Na primeira semana deste mês, mais precisamente no último dia 5, foram divulgadas as duas notícias inspiradoras da temática abordada neste artigo: (i) segundo dados do IBGE, em 2022 o número de uniões estáveis (ditas “uniões conjugais”) superou oficialmente o de casamentos (civis e religiosos) no Brasil — o que se deu de forma inédita, tornando-se essa a modalidade de entidade familiar mais frequente em nosso país [1]; e (ii) “A 3ª Turma do STJ, em decisão unânime, reconheceu uma união estável homoafetiva post mortem e admitiu a relativização do requisito de publicidade em razão de contexto social discriminatório.” [2] (REsp 2.203.770/GO).
Em relação ao Censo Demográfico 2022 do IBGE, os resultados preliminares também deram conta de que 34 mil crianças e adolescentes de até 14 anos estão vivendo em uniões conjugais. A notícia não deixa de ser aterrorizante, ainda que exista margem de erro derivada do fato de que os dados são coletados e reunidos a partir das declarações fornecidas pelas famílias. Mas não podemos ignorar as conhecidas mazelas de nosso país, sendo uma delas a exploração sexual de crianças e adolescentes, ou ainda os “arranjos familiares” em que elas (verdadeiras vítimas) são tratadas como esposas ou companheiras, ou seja, os números são aviltantes, ainda que não extraídos dos bancos de dados públicos (pois os vínculos “conjugais” havidos com menores de idade não são passíveis de registro, eis que flagrantemente nulos, exceto a partir da “idade núbil” de 16 anos, e desde que com autorização legal dos pais ou responsáveis legais). Mas a crueza dos dados parece não ter sensibilizado a Câmara dos Deputados que, na mesma quarta-feira
Escárnios à parte, fato é que a dianteira numérica tomada pela união estável no Brasil veio apenas a confirmar que esse tipo de entidade familiar já era, há anos, uma realidade posta em nossa população, por motivos que vão desde a informalidade típica à própria condição social e econômica do brasileiro (vez que o casamento civil também agrega custos que não estão acessíveis à grande massa demográfica — ao menos, não como prioridade, diante de tantas outras necessidades já não atendidas e que custam dinheiro).
Mas esse “descompromisso” do brasileiro também esconde potenciais problemas. Como situação de fato que é, a união estável (entidade familiar, assim constitucionalmente reconhecida e protegida — artigo 226, parágrafo 3º, da Carta Magna) não demanda registro escrito para efetivamente se constituir e, a partir desse plano de existência, então passar também ao da eficácia — surtindo os mesmos efeitos de um casamento civil.
Essa ausência de formalidade prévia à sua constituição é um dos principais elementos que diferencia as uniões estáveis dos casamentos civis (esses, condicionados a formalidades como habilitação, consequente elaboração de proclamas, publicação de edital, comparecimento e assinatura de testemunhas e dos próprios nubentes em registro civil etc., podendo ainda demandar a elaboração de um pacto antenupcial — quando se deseja eleger regime diverso da comunhão parcial de bens). Em suma, só há casamento civil quando existe a respectiva certidão emitida, o que faz desse tipo de entidade familiar uma realidade inquestionável sob o prisma de sua existência (eis que documentalmente declarada, com data de início e subscrição de duas testemunhas).
As uniões estáveis, ao revés, raramente são objeto de pactuação escrita no Brasil, o que se conecta com o recente julgado do STJ referido no introito e desnuda as imensas incertezas e inseguranças jurídicas que nascem da “opção” cômoda pela não oficialização dessas entidades familiares (leia-se: não reconhecimento expresso em escritura pública, ou em instrumento particular, ou mesmo declaração de sua existência em testamento).
E essa informalidade da união estável pode ser extraída da própria expressão do legislador civil pátrio, quando de sua conceituação como um relacionamento público, contínuo, duradouro e com objetivo de constituição de família (artigo 1.723 do Código Civil).
Ainda que possa fluir de modo naturalmente informal, é certo que a união estável também goza de requisitos para sua constituição, que passaram por transformações e evolução histórica ao longo dos anos, tendo restado superados alguns elementos anteriores, condicionantes de sua conceituação. De fato, a jurisprudência e a legislação caminharam para adequar esse tipo de entidade familiar à realidade dos brasileiros (dispensando a coabitação e o prazo mínimo para sua configuração).
