diante da expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos da apresentação e cumprimento de TESTAMENTO válido e eficaz, sendo todos os interessados capazes e concordes ou, havendo incapazes, observada seção seguinte, poderá realizar-se o inventário e a partilha por escritura pública”.

Paralelamente ou subsequentemente à validação do testamento, deve ser processado o Inventário dos bens deixados pelo(a) falecido(a). É no inventário (judicial ou extrajudicial) que o patrimônio será efetivamente apurado, as dívidas pagas e os bens partilhados entre os herdeiros, observadas as disposições testamentárias. A partilha deverá respeitar fielmente os limites impostos pela lei: primeiramente, separa-se a meação do cônjuge, se houver e a depender do regime de bens; do patrimônio restante do falecido, 50% (a legítima) são divididos igualitariamente entre os herdeiros necessários, e os outros 50% (a porção disponível) são destinados conforme as cláusulas do testamento. Qualquer disposição testamentária que invada a legítima dos herdeiros necessários, por exemplo, é considerada uma “inoficiosidade” e será reduzida judicialmente ao limite legal.

Portanto, respondendo objetivamente à pergunta central: sim, é perfeitamente legal que uma mãe beneficie um filho com uma parcela maior de sua herança em detrimento dos outros, desde que tal liberalidade se restrinja à sua porção disponível, correspondente a 50% de todo o seu patrimônio, não ofendendo a legítima dos demais, assegurada por Lei. A inobservância desta regra fundamental acarreta a nulidade parcial do testamento naquilo que exceder o limite legal, garantindo assim a proteção mínima que a lei confere aos herdeiros necessários, como aponta didática decisão da Ministra do STJ, Nancy Andrighi que confirma a possibilidade do Testador, mesmo tendo filhos, dispor em Testamento sobre a totalidade do seu patrimônio, inclusive com divisão de percentuais entre filhos, mas sempre respeitando a legítima:

“STJ. REsp 2039541/SP. J. em: 20/06/2023. CIVIL. (…) DIREITO SUCESSÓRIO. INVENTÁRIO E TESTAMENTO. (…). IMPOSSIBILIDADE ABSOLUTA DE DISPOSIÇÃO SOBRE A LEGÍTIMA EM TESTAMENTO. (…) PARTE INDISPONÍVEL QUE PODERÁ CONSTAR DA ESCRITURA PÚBLICA DE TESTAMENTO, DESDE QUE NÃO HAJA PRIVAÇÃO OU REDUÇÃO DA LEGÍTIMA DOS HERDEIROS NECESSÁRIOS. POSSIBILIDADE DE O TESTADOR DISPOR SOBRE A ESTRUTURA DA SUCESSÃO EM VIDA, DESDE QUE RESGUARDADA A LEGÍTIMA PREVISTA EM LEI. DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA CERTA QUANTO AO DESEJO DO TESTADOR DE DISPOR DE TODO O SEU PATRIMÔNIO. HERDEIROS NECESSÁRIOS QUE FORAM CONTEMPLADOS COM TRÊS QUARTOS DO PATRIMÔNIO INTEGRAL. LEGÍTIMA RESPEITADA. TESTAMENTO VÁLIDO. INTERPRETAÇÃO QUE DESTINA AOS HERDEIROS TESTAMENTÁRIOS UM QUARTO DO PATRIMÔNIO INTEGRAL. POSSIBILIDADE. 1- Recurso especial interposto em 18/07/2022 e atribuído à Relatora em 23/11/2022. 2- Os propósitos recursais consistem em definir: (i) se há omissões relevantes no acórdão recorrido; (ii) se é válida a escritura pública de testamento que se refere a todo o patrimônio do autor da herança, desde que resguardada a legítima dos herdeiros necessários; e (iii) se a escritura pública de testamento, examinada semanticamente, deverá ser interpretada com a inclusão ou com a exclusão da legítima dos herdeiros necessários na base de cálculo que irá repercutir no percentual que cabe aos herdeiros necessários e aos herdeiros testamentários. (…) 4- Embora a interpretação, isolada e literal, do art. 1.857, § 1º, do CC/2002, sugira que a legítima dos herdeiros necessários não pode ser passível de disposição no testamento, esse dispositivo deve ser considerado em conjunto com os demais que regulam a matéria e que demonstram não ser essa a melhor interpretação da regra. 5- Não há óbice para que a parte indisponível destinada aos herdeiros necessários conste e seja referida na escritura pública de testamento pelo autor da herança, DESDE QUE isso, evidentemente, não implique em PRIVAÇÃO ou em REDUÇÃO dessa parcela que a própria lei destina a essa classe de herdeiros. 6- A legítima dos herdeiros necessários poderá ser referida no testamento porque é lícito ao autor da herança, em vida e desde logo, organizar e estruturar a sucessão, desde que seja mencionada justamente para destinar a metade indisponível, ou mais, aos referidos herdeiros, sem que haja privação ou redução da parcela a que fazem jus por força de lei. 7- Hipótese em que, examinando-se a disposição testamentária transcrita no acórdão recorrido, conclui-se que o testador pretendeu dispor de todo o seu patrimônio e não apenas da parcela disponível. Isso porque o testador se referiu, no ato de disposição, reiteradamente, à totalidade de seu patrimônio, inclusive quando promoveu a divisão dos percentuais entre os filhos, herdeiros necessários que tiveram a legítima respeitada, e os sobrinhos, herdeiros testamentários. 8- Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido”.

Fonte: Julio Martins

Deixe um comentário