(Princípio da unitariedade da matrícula -Quinta parte)
 
652. Há um dístico que se consagrou, no Brasil, para a sinopse da unitariedade do fólio real:
 
Um imóvel para cada matrícula.
Uma só matrícula para cada imóvel.
 
Tem-se aí a indicação de duas unitariedades: a do imóvel e a do fólio; vale dizer, a de uma realidade extrarregistral e a de outra, tabular, registrária, aventando a maneira figurada de a matrícula ser um espelho da realidade predial: o imóvel tabular é a imagem do imóvel natural (prædium tabularis imago prædiī naturalis est).
 
É inegável a força expressiva desse dístico e tem-na, não menos, a metáfora do “espelho matricial”. Mas este vigor de expressão não basta para afastar algumas dificuldades. Se o fólio real é como um espelho da realidade imobiliária, para logo deve espelhá-la física e juridicamente, e isto induz considerar a unitariedade do imóvel não apenas em seus aspectos de figura, localização e extensão, mas também no de sua suposição jurídica: ou seja, naquilo pelo qual o imóvel é um objeto ou suposto de direitos −suppositum iurum; um centro atrativo de negócios −fons attractiva negotiorum.
 
Se assim é, já se entrevê que a unitariedade do fólio real não desempenha um papel somente interno de formalização do relacionamento entre o registro e o imóvel acedido à tábula, mas −este é ponto a destacar− também uma tarefa preferencial (para não dizer absoluta) na convergência inscritiva dos fatos, atos e negócios jurídicos sobre imóveis. É, pois, já uma unitariedade substantiva ou externa que se reconhece no fólio real, atraindo as vicissitudes históricas dos prédios.
 
Podemos, assim, prontamente advertir três unitariedades distintas:
 
(i) a do imóvel, no aspecto corpóreo: unidade geográfica, espacial ou territorial;
 
(ii) a do mesmo imóvel, no aspecto jurídico, de suporte de direitos;
 
(iii) a da matrícula, na medida em que deva, para especulá-las, corresponder àquelas unitariedades,
 
mas, calha que esta classificação, parecendo, em princípio, bem ajustada a um molde teórico, logo se percebe que não se harmoniza com uma tolerada franja fática de exceções à unitariedade do fólio real.
 
Com efeito, a praxis recomenda considerar a unitariedade do imóvel sob perspectivas adicionais: econômica, social, política cēt., e a figura da “matrícula-espelho” tem de dividir sua posição de tipo comum de espelho −o de uma realidade corpórea−, com, algumas vezes, a função de espelho de uma realidade social, ou econômica, etc.
 
653. O termo “unitariedade” é um abstrato lógico que corresponde ao concreto “unitário” e refere-se, pois, à unidade (unitas, unitatis).
 
A unidade é um transcendental significante de o ente não se encontrar dividido em si próprio: as partes do uno, ainda que sejam muitas e distintas, nunca estarão atualmente divididas umas das outras, pois houvesse divisão, haveria, ipso facto, ruptura da unidade. Falar em unidade é, portanto, falar numa indivisão em ato.
 
Num sentido muito comum e que tem primazia de uso, a unitariedade imobiliária é a unidade territorial ou geográfica de um imóvel −sua magnitude ou quantidade contínua−, e corresponde a um paradigma ou modelo simplificador para a matrícula perfeita: aquela que espelha o imóvel espacialmente indiviso (em ato).
 
O sistema registral formalizado, porém, convive com algumas rupturas factuais da unitariedade geográfica dos imóveis, sem que isto exija correspondentes rompimentos especulativos na tábula (é dizer, não se impõem sempre divisões consequentes nas matrículas quando o imóvel esteja de fato fisicamente dividido). Pode mesmo falar-se aí numa espécie de tolerância registral com a admitida efração, não de todo rara, do princípio da unitariedade.
 
Como é próprio da tolerância, porém, trata-se apenas de não impedir um dado comportamento, não proibir uma determinada situação, sem, entretanto, com isto, aprová-los. Não se trata aqui, pois, com essa tolerância registral, de uma indiferença relativa à quebra da relação binômica “imóvel uno-matrícula una” −a que se deve o mais possível tender−, mas, isto sim, de não impedir, seja em caráter permanente (é o caso da propriedade horizontal), seja em caráter apenas transitório, que existam situações registrais não especulativas, suposto estarem elas acomodadas à realidade extrarregistrária, e não indiquem, prognosticamente, riscos à segurança jurídica. O preço a cobrar por uma eventual intolerância formalista, neste quadro da unitariedade, seria o de fomentar a clandestinidade imobiliária e o distanciamento entre o registro e a realidade social, com a perda da confiança no papel instrumental do registro.
 
