(Princípio da unitariedade da matrícula -Terceira parte)
 
647. Faz alguns anos, já era embora o tempo em que dominantes os fins materialistas norteados por uma clave econômica da vida, valeu-se Miguel Ayuso −que se conta entre os maiores pensadores contemporâneos da filosofia política e do direito constitucional−, da metáfora da muralha para intitular um de seus livros −Las murallas de la ciudad: temas del pensamiento tradicional hispano−, no qual trata da defesa da comunidade humana no confronto com os que a querem assaltar e destruir (ou desconstruir, para usar a expressão de Derrida).
 
E não é demasia, com efeito, assim o fez Miguel Ayuso, pensar na muralha não só em seu aspecto corporal ou físico, mas também em outras de suas funções: política, social, econômica, militar, cultural etc., de modo que, também quanto ao registro de imóveis, de que ora nos ocupamos, devotemos nossa atenção redobradamente, com o fim principal de salientar o compromisso dos registradores em face do bem comum.
 
Tanto mais isto se reclama, quanto em nossa época parecem estar alguns valiosos registradores seduzidos por uma cosmovisão tecnocrática, utópica e mercantilista, de todo alheia ao verdadeiro papel institucional do registro.
 
A missão da magistratura registral, no entanto, ultrapassa os acanhados lindes da mera utilidade econômica da publicidade jurídica, e a hora presente exige conservar em alguns registradores e revitalizar em outros −quando não mesmo recuperar em situações mais extremas− a consciência social do registro, recobrando-os, a uns, de sua hesitação indiscreta, a outros, da desordenada adição a finalidades crematísticas para as quais o induzem a tentação de algumas ideologias e sofreguidões de turno.
 
Daí a importância que se faz mesmo urgente em considerar a função social do registro imobiliário que, muralha espiritualizada, conserva e efetiva, por meio, sobretudo, da documentação e da publicidade exarada com o fólio real, a consciência da territoriedade concreta em que se sedentariza a comunidade humana e com que se satisfaz a politicidade natural do homem.
 
648. Entre as maneiras com que se pode chegar à desconstrução das cidades (o Abbau, na linguagem de Lewis Mumford) elenca-se a destruição das muralhas. Não apenas, contudo, a erosão, o desmoronamento da muralha física, mas também a desconstrução das muralhas institucionais, entre elas, designadamente, o registro de imóveis, custódio das liberdades concretas, garante do domínio privado dos territórios.
 
Cidade, bem o disse Patricio Randle, é conteúdo e continente; sendo conteúdo humano e social, num continente físico e edilício, “las ciudades tienen más de persona que de lugar, reflexión profunda que explica porque las ciudades pueden tener personalidad de un modo que no es posible en los paisajes naturales”.
 
Mas esse conteúdo humano e social da cidade não se liga de modo nômade ao território que o contém: em vez disso, há o lugar circunscritivo, o solo, o território em que se fixam e crescem as comunidades, no qual, assim o afirmou Aristóteles, funda-se a colônia natural de famílias, constrói-se a comunidade de comunidades −communitas communitarum. Daí a feliz expressão de Simone Weil que nisto vê um enracinement géographique, um enraizamento territorial, um lugar determinado em que, ao largo do tempo, sedimenta-se uma comunidade humana, ali adquirindo fisionomia própria.
 
Chegou isto, é verdade, a um excesso organicista de alguns autores, tal, p.ex., Bluntschli, que confronta 16 partes do corpo humano com 16 partes da cidade e conclui ser masculino o Estado, feminina, a Igreja. Mas se bem não devamos reputar o território mais do que um fator material para as comunidades −de modo que hajamos de evitar as exagerações do determinismo geográfico de, entre outros, Taine, Huntington e a Antropogeografia de Friedrich Ratzel−, o fato é que, tal o sentenciou nosso Leonel Franca, “a civilização começa por ser uma adaptação ao habitat”, e é a apropriação dos bens corporais (designadamente a do solo) que dá origem ao direito patrimonial, como o fez ver Louis Salleron: “la propriété est une relation dominatrice de l’homme aux choses, relation que l’homme actualise par une activité ordonnatrice et qui devient un droit positif dans et par l’organisation sociale”. (Note-se bem: não foi o direito que instituiu a propriedade, mas, ao revés, foi a propriedade que deu ensejo ao direito, abonando a sentença ex facto oritur ius, fórmula feliz de Baldo, comentando um texto de Alfeno).
 
Pois essa referida “atividade ordenadora” do domínio predial −activité ordonnatrice−, no que diz respeito ao registro imobiliário é atividade de demarcação, de limitação (porque os bens corporais, os imóveis também, são limitados), é atividade de conservação, de garantia, é atividade de consciência (do fator) territorial para o bem da comunidade. O perdimento ou a não observância dessa consciência da territoriedade para o bem da communitas communitarum leva ao que Hedemann denominou “egoísmo da terra”, é dizer, ao predomínio do bem particular sobre o comum, do bem da parte (que pode até ser o estado, que é parte da sociedade e não seu todo, como bem o referiu o, neste passo, insuspeito socialista inglês Harold Laski), e até pode ocorrer com a distorção do território, p.ex., com sua “excessiva mobilização” −tal o ensinou Juan Vallet, apontando o vício da inversão hierárquica dos fins da segurança registral, com a prevalência da dinâmica (o crédito) sobre a estática (o solo nacional, o assento econômico, i.e., das casas, das famílias).
 
