Carla Watanabe é bacharel em Engenharia de Mecânica-Aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), onde recebeu o Prêmio Metal Leve – Turma 91 por ter sido a melhor aluna do curso. Além disso, é graduada em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Foi cadete-aviador da Aeronáutica, engenheira, servidora pública concursada no Tribunal de Contas da União e na Câmara dos Deputados, e, após aprovação em concurso público, se tornou a titular do Registro de Títulos e Documentos de Ribeirão Preto. Atualmente, é titular concursada do 28° Tabelião de Notas da Capital e faz parte da diretoria do CNB/SP desde 2008. Também foi membro das comissões examinadoras dos 7° e 8º concursos de Outorga de Delegações de Notas e Registro do Estado de São Paulo. Em entrevista exclusiva para o Jornal do Notário, a tabeliã conta como foi o seu processo de percepção sobre a transexualidade, relembrando o processo de auto aceitação pelo qual passou, junto aos colegas e familiares, e analisando a receptividade no meio jurídico. Leia ao lado na íntegra.

Jornal do Notário: Há quanto tempo a senhora se percebeu transexual?
Carla Watanabe:
Desde minha primeira lembrança, ou seja, desde os meus três ou quatro anos, eu sofro com essa minha inadequação em relação ao gênero que me foi atribuído ao nascer. É uma dor tão grande que sobreviveu a todas as minhas tentativas de abafá-la. 

Jornal do Notário: Como foi o processo de transição e de auto aceitação?
Carla Watanabe:
O conflito com minha verdadeira identidade foi algo que me acompanhou a vida inteira. Eu sempre convivi com o sentimento de culpa de não ser o que os outros esperavam de mim, sentia vergonha de ser o que eu era e, ao mesmo tempo, vivia aterrorizada com receio que me descobrissem.
Por anos tive pesadelos recorrentes, passei por depressões, e desenvolvi uma compulsão alimentar que me fez ficar com quase 40 quilos acima de meu peso. 
Veio, porém, um momento em minha vida em que eu não aguentava mais tanta dor, tanta frustração. Foi quando, há uns seis anos, comecei a passar por tratamentos médico e psicológico.
Primeiro me assumi na vida particular e depois no trabalho, até que passei a viver integralmente de acordo com minha identidade. Essa vivência foi libertadora, pois o medo se transformou em felicidade.
Quanto à auto aceitação, descobri que é um processo que não terá fim. Foram décadas de auto repressão. Sentir-se liberta é algo que ainda estou assimilando.
 
Jornal do Notário: Como chegou ao nome “Carla”?
Carla Watanabe:
Por incrível que possa parecer, não me lembro. Minha primeira memória sobre esse nome foi na passagem da infância para a adolescência.

Jornal do Notário: De que forma avalia a percepção dos seus familiares com relação ao assunto? E da equipe do cartório?
Carla Watanabe:
No início foi muito difícil. Passei por privações e por sofrimentos. Chorei muito. Porém, anos depois, meus familiares passaram a me aceitar. A grata surpresa, porém, veio da minha filha. Ela, além de entender minha dor, convenceu-me do compromisso que todos devemos ter com a felicidade.
No cartório, sempre procurei agir com o maior profissionalismo possível. Essa postura teve efeito quando me assumi publicamente, pois os funcionários foram extremamente receptivos e me elogiaram pela coragem.
No dia do aniversário da minha titularidade no 28° Tabelião, deram-me um vaso de flores e fizeram questão de afirmar que todos estavam ao meu lado.

Jornal do Notário: A senhora acredita que, dentro de um ambiente tão conhecido pelo tradicionalismo como o meio jurídico, a reação foi positiva? E no CNB/SP, a senhora se sentiu acolhida/compreendida?
Carla Watanabe: Eu confesso que estava preparada para a rejeição pura e simples. Afinal, já houve colega que se recusou a falar comigo por eu ter me identificado como transexual. Mas também houve amigos que me apoiaram desde o início e me deram força para seguir adiante e me assumir, como a Beatriz Furlan, Tabeliã de Ermelino Matarazzo.
No CNB/SP, eu me surpreendi com a atitude positiva e com o apoio dos colegas. Faço questão que todos fiquem sabendo dessa postura de acolhimento da associação, pois demonstra respeito e abertura à diversidade.

Jornal do Notário: A senhora acha que os órgãos de classe como a Anoreg, a Arpen ou até mesmo a UINL têm evoluído no tratamento em relação aos tabeliães e oficiais de registro trans?
Carla Watanabe:
Eu não tenho resposta direta para essa questão. Afinal, até onde eu saiba, eu sou a primeira mulher transgênera a assumir na categoria dos notários e registradores.
Mas a sociedade tem avançado muito na aceitação das pessoas trans. Eu acredito que essas entidades adotarão também postura de tolerância quando outras pessoas se assumirem.

