A aplicação do artigo 30 da Lei 9.514/1997 — que rege a concessão da liminar de reintegração de posse no âmbito da alienação fiduciária de bem imóvel — é temática que exige bastante atenção de juízes e advogados, mormente porque o deferimento ou indeferimento da liminar não deve ter fundamento no artigo 300 do CPC.
A concessão de liminar de reintegração de posse no âmbito da alienação fiduciária de bem imóvel tem regulamentação especial, uma vez que, com a edição da Lei 9.514/1997, o legislador conferiu, propositadamente, um procedimento legal específico para a execução da garantia pelo credor fiduciário.
A lei especial dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário e instituiu a alienação fiduciária de coisa imóvel, sendo que a criação do contrato de alienação fiduciária de bem imóvel foi sua grande inovação e visou estimular o crédito.
Estabeleceu o legislador uma modalidade de contrato que superou todas as formas obsoletas de garantia até então existentes no ordenando jurídico brasileiro, pois trouxe segurança e celeridade necessárias para o credor em caso de eventual inadimplemento do devedor.
O que é a propriedade fiduciária
A propriedade fiduciária é aquela que está afetada ao propósito de garantia, não dispondo o credor fiduciário do jus fruendi enquanto não realizada essa garantia.
Com natureza jurídica de direito real de garantia, a alienação fiduciária de bem imóvel é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com escopo de garantia, contrata a transferência ao credor ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.[1] [2]
Nos termos do artigo 27 da lei especial, uma vez consolidada a propriedade em nome do credor fiduciário ele é obrigado a aliená-la em leilão público. Vale dizer, trata-se de uma propriedade limitada com escopo de garantia.
Todavia, em se frustrando os 2 (dois) leilões previstos por lei, a dívida será extinta compulsoriamente, exonerando-se ambas as partes de suas obrigações.
Com a extinção da dívida, o imóvel deixa de estar afetado ao propósito de garantia, passando a integrar o patrimônio do credor de forma plena (propriedade plena), o que se assemelha a uma adjudicação.[3]
Transmissão da propriedade
Nos termos do artigo 23, há a transmissão da propriedade do devedor fiduciante ao credor fiduciário como direito real de caráter resolúvel, mediante o registro, ocorrendo, assim, o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel.
Como já reconhecido expressamente pelo STJ, da exegese da Lei 9.514/1997, verifica-se o intuito de conferir procedimento legal específico muito mais célere e simplificado em relação à execução da hipoteca e demais garantias, tendo permitido agilidade na execução do bem para satisfação do eventual débito vencido e não pago.[4]
Com o inadimplemento da dívida, não havendo a purgação da mora na forma prevista pelo artigo 26 da Lei 9.514/1997, ocorre a consolidação da propriedade em nome do fiduciário, sendo averbada no registro do imóvel.
A partir desse momento, surge para o credor fiduciário:
- o direito de ajuizar a ação de reintegração de posse do imóvel (artigo 30 da Lei 9.514/1997); e
- a obrigação de promover dois leilões para a alienação do bem, o segundo leilão apenas se não houver, no primeiro, lance em valor igual ou superior ao do imóvel (artigo 27 da Lei 9.514/1997).[5]
Constata-se do artigo 30 da Lei 9.514/1997 que o próprio credor fiduciário possui direito e legitimidade para o ajuizamento da ação de reintegração de posse com concessão de liminar.[6]
O STJ afirmou categoricamente que:
o objetivo do art. 30 da lei nº 9.514/1997 é assegurar que o imóvel cumpra a sua função de garantia, prevendo uma maneira rápida de ser recuperar a posse direta do bem logo após a consolidação da propriedade em razão do inadimplemento da dívida, de modo a tornar a alienação fiduciária de imóvel um negócio jurídico economicamente viável e atrativo também para o credor.[7]
Reintegração de posse
Além disso, o direito à reintegração de posse do credor fiduciário decorre diretamente da norma específica do artigo 30 da Lei 9.514/1997, que prevalece sobre outras normas do Código de Processo Civil.[8] [9]
Há relevante precedente do STJ reconhecendo que a pretensão do credor fiduciário de reintegração de posse não tem como base o direito civil ou o direito processual civil comum, mas sim, as especificidades da legislação especial que trata da alienação fiduciária em garantia, em especial do artigo 30 da Lei 9.514/1997.[10]
Nesse contexto normativo, necessário definir se o credor fiduciário tem direito à liminar de reintegração de posse, prevista no artigo 30 da Lei 9.514/1997, quando comprova a consolidação da propriedade em seu nome, independentemente dos demais requisitos processuais previstos no Código de Processo Civil.
Note-se que, pela lei especial de regência, a consolidação da propriedade em nome do credor é o único requisito legal exigido para a ação de reintegração de posse.
O STJ, ao se manifestar sobre os requisitos para a ação de reintegração de posse no âmbito da alienação fiduciária de bem imóvel, consignou que:
O único requisito previsto no art. 30 da Lei nº 9.514/1997 para a ação de reintegração de posse é a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, não sendo possível extrair do referido dispositivo legal qualquer indicação de que a referida ação não poderia ser ajuizada antes da realização dos leilões, notadamente porque já caracterizado o esbulho possessório desde a consolidação da propriedade.[11]
Impedimento para reintegração
Mas o procedimento legal específico da Lei 9.514/1997, além de prever expressamente o requisito único para a liminar de reintegração de posse (consolidação da propriedade), estabelece também uma única hipótese legal apta a sobrestar o deferimento da liminar.
