A doação de um imóvel em vida para um filho, com reserva de usufruto para si, é uma das ferramentas mais populares de planejamento sucessório no Brasil. A lógica parece simples e segura: o pai ou a mãe adianta a herança, mas garante o direito de morar ou alugar o imóvel até o fim da vida. Contudo, existe uma crença equivocada e perigosa de que este ato, por si só, impede que o filho (donatário) venda a propriedade. A verdade jurídica é que, sem as devidas cláusulas de proteção, o seu filho poderá, sim, vender a “nua-propriedade” do imóvel a um terceiro a qualquer momento, o que pode gerar grande insegurança e frustrar o objetivo principal do doador.

Para entender o porquê, é preciso saber como a doação com reserva de usufruto funciona. Realizada por meio de uma Escritura Pública em Cartório de Notas, ela desdobra a propriedade em dois direitos distintos: o usufruto, que pertence ao doador (os pais), garantindo-lhe o direito vitalício de usar e fruir do bem como quiser; e a nua-propriedade, que é transferida ao donatário (o filho), conferindo-lhe a titularidade do imóvel, despida dos poderes de uso. O filho torna-se o dono “nu”, mas o direito de posse e gozo continua com os pais. Ocorre que a nua-propriedade possui valor econômico e pode, legalmente, ser vendida, sem que isso afete o usufruto. O comprador adquire o bem, mas terá que respeitar o usufruto até a sua extinção.

Se a intenção do doador é garantir que o imóvel permaneça na família e não seja vendido pelo filho, a solução não está no usufruto, mas sim na inserção de uma cláusula de inalienabilidade no ato da doação. Esta cláusula, como o próprio nome sugere, proíbe expressamente que o donatário aliene (venda, doe, etc.) o imóvel recebido, geralmente pelo prazo em que o doador for vivo.

Aproveitando o ato da doação, é altamente recomendável cogitar um “combo” de cláusulas protetivas, especialmente em transmissões patrimoniais para familiares. Além da inalienabilidade, pode-se inserir a cláusula de impenhorabilidade, que impede que o imóvel seja penhorado por dívidas futuras do filho, protegendo-o de credores. Outra ferramenta poderosa é a cláusula de incomunicabilidade, que garante que o bem doado não se comunique com o patrimônio do cônjuge do filho, independentemente do regime de bens do casamento (inclusive a “comunhão universal de bens”), resguardando o imóvel em caso de um eventual divórcio.

Uma última ferramenta de proteção estratégica é a cláusula de reversão. Ela estabelece que, na hipótese de o donatário (o filho) falecer antes do doador (os pais), o imóvel doado retorna automaticamente ao patrimônio do doador. Isso evita que, em uma fatalidade, o bem vire herança e seja transmitido aos herdeiros do filho (como o cônjuge ou netos), permitindo que os pais retomem o controle total sobre o destino do seu patrimônio, o que é fundamental para um planejamento sucessório completo e seguro.

Confirmando a plena possibilidade de venda da nua-propriedade (ou seja, aquilo que detém o donatário de imóvel gravado com usufruto em favor do doador) é a decisão do TJMG:

“TJMG. 00101292020188130447. J. em: 12/07/2022. EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO ANULATÓRIA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. (…) ANUÊNCIA DA USUFRUTUÁRIA PARA ALIENAÇÃO DA NUA PROPRIEDADE – DESNECESSIDADE – INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL – VALIDADE DA AVENÇA. (…) – Por se tratarem de institutos diferentes, pode o proprietário alienar a nua propriedade (substância) sem sofrer qualquer tipo de interferência do usufrutuário, posto que esse goza apenas do direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos (proveito), conforme artigo 1.394 do CC – É despicienda a concordância da Usufrutuária/Apelante quanto à alienação da nua propriedade, devendo, todavia, o Comprador/Apelado respeitar o usufruto até a sua extinção, nos termos do art. 1.410 do CC.”

A doutrina do ilustre Registrador Imobiliário LUIZ GUILHERME LOUREIRO (Registros Públicos – Teoria e Prática. 2023) em total sintonia ratifica:

“O usufrutuário não pode alienar a coisa ou onerá-la. Não pode, portanto dá-la em hipoteca ou penhor. Pode, no entanto, contrair obrigações pessoais que versem sobre a coisa, por exemplo, arrendá-la ou alugá-la enquanto durar o usufruto. Apenas o proprietário pode alienar a coisa objeto do usufruto, mas o direito real continuará a gravar a coisa alienada, não havendo, por isso, prejuízo ao usufrutuário. (…) O nu-proprietário pode alienar ou gravar a coisa que, no entanto, continua onerada pelo usufruto. O proprietário pode ainda efetuar melhorias sobre o bem, mas não pode alterar sua destinação e substância, ou nela fazer alguma coisa que prejudique o valor do usufruto e o direito do usufrutuário”.

Em conclusão, a doação é um instrumento de planejamento patrimonial muito mais sofisticado do que parece. A simples reserva de usufruto oferece uma proteção limitada, mas a verdadeira blindagem do patrimônio familiar é construída por meio da inserção estratégica de cláusulas restritivas como a inalienabilidade, impenhorabilidade, incomunicabilidade e reversão. Dada a complexidade e as consequências permanentes de cada uma dessas escolhas, é absolutamente indispensável a consulta a um Advogado Especialista, que poderá estruturar o ato de doação de forma personalizada para atender com precisão e segurança aos anseios e objetivos de cada família.

Fonte: Julio Martins

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