Jornal do Notário: A senhora sentiu alguma diferença de receptividade dos clientes ou da equipe por ser uma notária trans? Ou nunca houve qualquer diferença?
Carla Watanabe:
Eu me surpreendi com a boa receptividade de todos. A minha revelação, que imaginava poderia ter um efeito negativo, teve resultado diverso, pois a equipe se tornou mais unida e, diante da percepção de meu sofrimento anterior, todos entenderam que transexualidade não é escolha, nem é uma aberração. Assim, continuo a ser a mesma pessoa, só que mais feliz.
Também dos usuários a resposta tem sido muito boa. Mesmo sem saberem toda a história de vida, ressaltam minha disposição em enfrentar preconceitos e assumir a identidade genuína. Eles frisam o pioneirismo da minha transformação e a abertura para a diversidade no meio notarial.
É claro que sempre há preconceitos; porém, são na maioria escondidos por eu ocupar uma posição de reponsabilidade. O respeito e o profissionalismo vêm antes da intolerância.
 
Jornal do Notário: Qual é o impacto de ser a 1ª tabeliã transexual no estado de São Paulo? O que isso representa para a cena LGBTQ no Brasil?
Carla Watanabe:
Há um impacto simbólico muito grande. No imaginário popular, transexuais e travestis estão ligados à prostituição, à violência e à marginalidade. Não é para ser assim, pois esse cenário está ligado ao preconceito e à baixa taxa de instrução formal desse grupo. Normalmente são crianças e adolescentes que são expulsos de casa, que fogem da escola, que são agredidos e que não têm como se manter. Diante do abandono e da iminência da fome, muitos são obrigados a alimentar uma rede de agenciadores do sexo e ganham o submundo das ruas.
Há áreas nas quais essa minoria é historicamente mais aceita, como a da estética e beleza. Porém, de alguns anos para cá, os transgêneros vêm ganhando outros espaços. Há diversos profissionais que chegaram à universidade, que exercem cargos técnicos e de gerência. A grande mídia passou a mostrar essa nova realidade. 
É necessário ir além. Os transexuais devem aparecer, devem mostrar a todos que identidade de gênero não está em hipótese alguma ligada a maior ou a menor competência. 
Eu fui a primeira engenheira a pedir a inclusão do nome social no sistema do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia – CONFEA; devo ser a primeira notária transgênera do Brasil. Essa exposição ajuda a afastar preconceitos e a encorajar outras pessoas que têm medo de se assumir. Assim evita-se muita aflição interna, muda-se a percepção negativa sobre a transexualidade e leva-se a sociedade a adotar uma postura mais inclusiva.

Jornal do Notário: Quais os cuidados que os tabeliães devem ter ao receber em suas serventias usuários transexuais? Existem meios de evitar constrangimentos em casos de apresentação de documentos que ainda não tenham havido a mudança efetiva de nomes?
Carla Watanabe:
Despir-se de preconceitos é a base de tudo. Todos os que lidamos com o público devemos ter em mente que a pessoa transexual que nos procura é digna de respeito, como qualquer outra. Ao identificar-se o usuário, uma atitude adequada é perguntar por qual nome a pessoa deseja ser tratada, com a maior discrição possível, sem atrair a atenção de pessoas ao redor.
Na minha vida pessoal, já passei por diversos constrangimentos devido à discrepância entre a minha figura e o meu nome civil. Por esse motivo, tenho certeza de que há muitos passos ainda a serem dados.

Jornal do Notário: Em um país que a cada 19 horas um LGBTQ é assassinado ou se suicida vítima da homotransfobia, como a senhora se posiciona sobre a falta de criminalização da homofobia no Brasil?
Carla Watanabe:
Creio que a homofobia é, de fato, um grande motor que leva pessoas a ferir ou a assassinar seus objetos de ódio. Mas não basta apenas tipificá-la; é necessário também criar um ambiente de respeito às minorias, tornar natural aceitar as diferenças. Para tanto, deve-se oferecer educação inclusiva para que nossas crianças aceitem a diversidade, seja de posição social, origem, credo, raça ou orientação sexual. 
Em tempos de intolerância, exarcerbados pelo ódio a tudo o que pareça diferente, em que vemos no outro algo a ser calado, essa é uma tarefa hercúlea.

Jornal do Notário: O que falta para uma maior inclusão de pessoas trans na atividade extrajudicial?
Carla Watanabe: O acesso à atividade já é democratizado por meio dos concursos públicos. Sou contra a adoção de quaisquer preferências à minoria à qual pertenço, até por serem inviáveis. O que é relevante é o acesso à educação. Se for possível romper o círculo vicioso que atinge a juventude trans e que se apoia no trinômio preconceito-pobreza-abandono, o acesso aos bancos escolares será libertador.
É importante ainda que as pessoas assumam sua identidade. Assim, mostra-se a todos que a transexualidade não tem correlação alguma com a capacidade da pessoa. Eu sou trans, assim como outro é negro ou branco, rica ou pobre, cristão ou muçulmano, gorda ou magra. Todos somos iguais e merecemos ter a mesma dignidade.