Da atenta leitura do parágrafo único do referido artigo 30, fica claro que a reintegração de posse no âmbito da alienação fiduciária de bem imóvel não pode ser obstada por ações judiciais que tenham por objeto controvérsias sobre as estipulações contratuais ou os requisitos procedimentais de cobrança e leilão.
A única questão que pode obstar a reintegração de posse é a falta de notificação do devedor fiduciário. [12]
Eventuais danos decorrentes das ações judiciais que tenham por objeto controvérsias sobre as estipulações contratuais ou os requisitos procedimentais de cobrança e leilão serão resolvidas em perdas e danos.
De conseguinte, merecem severas críticas decisões judiciais que, invocando a norma processual geral da tutela de urgência do artigo 300 do CPC, indeferem a liminar de reintegração do credor fiduciário na posse do imóvel dado em garantia, exigindo requisitos outros além da comprovação de que houve a consolidação da propriedade.
Tendo em vista a especialidade da reintegração de posse no âmbito da alienação fiduciária de bem imóvel, não incumbe ao Poder Judiciário exigir a demonstração de requisitos legais que a lei especial não exige.
Todavia, ainda que se entendesse aplicável, em tese, a norma processual geral do artigo 300 do CPC, a demonstração do fumus boni iuris e do periculum in mora deveria nortear-se pela legislação especial.
Note-se que, como se trata de liminar de reintegração de posse em sede de alienação fiduciária de bem imóvel, a probabilidade do direito decorre da comprovação de que houve a consolidação da propriedade do imóvel em nome do credor fiduciário e de que, em eventuais outras ações judiciais, não se está discutindo a inexistência de notificação do devedor para purgar a mora.
Prejuízos do devedor fiduciante
Modo igual, por se tratar de procedimento legal específico para a satisfação do crédito com garantia de alienação fiduciária de bem imóvel, o periculum in mora não poderia ser avaliado senão a partir da norma especial que estipula, como regra, a conversão de eventuais prejuízos do devedor fiduciante em perdas e danos.
Da mesma forma, o fato de o credor nunca ter exercido a posse direta sobre o imóvel jamais poderia ser utilizado para alegar falta de urgência para o deferimento da medida liminar, porque é da essência da garantia que, até a consolidação da propriedade, o credor fiduciário, apesar de ter a propriedade fiduciária do imóvel, nunca tenha tido a posse direta.
Vale recordar que só há direito à liminar de reintegração de posse da Lei 9.514/1997, exatamente, porque o credor fiduciário nunca teve posse direta sobre os imóveis. Acaso já tivesse possuído diretamente o imóvel e viesse a perder esta posse, teria que postular a reintegração com base nas normas gerais do Código Civil e do Código de Processo Civil.
Além disso, há que se ponderar que, na condição de proprietário pleno do imóvel, o credor fiduciário tem urgência em exercer posse sobre ele para dele retirar frutos e derivados (utilidades e rendimentos).
Portanto, comprovada a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, tem ele direito à concessão de liminar de reintegração de posse independentemente dos demais requisitos previstos no Código de Processo Civil, resolvendo-se em perdas e danos eventuais controvérsias objeto de outras ações judiciais.
[1] TERRA, Marcelo. Alienação Fiduciária de imóvel em garantia. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998, p. 23.
[2] O conceito legal de alienação fiduciária de bem imóvel está previsto no art. 22 da Lei 9.514/1997.
[3] REsp 1.862.902/SC, 3ª Turma do STJ, rela. Mina. NANCY ANDRIGHI, DJe de 11.06.2021.
[4] REsp 1.172.025/PR, 4ª Turma do STJ, rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe de 29.10.2014.
[5] AgInt no RECURSO ESPECIAL 1.642.363/SP, 4ª Turma do STJ, rel. Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJe de 18.09.2024.
[6] RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Alienação fiduciária de bens imóveis, 2. ed. rev., atual. e amp., São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2020, p. 484.
[7] REsp 2.019.882/PR, 3ª Turma do STJ, rela. Mina. NANCY ANDRIGHI, DJe de 21.10.2022.
[8] SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Direito imobiliário: teoria e prática, 21. ed. rev., atual.e ampl, Rio de Janeiro: Forense, 2025, p. 609.
[9] Agravo de instrumento. Ação de reintegração de posse de bem imóvel alienado fiduciariamente. Requisitos do art. 30 da Lei nº 9.514/1997 preenchidos. Norma específica que prevalece sobre a disposição geral do Código de Processo Civil. Liminar deferida para que o imóvel seja desocupado em 60 dias. Agravo provido. (Agravo de Instrumento 2118315-65.2014.8.26.0000, Rel. Des. EDGARD ROSA, 25ª Câmara de Direito Privado do TJSP, j. 21.08.2014).
[10] REsp 2.010.882/ PR, 3ª Turma do STJ, rela. Mina. NANCY ANDRIGHI, DJe de 21.10.2022.
[11] REsp 2092980/PA, 3ª Turma do STJ, rela. Mina. NANCY ANDRIGH, DJe de 27.02.2024.
[12] POLETTI, Claudinei Antonio. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis e o Agronegócio, 1ª ed., Campo Grande: Contemplar, 2019, p. 81.
Fonte: Conjur


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