654. Já se apontou a situação da propriedade horizontal, em que se admite, sob modo persistente, a proliferação das matrículas filiais para as unidades autônomas (melhor dito: para as frações ideais do imóvel), enquanto permanece a matrícula principal (ou, com seu pleonasmo, a matrícula-mãe) para o todo do imóvel.
 
O que se tem, neste quadro, é uma pluralidade de matrículas para um só imóvel global. Ou seja: há dispersão de fólios, e a ruptura da unitariedade emerge no plano dos livros e não da realidade, porque nesta há uma acessão invertida no aspecto econômico e social, o que, de resto, é a justificativa emprestada da realidade das coisas para admitir o espargimento dos fólios.
 
655. Cogitemos de outras situações, agora, diversamente do quadro anterior, em que a matrícula se preserva única, a despeito de o imóvel não ser fisicamente uno.
 
Suponha-se o caso de um determinado imóvel que, já objeto de matrícula, padeça uma abertura de estreita via pública que o divida, fisicamente, em duas porções. À nossa suposição agregue-se esta outra: a de que, numa dessas porções, haja uma casa onde residam os donos do imóvel, e, na outra porção, p.ex., um amplo salão gourmet, uma área de festas, etc., sempre usado socialmente pelos proprietários. Ora, ainda que, no aspecto físico, não haja unidade do imóvel a que se alude, ela existe no plano social, e estamos diante de um quadro em que a especulação exigida da matrícula pende de saber se há de ser a do espelho de um corpo físico ou a do espelho da efetiva realidade social.
 
Noutra situação, o imóvel seccionado pode manter unidade econômica (v.g., uma fazenda que, com a abertura de uma estrada em seu meio, mantenha nas partes a mesma atividade produtiva).
 
Pense-se, além, disto, nos casos em que um imóvel é já matriculado sem que se considere cortar-lhe a continuidade um rio que o atravessa de fora a fora.
 
656. Interessa agora considerar o papel da unitariedade do fólio real como polo atrativo dos fatos, atos e negócios jurídicos de um dado imóvel, em caráter privilegiado sobre outras instituições registrárias e as cadastrais.
 
O que importa aqui, por evidente, não é estimar as hipóteses já expressamente previstas na regulativa de regência (no caso brasileiro, as do inc. I do art. 167 da Lei n. 6.015/1973), mas, isto sim, as hipóteses não indicadas explicitamente em lei (p.ex., a multipropriedade, antes: a alienação fiduciário-predial em garantia).
 
De quando em quando surgem novidades no campo dos investimentos imobiliários. Faltando previsão explícita para que essas novidades acessem ao registro predial, dá-se o caso de vocações subsidiárias de outros sistemas formais de inscrição (v.g., o registro de títulos e documentos, ou mesmo cadastros públicos ou privados).
 
Tomemos por ilustração três exemplos recentes que também podem referir-se a imóveis: os do coworking, do crowdfarming e do crowdfunding, de que se dará na sequência breve notícia.
 
Consiste o coworking em que diversos profissionais ou empresários repartam um lugar de trabalho −com serviços auxiliares−, sem, contudo, formarem vínculo de associação. A existência de um coworking em determinado imóvel não raro vem ajustada por um prazo certo, e o local de instalação constitui, frequentemente, um ponto atrativo de clientes.
 
O crowdfarming é a individualização de parcelas de exploração produtiva em um imóvel rural, vinculando-as a consumidores exclusivos, de modo que esses consumidores se tornem (por assim dizer) os cultivadores ou agricultores do que consomem (a ideia se tem traduzido assim: “pôr um dono atrás de cada árvore”). Assinale-se que, com o crowdfarming, preserva-se a unitariedade territorial do imóvel, mas nele há, de algum modo, um aspecto de discrimen na unidade econômica. Tanto a questão do lugar da plantação, quanto a da periodicidade da recolha e da quantidade correspondente são matéria a que convém dar publicidade (pense-se, p.ex., nas possibilidades de alienação do imóvel e de cessão do status de consumidor-agricultor).
 
Por derradeiro, o crowdfunding imobiliário é o investimento coletivo na compra e gestão de imóveis, sem uma formalização societária que suporia maiores custos. Esse investimento vem atraindo a atenção por ser uma alternativa à baixa rentabilidade que, nos últimos tempos, acometeu boa parte dos ativos financeiros, além de ser um meio de evitar, com avistável proveito, os financiamentos bancários.
 
Não se tratará aqui do complexo tema da emolduração legal desses institutos no direito posto brasileiro, mas, sim, de que, admitida a autonomia privada nas contratações, o caráter abrangente −ou substantivo, ou externo− da unitariedade do fólio real seja o pilar da atração de todas as novidades jurídicas referentes a imóveis, novidades que não convém dispersar por entidades cadastrais, públicas ou privadas (não importa), porque, para a segurança jurídica, o melhor é evitar a diáspora de fontes publicitárias, demarcando-as previamente e estimando sempre a relevância capital de seu objeto.