Tais adequações da união estável aos “tempos modernos”, diga-se, são benfazejas e colocam o Direito em sintonia com a sociedade, reconhecendo que ela não é estática e que a adesão da norma a tal dinamismo social é, inclusive, uma forma efetiva de garantir a todas as uniões estáveis a proteção estatal que lhe é constitucionalmente determinada (inclusive as constituídas por pessoas do mesmo sexo biológico).
Nesse sentido, louvável o recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, confirmando importantes passos já dados pelos Tribunais estaduais na direção de um segmento da população brasileira (LGBTQIA+) que é vulnerável, estigmatizado e diversas vezes invisibilizado (ou forçado a se invisibilizar, para sobreviver). A aplicação do direito ao caso concreto (com suas singularidades) tem, no Direito das Famílias e Sucessões, um campo muito fértil para se materializar, encontrando em situações desse tipo um exemplo perfeito de olhar particular dos Julgadores, a prestigiar o preceito da não discriminação insculpido na Lei maior.
Ora, parece inconcebível negar-se o reconhecimento de uma união estável de 30 anos pelo simples fato de inexistir a clássica publicidade do relacionamento havido (entre duas mulheres que viveram unidas em uma pequena cidade do interior de Goiás), tendo a celeuma sido gerada por ocasião do falecimento de uma delas. Mas esse tipo de negativa (da história de vida alheia) ainda ocorre, e geralmente por interesses puramente patrimoniais de quem ousa acessar o Judiciário para extirpar direitos legítimos daqueles que, então, veem sua união estável ser questionada.
A relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, foi acompanhada por todos os demais ministros da Turma ao, de forma exemplar, entregar à companheira supérstite a prestação jurisdicional merecida, relativizando o requisito da publicidade do relacionamento e dando a ele uma interpretação “à luz dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da liberdade individual.”. Ainda, deixou registrado que decisão contrária estaria a “invisibilizar uma camada da sociedade já estigmatizada, que muitas vezes recorre à discrição como forma de sobrevivência”, citando também a inviolabilidade da intimidade e o direito à liberdade sexual.
Como dito, o tema já vinha sendo enfrentado nas instâncias inferiores há alguns anos, havendo decisões do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) também flexibilizando o requisito da publicidade para as uniões estáveis homoafetivas, de sorte a sopesá-lo com a garantia à tutela do direito fundamental à privacidade [4]. Em arremate, diga-se que a atual orientação do STJ é mesmo no sentido de ampliar a proteção jurídica a relações afetivas marcadas por discrição imposta por contextos sociais ou culturais.
Mas o leitor deve se questionar: por quanto tempo essa companheira supérstite precisou lutar para ver reconhecida sua história de vida e os direitos derivados da entidade familiar que formou com a falecida companheira? Seguramente, alguns anos. E tudo isso porque a ambas faltou apenas uma providência: a oficialização do relacionamento, em documento escrito (ainda que um instrumento particular).
A não pactuação escrita da união estável e suas consequência
A citada informalidade e o ligeiro comodismo do brasileiro militam em favor da configuração de uniões estáveis sem qualquer registro documental (realidade posta em nosso país). É bastante frequente a quem milita na área das famílias e sucessões presenciar a surpresa com que diversos clientes recebem a notícia de que o decorrer do tempo de um relacionamento pode caracterizar uma união estável mesmo sem eles se darem conta ou planejarem isso.
Espanto maior é causado ao saberem que a falta de coabitação também não impede a constituição da entidade familiar. Por fim, a lista das notícias indigestas finaliza com a revelação de que não mais existe um prazo mínimo para o relacionamento caracterizar uma união estável. O desconforto é justo, pois essa situação peculiar do “tempo de duração” traz à tona a conhecida discussão acerca das linhas tênues que separam namoros de namoros qualificados, e esses das efetivas uniões estáveis.
