Municípios têm buscado contornar a imunidade do ITBI sobre a integralização de imóveis ao capital social de empresas, valendo-se de interpretações distorcidas de precedentes do STF e do STJ

As transmissões de imóveis destinadas à integralização do capital social são abrangidas pela imunidade tributária do ITBI – Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis, prevista no art. 156, § 2º, inciso I, da Constituição Federal.

Apesar disso, diversos municípios têm buscado burlar a regra imunizante ao instaurar procedimentos administrativos destinados a arbitrar a base de cálculo do ITBI, com o objetivo de tributar a diferença entre o valor declarado e o valor de mercado do imóvel integralizado.

Pela perspectiva municipal, a imunidade “não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado” (Tema STF 796), admitindo-se o afastamento do “valor da transação declarado pelo contribuinte”, desde que haja prévio procedimento administrativo (Tema STJ 1.113).

Porém, essa interpretação desvirtua os próprios precedentes mencionados, ao ignorar tanto suas particularidades fáticas quanto a lógica jurídica que os fundamenta.

Tema STF 796

O STF, ao julgar o RE 796.376/SC, firmou o entendimento de que a imunidade do ITBI se aplica quando a totalidade do valor do imóvel transferido é destinada à integralização do capital social.

A ementa da tese firmada, contudo, revela-se imprecisa ao dispor que “a imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado.”

Ainda assim, a análise do caso revela que o STF se debruçou sobre uma hipótese específica: a integralização de imóveis por valor superior ao das cotas subscritas, isto é, em montante que excedia aquele efetivamente registrado na conta de capital social.

Especificamente nesse caso, a diferença entre o valor dos imóveis e o valor nominal das cotas foi registrada pelo contribuinte como ágio, sendo contabilizada em conta de reserva de capital, o que resultou na incidência do ITBI.

Fica evidente, portanto, que o entendimento do STF vai de encontro à interpretação sustentada pelos Municípios: sempre que o valor do imóvel for integralmente destinado à conta de capital social, deve-se reconhecer a incidência da imunidade do ITBI.

Tema STJ 1.113

Por sua vez, o STJ, ao julgar o REsp 1.937.821/SP, enfrentou controvérsia relativa à definição da base de cálculo do ITBI em operações efetivamente tributáveis.

Para firmar seu entendimento, o STJ partiu da premissa, ainda pendente de confirmação pelo STF no Tema 1.348, de que as integralizações feitas por empresas com atividade preponderantemente imobiliária estariam sujeitas à incidência do ITBI.

A essência do acórdão consiste no reconhecimento da legitimidade da atuação municipal, nas hipóteses efetivamente tributáveis, para instaurar procedimento administrativo prévio com o objetivo de apurar o valor venal do bem, sempre que houver divergência em relação ao valor declarado. Tal medida visa resguardar a correta mensuração da base de cálculo do tributo, evitando sua indevida erosão.

Em nenhum momento o acórdão autorizou a instauração de procedimento administrativo com a finalidade de arbitrar o valor declarado na integralização de capital social, tampouco de tributar eventual diferença. Aliás, trata-se de hipótese acobertada por norma de imunidade, cuja definição de alcance escapa à competência do STJ, por envolver matéria de natureza estritamente constitucional e afeta à jurisdição do STF.

O STJ fundamentou seu entendimento nos artigos 35 e 38 do CTN, que tratam, respectivamente, da hipótese de incidência e da base de cálculo do ITBI. Em nenhuma passagem do acórdão houve referência ao art. 36 do CTN, que trata da não incidência do imposto nas operações de incorporação de bens imóveis ao capital social.

Ao interpretar as normas do ITBI, o acórdão deixa claro que o entendimento do STJ se restringe às hipóteses efetivamente tributáveis, não se estendendo às operações protegidas por imunidade.

Assim, ao contrário do que sustentam os municípios, o STJ não legitimou a instauração de procedimento de arbitramento da base de cálculo do ITBI em operações claramente abrangidas pela imunidade prevista no art. 156, § 2º, inciso I, da Constituição Federal.

Ausência de prejuízo ao Fisco

Desse modo, desde que os imóveis sejam integralmente destinados à conta de capital social, deve-se reconhecer a imunidade do ITBI, independentemente de a integralização ter se dado pelo valor contábil ou de mercado.

Afinal, os municípios não sofrem qualquer prejuízo com a adoção do valor histórico, uma vez que, tratando-se de hipótese constitucionalmente imune, não há que se falar em erosão de base de cálculo.

Redução da eficácia da imunidade

A imunidade do ITBI tem por finalidade estimular a atividade econômica por meio da capitalização de empresas com bens imóveis, refletindo o propósito da Constituição Federal de “incentivar a livre iniciativa, estimular o empreendedorismo, promover a capitalização e o desenvolvimento das empresas”, conforme destacou o ministro Marco Aurélio no voto proferido no RE 796.376/SC.

Desde que destinadas a fomentar a atividade empresarial, as operações de integralização com imóveis estão abrangidas pela imunidade tributária, independentemente do critério adotado para a avaliação do bem.

Vincular a fruição da imunidade à integralização pelo valor de mercado, como pretendem os municípios, viola os objetivos da norma constitucional, pois desincentiva a capitalização das empresas por meio da transferência de imóveis.

Ademais, a integralização pelo valor de mercado acarreta a antecipação da apuração do ganho de capital, nos termos do § 2º do art. 23 da lei 9.249/1995, o que gera custos fiscais relevantes.

Nessa lógica, se prevalecer a tese defendida pelos municípios, poucos empresários optariam pela capitalização de empresas com imóveis, ainda que a operação seja imune ao ITBI, diante do ônus tributário adicional decorrente da antecipação do imposto sobre o ganho de capital.

Conclusão

Em suma, é inadmissível que os municípios utilizem precedentes fora do seu contexto para justificar a tributação de operações claramente protegidas pela imunidade tributária. Tal prática não apenas desrespeita os limites da jurisprudência, mas compromete os objetivos constitucionais de estímulo à livre iniciativa e à capitalização das empresas.

Fonte: Migalhas

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