Nos últimos tempos, a discussão sobre herança digital tem ganhado destaque, especialmente com o julgamento em curso de um recurso especial pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) que aborda este tema.
Atualmente, o Brasil ainda não possui uma legislação específica sobre herança digital. No entanto, estão em tramitação os Projetos de Lei nº 2.664/2021 e nº 04/2025, que visam regulamentar esse assunto. A ausência de uma norma clara torna o debate ainda mais necessário e pertinente.
Julgamento do STJ
Apesar da inexistência de norma específica que regulamente a sucessão de bens digitais no ordenamento jurídico brasileiro, a 3ª Turma do STJ iniciou, no início de agosto, o julgamento do REsp nº 2.124.424, que trata da possibilidade de acesso a arquivos digitais armazenados no computador de pessoa falecida, no âmbito do processo de inventário. O caso envolve inventariantes que requereram autorização judicial para acessar os dispositivos de seus filhos, vítimas de acidente aéreo, com o objetivo de localizar bens de valor econômico e afetivo.
Naquela oportunidade, a relatora, ministra Nancy Andrighi, reconheceu a natureza inédita da matéria e a ausência de regulamentação legal específica sobre a sucessão de bens digitais. Em seu voto, propôs a criação de um incidente processual próprio para a identificação e classificação desses bens, com a nomeação de um inventariante digital. profissional responsável por acessar os dispositivos eletrônicos, elaborar relatório sigiloso e auxiliar o juízo na distinção entre bens patrimoniais, passíveis de transmissão, e bens existenciais, cuja preservação é necessária por envolverem direitos da personalidade. A proposta visa garantir a proteção da intimidade do falecido, evitando a exposição indevida de conteúdos sensíveis, como mensagens pessoais ou registros íntimos.
Assim, no dia 08 de setembro de 2025, o julgamento do REsp nº 2.124.424 foi concluído pela 3ª Turma do STJ, com divergência apenas do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Em seu voto, o ministro defendeu a possibilidade de acesso irrestrito e transmissão integral dos bens digitais, com fundamento no princípio da sucessão universal, previsto no artigo 1.784 do Código Civil.
Embora tenha tido um voto divergente, prevaleceu o entendimento da ministra Nancy Andrighi, acompanhado pela maioria dos ministros, que adotou uma abordagem mais cautelosa e estruturada. O colegiado reconheceu que os herdeiros podem acessar os bens digitais armazenados nos dispositivos do falecido, mesmo na ausência de senhas ou autorização expressa, desde que seja instaurado o incidente processual proposto e haja a atuação do inventariante digital.
A decisão consolidou a compreensão de que essa figura técnica é essencial para assegurar a segurança jurídica, a preservação da intimidade e a proteção da memória do falecido, especialmente diante da possibilidade de existência de conteúdos que não devem ser transmitidos por envolverem aspectos existenciais e personalíssimos.
O julgamento representa um avanço significativo, considerando que, no mundo contemporâneo, é comum que indivíduos possuam ativos digitais valiosos, como direitos autorais sobre músicas, textos, filmes e fotos digitais, além de ativos virtuais, como criptomoedas e NFTs. No contexto sucessório, a acessibilidade a esses bens representa um dos maiores desafios enfrentados pelos herdeiros e operadores do direito para a proteção e a correta transmissão desses bens.
Dificuldade para acessar plataformas com criptoativos
Embora em alguns casos seja possível acessar plataformas digitais tradicionais, como redes sociais, serviços de armazenamento em nuvem ou contas bancárias digitais, mediante autorização judicial ou apresentação de documentos comprobatórios, o cenário se torna mais complexo quando se trata de criptoativos, especialmente aqueles sob autocustódia, considerando que tal modalidade dificulta o acesso por terceiros após o falecimento, considerando que:
Não há intermediários (como bancos ou exchanges) que possam ser acionados judicialmente;
A perda da chave privada implica na inacessibilidade definitiva dos ativos;
A localização dessas chaves depende exclusivamente da organização pessoal do falecido.