A sensação de se sentir “encurralado” pela mera passagem do tempo, dada a insegurança jurídica que a inércia pode causar, não é agradável a quem se enxerga “iniciando” um relacionamento. Além disso, o elemento subjetivo do conceito de união estável (“objetivo de constituição de família”) nem sempre se cristaliza de forma simultânea para ambos os integrantes do casal. Qual a clareza de cada qual a esse respeito? Estão necessariamente envolvidos com as mesmas expectativas, sintonias e intuitos de formar família? E, por óbvio, uma declaração de que o relacionamento atingiu o status de entidade familiar só pode ser validamente feita de forma conjunta, consensual, livre e consciente.
Seja como for, a experiência profissional recomenda que algo seja feito quando alcançado certo tempo de relacionamento — o que costuma acontecer num período médio de dois anos de estabilidade afetiva (maior ou menor, a depender das demais características da relação).
Atingido o marco, é chegada a hora de o casal tratar abertamente sobre o tema e oficializar o relacionamento de forma escrita — ainda que para declarar não possuir união estável e nem intuito de constituir família, naquele momento. E essa é uma oportunidade valiosa, inclusive, para deixar registrada a escolha conjunta de um regime de bens (aquele que melhor atenda aos anseios do casal) para a hipótese futura de o relacionamento alcançar o status de união estável.
Ao revés, se a entidade familiar já estiver efetivamente consolidada, a oficialização em documento escrito é medida de prudência, não apenas para a redução a termo de diversas decisões correlatas (regime de bens, afastamento recíproco da gestão em caso de incapacidade etc.), mas também — e sobretudo — para facilitar todas as questões derivadas de uma eventual e futura dissolução (pela separação do casal ou pelo falecimento de quaisquer dos companheiros). Pactuar por escrito é dar clareza e substrato documental para uma situação fática que, desprovida de registro, pode abrir espaço a diversas controvérsias.
Além de o ser humano ser imprevisível, o término dos relacionamentos também é, por vezes, permeado de mágoas e revoltas. Não são poucas as pessoas que se lançam no Judiciário para negar a existência da própria união estável, quando imbuídas dos piores sentimentos e firmes no propósito de recusar a seus pares o reconhecimento dos direitos derivados da entidade familiar constituída (e agora desfeita). E essa ausência da pactuação escrita leva ambos ao conhecido litígio travado nas ações de reconhecimento e dissolução de união estável. Anos de brigas (e de vida perdida) por conta da falta de um instrumento particular ou escritura que tivesse declarado a entidade familiar outrora formada…
Quanto ao aspecto sucessório, o fim da união estável não pactuada pode, acaso falecido qualquer dos companheiros, ser ainda mais cruel, permitindo que terceiros se apresentem para questionar a sua existência — obviamente, com interesses patrimoniais, pretendendo excluir o(a) companheiro(a) supérstite da sucessão daquele que faleceu (como na hipótese do citado julgado do STJ). Uma situação dessas demandas que o(a) supérstite ultrapasse a longa etapa de uma ação de reconhecimento e dissolução da união estável havida com o(a) falecido(a), na qual inclusive precisará provar que a entidade familiar efetivamente perdurou até a data do falecimento. Enquanto isso não ocorrer, anos serão consumidos sem que seus legítimos direitos hereditários possam ser exercidos. Em outras palavras: são múltiplos sofrimentos e um prolongamento forçado do luto.
Não pactuar a própria união estável é, portanto, permitir que a inércia tire de nossas próprias mãos o poder de definir como as coisas se darão posteriormente, quando da chegada do fim do relacionamento. Pior que isso: é transferir a terceiros (em caso de sucessão) o poder de criar obstáculos, apresentando-se como herdeiros para tomar o lugar do(a) supérstite, negando a existência da união estável havida com o de cujus. Sob qualquer ângulo, é uma decisão equivocada: não traz vantagem qualquer e carrega um potencial destrutivo incalculável.
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[1] Aqui
[2] Aqui
[3] Aqui
[4] Processo 1008683-79.2017.8.26.0562, 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Rel. Des. Ana Zomer: “Na análise do caso concreto, não se pode exigir da autora mais do que isso para conferir-lhe o direito pleiteado, considerando-se a timidez e a idade da falecida, que talvez tivesse certo recato e receio de revelar sua opção homoafetiva à família e ao grupo de amigos”
Fonte: Conjur


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