649. Em que consiste, enfim, a consciência do territorial a cuja efetividade o registro de imóveis contribui decisivamente?
 
Para logo, seguindo, ainda uma vez, os seguros passos de Patricio Randle, deve aqui −na expressão “consciência territorial”− considerar-se o termo “consciência” em sentido muito lato, quer (i) como alguma forma objetiva de ser, quer, em determinados estratos, (ii) como forma de percepção não necessariamente intelectual.
 
Todos os entes naturais possuem um dado objetivo de territoriedade, até mesmo os entes do reino mineral que apresentam uma territorialidade mínima (Juan Bolzán). Assim, Randle refere-se à territorialidad de la piedra, porque, objetivamente, em seu próprio modo concreto de ser, não é indiferente que uma pedra esteja num local ou noutro: que o testemunhe a legendária morte de Ésquilo, a quem um oráculo vaticinara morreria porque uma casa de pedra lhe haveria de cair sobre a cabeça num dia previsto; pois este grande dramaturgo resolveu, então, passar esse anunciado dia em um lugar descampado; calha que uma águia, porém, vendo do alto a calva de Ésquilo, supondo-a uma pedra, atirou contra ela uma tartaruga, para assim romper o escudo ou carcaça deste réptil (ou seja, romper-se a “casa” da tartaruga). Deste modo terá morrido, segundo a lenda, o pai das grandes tragédias. De fato, consideradas as circunstâncias concretas, o que ocorra com uma pedra sempre será influído de sua relação espacial. É inevitável.
 
Numa segunda gradação, a do reino botânico, tem-se já tanto um enraizamento vegetal, quanto o fato de que a territoriedade dos vegetais lhe compromete até mesmo a descendência (Bolzán). Uma ilustração do tema dos limites espaciais no reino vegetal dá-se com o fenômeno do crown shyness −timidez do dossel (ou da copa), com que se vê não haver interferências nos espaços vicinais entre árvores frondosas, cujos galhos não se tocam.
 
O terceiro nível de consciência de território é o do reino dos animais brutos, que, embora possam locomover-se, dependem do solo para sobreviver (pois não são capazes de viver só de água e ar −Bolzán). Já Aristóteles observara que, em dados casos, a possessão de um território por alguns animais (p.ex., as águias) é excludente da posse de outros.
 
O quarto grau de consciência de territorialidade é o do homem, que não apenas é capaz de moldar o ambiente físico natural às suas necessidades, mas que, no plano psicológico e espiritual, enraíza-se de comum ao território por nele encontrar a terra patrum −a terra dos pais (Randle), a pátria−, a terra onde repousam seus mortos. E a esse quarto nível de consciência do território, o homem acede a outra gradação, que é a de sua condição naturalmente política, de sorte que ele organiza, faz viver e crescer a comunidade, o agrupamento de famílias em que se vai sedimentando uma cultura peculiar, um legado que, dinamicamente, se vai transmitindo geração após geração (e, com efeito, é a tradição, não o território, não a raça, não a religião, não o vouloir vivre colectif de Le Fur, a clave da identidade dos patrimônios culturais nas comunidades).
 
O enraizamento do homem ao território −seu enracinement− é o modo de desenvolvimento singular de sua personalidade, faz-se como que uma sua segunda natureza, e tende a concretizar-se pela posse e o domínio de “seu solo”.
 
Se antes, especialmente nos tempos da cidade medieval, a muralha corpórea consistia numa fronteira topológica que servia à identificação da cidade, separando seu interior (seu âmago) do que lhe era externo e estranho (cf. Patricio Randle), coube ao registro de imóveis receber a função de simbolizar a muralha, vindo a consistir numa fronteira jurídico-social que exprime o valor do território para a vida da comunidade e ordena a concorrência sobre os bens prediais, efetivando, assim, a mais emérita das funções sociais do domínio: demarcar o que é de cada um, evitando a anarquia, o caos, o injusto assalto dos mais fortes sobre os mais fracos, a ambição desmedida do poder político.
 
Tem-se, pois, que o fólio real é a folha de um território, e deve ser a expressão de um registro imobiliário voltado realmente a seus fins comunais de garantia ordenada do domínio, o que lhe outorga um caráter de instituição demofílica (é dizer, de instituição aberta a todo o povo, porque todo o povo a ela pode regular e justamente aceder). Faz-se o registro, deste modo, um garante do enracinement, como fundamento da cultura que por tradição permite preservar a essencial identidade comunitária.
 
Tudo isto é o avesso do registro utópico −do registro que se satisfaz com um não lugar (utopos), o não lugar em que reside a mera ideia do Homem abstrato, o não lugar em que as inscrições possam coletivizar-se, o não lugar em que vive o cidadão volátil do mundo (em vez daquele poverino de carne e osso que retira do solo o pão de cada dia), o não lugar em que o crédito prefere ao território em que se mora e se produz com o suor do rosto.
 
Aos registradores é que sempre caberá decidir a qual destes tipos de registro pertencem e se ordenam.