Apesar das condições desfavoráveis em relação à autocustódia, é possível levantar indícios da existência de ativos virtuais, por meio de:
Extratos de exchanges centralizadas, caso o falecido tenha utilizado essas plataformas;
Declarações de Imposto de Renda, onde os ativos podem ter sido registrados como patrimônio;
Dispositivos eletrônicos, como computadores, celulares ou hard wallets, que podem conter registros ou arquivos com chaves privadas;
Documentos físicos, como anotações, cofres ou testamentos que mencionem os ativos.
Alternativas recomendadas
Ainda, diante os cenários apresentados, o que pode ser feito? Muitas discussões estão por vir, e é provável que novas tecnologias sejam desenvolvidas para facilitar o acesso a esses ativos pelos herdeiros. A seguir, apresento sugestões que visam mitigar riscos e que podem auxiliar na efetividade da sucessão patrimonial, vejamos:
Compartilhamento de informações: o titular dos ativos pode, voluntariamente, compartilhar com familiares ou pessoas de confiança os dados de acesso, como logins, senhas e chaves de segurança. Essa prática, embora delicada, pode facilitar significativamente o processo de inventário e evitar a perda de bens virtuais valiosos. Neste caso, recomenda-se que esse compartilhamento seja feito de forma segura, preferencialmente com registro em documento sigiloso, como testamento cerrado, ou por meio de cofres digitais criptografados.
Localização de chaves privadas: no caso de criptoativos sob autocustódia, a ausência de instruções claras pode dificultar o acesso. Os herdeiros devem buscar localizar chaves privadas, que podem estar armazenadas fisicamente (em dispositivos, anotações, cofres) ou digitalmente (em arquivos protegidos). Como mencionado acima, a perda dessas chaves pode tornar os ativos irrecuperáveis, o que reforça a importância de um plano sucessório digital estruturado.
Inventário digital: o proprietário pode criar um inventário digital regularmente atualizado, contendo informações detalhadas sobre seus ativos virtuais. O uso do testamento cerrado, previsto no Código Civil, pode ser uma alternativa viável. Esse tipo de testamento mantém o sigilo sobre seu conteúdo e permite que o proprietário forneça orientações sobre como acessar cada ativo;
Idoneidade dos herdeiros: é imprescindível que os herdeiros atuem com ética, transparência e boa-fé na identificação e inclusão dos ativos virtuais no inventário. A omissão ou apropriação indevida de bens virtuais pode configurar infração legal e prejudicar a distribuição equitativa entre os sucessores. A atuação de um inventariante digital, conforme sugerido pelo STJ, pode contribuir para a lisura do processo e a proteção dos direitos envolvidos.
Critpoativos custodiados por exchanges: nos casos em que os criptoativos estejam sob custódia de exchanges centralizadas, é possível requerer judicialmente a intimação dessas plataformas para verificar a existência de ativos vinculados ao falecido. Essa medida pode viabilizar a inclusão dos criptoativos no espólio e garantir sua correta partilha, desde que respeitados os requisitos legais.
Conclusão
A herança digital representa um dos maiores desafios jurídicos da atualidade, exigindo uma abordagem multidisciplinar e sensível às transformações tecnológicas. A ausência de regulamentação específica demanda atenção redobrada dos operadores do direito, que devem buscar soluções seguras, éticas e eficazes para garantir a proteção dos bens virtuais e o respeito aos direitos sucessórios.
A reflexão sobre o tema é necessária, pois é preciso construir mecanismos seguros e eficazes que permitam aos herdeiros o acesso e a administração dos ativos virtuais do falecido, respeitando sua privacidade e vontade, e assegurando a justa distribuição do espólio. A herança digital não é uma questão do futuro, mas sim uma realidade presente que demanda atenção, preparo e regulamentação.
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Referências:
Senado: aqui
Dos Deputados, Câmara: aqui
VALADARES, Nathália de Campos. Herança digital: a morte e a (in)transmissibilidade de conteúdos digitais;
Herdei, Eu – Plataforma digital
De Justiça, Superior Tribunal: aqui
Fonte: Conjur


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