Em recente decisão, proferida no último dia 7, ao indeferir a expedição de ofícios a corretoras de criptomoedas, a 15ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região estabeleceu critérios rigorosos para a busca de criptoativos em processos de execução. No julgamento do Agravo de Petição nº 02686002120045020050, o colegiado condicionou a medida à apresentação de “elementos mínimos de individualização das instituições envolvidas” e de “indícios de vínculo com os executados”. Na prática, a decisão transfere ao credor o ônus de uma investigação prévia, impedindo que o Judiciário seja utilizado para uma “diligência meramente especulativa”. Tal fato, embora resguarde a razoabilidade processual, expõe a barreira que a natureza descentralizada e anônima dos criptoativos representa para a efetividade da Justiça.
A decisão joga luz sobre um problema mais amplo: a “invisibilidade” desses bens para o Judiciário. A dificuldade em rastrear criptoativos não afeta apenas os credores, mas expõe uma fragilidade sistêmica com reflexos diretos, dentre outras situações, em partilhas e inventários. Quando o titular do patrimônio digital falece, seus herdeiros enfrentam a mesma barreira de opacidade, com o agravante de, muitas vezes, nem sequer saberem da existência dessas carteiras digitais.
Segundo a análise da Glassnode, estima-se que cerca de 7,8 milhões de unidades de Bitcoin, equivalentes a mais de R$ 2,6 trilhões, em criptomoedas, já estejam perdidas, montante superior a cinco vezes o valor de mercado da Petrobras [1]. Um estudo do Cremation Institute revelou que, embora quase 90% dos investidores em criptomoedas se preocupem com o destino desses ativos post mortem, apenas 23% possuem um planejamento sucessório específico para eles. Essa lacuna é extremamente relevante, uma vez que a posse de criptoativos e NFTs está intrinsecamente ligada à segurança de chaves privadas, cujo acesso é essencial para movimentar os ativos em uma rede blockchain. [2]
Dificuldade em legislação de herança digital
A dificuldade em legislar sobre o tema reside na natureza multifacetada dos bens digitais. Globalmente, a União Europeia adotou o Regulamento (UE) 2023/1114 (MiCA) em maio de 2023, que define criptoativos como uma “representação digital de valor ou direitos que pode ser transferida e armazenada eletronicamente, por meio de tecnologia de registros distribuídos ou similar”. O MiCA classifica os criptoativos em tokens de dinheiro eletrônico, tokens referenciados a ativos e outros criptoativos em geral, segmentando suas regras de acordo com cada tipo e seus riscos.
No Brasil, doutrinariamente, a classificação proposta por Bruno Zampier divide os bens digitais em três categorias. Em primeiro lugar, os bens digitais patrimoniais são compreendidos como bens incorpóreos que possuem apreciação econômica, caracterizando-se por objetivar lucro e refletir a iniciativa privada, como é o caso de criptomoedas, NFTs e bibliotecas virtuais, aplicando-se a eles, em regra, a sucessão legítima. Em segundo lugar, existem os bens digitais existenciais, que não irradiam efeitos patrimoniais e não possuem valor econômico identificável, como contas de acesso a redes sociais e galerias de fotografias. Para esses bens, a regra é a intransmissibilidade, ressalvando-se a vontade do titular expressa em vida e a não violação da privacidade de terceiros. Por fim, classificam-se os bens digitais híbridos, que apresentam tanto aspectos patrimoniais quanto existenciais. Exemplos notórios incluem contas de redes sociais utilizadas para monetização de postagens e, a estes bens, aplica-se uma análise funcional para distinguir entre o que possui caráter econômico e o que se relaciona a interesses existenciais. [3].
Patrimônio digital integrando o espólio de bens
A corrente mais moderna da doutrina defende a transmissão mitigada de todos os tipos de bens, desde que haja consentimento do titular e que não se viole a privacidade de terceiros e a dignidade do falecido. Mesmo sem força de lei, o Enunciado 687 da IX Jornada de Direito Civil do CJF já serve como um norte interpretativo, ao estabelecer que “o patrimônio digital pode integrar o espólio de bens” e ser disposto em testamento ou codicilo. [4]
Nesse contexto, o anteprojeto de reforma do Código Civil, submetido ao Senado em 2024, estabelece, através do artigo 1.791-A, que “os bens digitais do falecido, de valor economicamente apreciável, integram a sua herança”. Este artigo, em seu §1º, define bens digitais como “o patrimônio intangível do falecido, abrangendo, entre outros, senhas, dados financeiros, perfis de redes sociais, contas, arquivos de conversas, vídeos e fotos, arquivos de outra natureza, pontuação em programas de recompensa ou incentivo e qualquer conteúdo de natureza econômica, armazenado ou acumulado em ambiente virtual, de titularidade do autor da herança”.
A Subcomissão de Parte Geral, por sua vez, sugeriu a inclusão do inciso IV no artigo 83 para incluir os bens digitais de conteúdo econômico como bens móveis. De grande importância, o §3º do artigo 1.791-A declara a “nulidade de pleno direito de quaisquer cláusulas contratuais voltadas a restringir os poderes da pessoa de dispor sobre os próprios dados, salvo aqueles que, por sua natureza, estrutura e função tiverem limites de uso, de fruição ou de disposição”. Adicionalmente, o texto prevê, como o dever do inventariante de comunicar a existência dos bens ao juízo (artigo 1.791-C), e moderniza os instrumentos de disposição ao prever figuras como o codicilo virtual.
Planejamento sucessório
A Instrução Normativa nº 1.888/2019 da Receita Federal, ao exigir a prestação de informações sobre operações com criptoativos por investidores e corretoras, pode auxiliar o inventariante a obter esses dados via sistema Infojud. Por outro lado, como dispõem Dierle Nunes e Matheus Miranda, quando os criptoativos são custodiados diretamente pelo indivíduo em wallets, o acesso aos ativos do falecido torna-se uma tarefa árdua se não houver um planejamento sucessório adequado, tendo em vista que o acesso a essas carteiras geralmente se dá por meio de uma senha privada de 12 ou 24 palavras (seed phrase), e a perda dessa sequência torna a recuperação praticamente impossível. [5]
Nesse âmbito, a crescente relevância dos criptoativos no patrimônio individual direciona para a questão da busca de uma solução para o problema da garantia de acesso dos herdeiros e legatários a esses bens após o falecimento do titular. No contexto de um planejamento sucessório, à luz do atual cenário legislativo, o testamento cerrado desponta como uma ferramenta interessante, pois permite que o testador não revele o conteúdo interno.
Logo, recomenda-se a elaboração de um planejamento sucessório eficiente, visando superar a lacuna legislativa, que é notória e gera insegurança jurídica, forçando a jurisprudência a buscar soluções pontuais e, por vezes, divergentes.
[1] MARINS, Lucas Gabriel. Há cinco Petrobras em Bitcoins perdidos – e vale até hipnose para tentar recuperar. InfoMoney, 2024. Disponível aqui.
[2] MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Provado – Parte Especial, Direto das Sucessões> sucessão em geral, sucessão legítima, Tomo LV. HORONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; Lobo, Paulo (atual.) São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p.221.
[3] LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens digitais. Indaitauba: Foco Jurídico, São Paulo, 2024
[4] CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL, IX Jornada De Direito Civil. Enunciado 687. CJF – Enunciados, 2022. Disponível aqui..
[5] NUNES, Dierle; MIRANDA, Mathaus. Testar é preciso: planejamento sucessório de criptoativos e herança digital. Consultor Jurídico, 1 set. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 1 jul. 2025.
Fonte: Conjur


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