Artigo analisa os limites do fisco estadual no ITCMD, destacando a importância da legalidade, da tipicidade e o risco do excesso de exação como ameaça à segurança jurídica do contribuinte

Introdução

O poder de tributar é, sem dúvida, um dos instrumentos mais importantes do Estado para cumprir suas funções sociais. No entanto, como todo poder, ele deve ser exercido dentro de limites constitucionais claros. No campo do ITCMD, é crescente a tentativa de alguns fiscos estaduais de fiscalizar não fatos concretos, mas ideias ou modelos abstratos de planejamento sucessório.

Essa postura merece atenção crítica por parte dos operadores do Direito, pois coloca em risco princípios estruturantes como a legalidade, a tipicidade e a segurança jurídica. Se o fisco passa a perseguir modelos de planejamento em tese, independentemente da ocorrência de fatos geradores, corre-se o risco de transformar o contribuinte em refém da subjetividade administrativa.

Este artigo pretende analisar os limites do fisco estadual em matéria de ITCMD, demonstrando que a fiscalização deve se restringir ao fato jurídico tributário previsto em lei, e não a construções abstratas. Para tanto, examinaremos: (i) a impossibilidade de fiscalizar ideias em detrimento de fatos, (ii) os limites normativos do lançamento de ofício e da chamada norma antielisiva, (iii) a gravidade do excesso de exação, inclusive sob a ótica penal, e (iv) a importância da doutrina e da jurisprudência como barreiras contra o arbítrio.

1. O fisco não pode fiscalizar modelos ou ideias, apenas fatos

O art. 114 do CTN estabelece que o fato gerador da obrigação tributária principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência. Hugo de Brito Machado resume de forma precisa: “sem a situação prevista em lei, não nasce a obrigação tributária, e basta a ocorrência dessa situação descrita na lei para que a obrigação surja” (ADIn 2.446, STF).

A partir dessa definição, conclui-se que a fiscalização deve se ater a verificar se houve ou não a concretização do fato jurídico descrito em lei. Fiscalizar planejamentos em abstrato, ou presumir intenções, equivale a tributar o que não ocorreu. Como assinalou a ministra Cármen Lúcia no julgamento da ADIn 2.446, a norma do art. 116, parágrafo único, do CTN “não autoriza a tributação com base na intenção do que poderia estar sendo supostamente encoberto por uma forma jurídica totalmente legal”.

2. Lançamento de ofício: Limites normativos e a ADIn 2.446

O art. 149 do CTN prevê o lançamento de ofício em hipóteses específicas, como erro, dolo, fraude ou simulação. Não se admite, portanto, a criação de presunções ou interpretações extensivas para alcançar planejamentos lícitos.

Na ADIn 2.446, o STF deixou claro que a desconsideração prevista no art. 116, parágrafo único, depende de regulamentação por lei ordinária, ainda inexistente. Enquanto isso não ocorrer, não há autorização para o fisco desconstituir negócios jurídicos sob alegação de simulação.

O ministro Ricardo Lewandowski destacou em seu voto-vista que o planejamento tributário, entendido como “processo de escolha de ação ou omissão que visa à economia de tributos e à prática da elisão fiscal, conduta lícita que impede o surgimento da obrigação tributária, não está ameaçado pela norma do art. 116, parágrafo único, do CTN”.

3. O risco do excesso de exação

O excesso de exação, previsto no art. 316, §1º, do CP, consiste em exigir tributo indevido ou de forma vexatória. Não é apenas uma irregularidade administrativa, mas crime.

O TJ/PA já confirmou condenação de servidor que exigiu tributos não instituídos em lei, reconhecendo que “o tipo de excesso de exação se configura quando o funcionário recebe o pagamento de tributo indevido porque não instituído por lei” (TJ/PA, apelação 200730078729, 2008). Da mesma forma, o TJ/MT manteve condenação de agente que exigiu valores “dezenas de vezes superior ao legalmente previsto”, caracterizando desvio grave de poder e abuso na cobrança (TJ/MT, apelação 0000450-37.2014.811.0044, 2022).

Embora esses precedentes se refiram a situações individuais e criminais, sua lógica pode ser aplicada em cenários mais amplos: se um fiscal passa a exigir tributo a partir de uma interpretação que não encontra respaldo em lei, ou se baseia em modelos genéricos de planejamento em vez de fatos concretos, incorre em postura análoga. Nesses casos, a exação deixa de ser legítima para se transformar em excesso, que afronta o princípio da legalidade e coloca em risco a própria credibilidade da administração tributária.

4. Doutrina: Legalidade e tipicidade como garantias do contribuinte

A doutrina nacional não deixa dúvidas quanto ao alcance da legalidade tributária. Roque Antonio Carraza ensina que “a lei, e só ela, deve definir, de forma absolutamente minuciosa, os tipos tributários. Sem esta precisa tipificação, de nada valem regulamentos, portarias ou atos administrativos” (Curso de Direito Constitucional Tributário, 29. ed., Malheiros, p. 275). Alberto Xavier acrescenta que o princípio “nullum tributum sine lege” funciona como escudo contra a arbitrariedade do fisco, da mesma forma que o princípio da tipicidade no Direito Penal protege contra a criminalização sem lei (Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação, RT, 1978, p. 69-70).

Essas lições são fundamentais para lembrar que a tributação não pode se fundar em interpretações subjetivas, mas apenas em hipóteses legais taxativamente previstas.

Conclusão

O fisco estadual possui competência legítima para fiscalizar e cobrar o ITCMD, mas sua atuação deve estar estritamente vinculada à lei. Fiscalizar modelos abstratos de planejamento sucessório, sem ocorrência de fato gerador, representa desvio de finalidade e afronta ao Estado de Direito.

A doutrina ensina que a legalidade e a tipicidade são barreiras intransponíveis. A jurisprudência penal demonstra que o excesso de exação é crime. E o STF, na ADIn 2.446, deixou claro que o planejamento tributário lícito não pode ser criminalizado ou desconsiderado por presunções administrativas.

O equilíbrio entre a arrecadação e a proteção do contribuinte exige respeito absoluto à legalidade. Fora desse marco, o que existe não é tributação, mas abuso.

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Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Código Tributário Nacional – Lei 5.172/1966.

Código Penal – Decreto-Lei 2.848/1940.

STF, ADI 2446.

TJ-PA, Apelação 200730078729, 2008.

TJ-MT, Apelação 0000450-37.2014.811.0044, 2022.

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 29. ed., Malheiros.

XAVIER, Alberto. Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação, RT, 1978.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário.

Fonte: Migalhas

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