O agronegócio é, reconhecidamente, um dos setores mais pujantes da nossa economia. No entanto, essa posição de destaque em um momento crítico como o atual tem atraído investidas tributárias de todos os lados. Reviravoltas jurisprudenciais, como o trágico “caso Funrural”, ou, ainda, a indiferença às peculiaridades do setor ventilada nas propostas de reforma tributária, demonstram esse cenário preocupante. Além desses, existem outros exemplos com menor repercussão, como o enviesamento da legislação por atos infralegais.
 
A tributação do ganho de capital na venda de fazendas é um caso marcante dessa prática. Como se sabe, em regra, a diferença entre o valor de venda de um bem e o seu custo de compra enquadra-se como uma espécie de “lucro imobiliário”, passível de atrair a incidência do Imposto sobre a Renda. Todavia, a base de cálculo desse tributo pode variar a depender de algumas circunstâncias e, entre os casos excepcionais ressalvados pela legislação, encontra-se as alienações de imóveis rurais realizadas após 1º de janeiro de 1997.
 
De acordo com o caput do artigo 19 da Lei 9393/96, se o bem tiver sido adquirido e vendido após a fatídica data, tanto o valor de transmissão quanto o da aquisição, para fins de apuração do ganho, serão os valores da terra nua (VTN) declarados pelo contribuinte nos respectivos anos. Em outras palavras, ao invés de se utilizar as importâncias mencionadas nas escrituras públicas definitivas, o cômputo deverá partir dos montantes indicados nas declarações do Imposto Territorial Rural ( ITR), sem considerar, via de regra, as benfeitorias e melhoramentos, muito menos as culturas e pastagens plantadas na gleba.
 
Há, por assim dizer, um importante diálogo entre a legislação que ampara a incidência do Imposto sobre a Renda e aquela que regula o ITR. Leonardo Loubet ressalta essa nítida “inter-relação” entre as normas, de tal sorte que o “autolançamento” de um repercute no do outro. Acontece que, no ímpeto de regulamentar essa apuração para as pessoas físicas, a Receita Federal editou a Instrução Normativa SRF 84/2001 e as coisas “tomaram outro rumo”, como se vê do seu artigo 10:
 
“Artigo 10 — Tratando-se de imóvel rural adquirido a partir de 1997, considera-se custo de aquisição o valor da terra nua declarado pelo alienante, no Documento de Informação e Apuração do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (Diat) do ano da aquisição, observado o disposto nos artigos 8º e 14 da Lei nº 9.393, de 1996.
§1º. No caso de o contribuinte adquirir:
I — e vender o imóvel rural antes da entrega do Diat, o ganho de capital é igual à diferença entre o valor de alienação e o custo de aquisição;
 
II — o imóvel rural antes da entrega do Diat e aliená-lo, no mesmo ano, após sua entrega, não ocorre ganho de capital, por se tratar de VTN de aquisição e de alienação de mesmo valor.
§2º. Caso não tenha sido apresentado o Diat relativamente ao ano de aquisição ou de alienação, ou a ambos, considera-se como custo e como valor de alienação o valor constante nos respectivos documentos de aquisição e de alienação”.
 
Lendo o §1º, percebe-se que se o bem for comprado antes da transmissão da Diat e vendido, no mesmo ano, depois da sua entrega, não haverá diferença, já que os VTNs possuirão o mesmo valor. Inexistindo ganho, obviamente não há que se falar em incidência do tributo. Por outro lado, em qualquer caso, se a alienação se der antes da entrega da Diat (a qual ocorre geralmente no mês de setembro de cada ano), não se aplicaria a regra especial, ou seja, a apuração teria que se valer dos valores efetivos das transações. Por último, também não se aplicaria a regra caso a Diat não tenha sido enviada, seja no ano da compra ou no da venda, retornando-se, também aí, ao critério ordinário.
 
Não é preciso muito esforço intelectivo para se observar que os dois últimos pontos não constam da legislação responsável por normatizar o assunto. São verdadeiras inovações engendradas pela Receita Federal, sob o pretexto de regulamentar a apuração do tributo. Ilegais, portanto, são o que são! Aliás, outro não é o entendimento do consagrado colunista da ConJur Fábio Pallaretti Calcini, com sua precisão característica, quando pontua o seguinte:
 
“Entendemos, todavia, que essa restrição imposta pela instrução normativa para impedir a aplicação do artigo 19, da Lei 9.393/93 viola o princípio da legalidade, em especial na hipótese de a alienação ocorrer antes da entrega da Diat. Isso porque a essência de referida sistemática não é a obrigação acessória, cujo prazo de entrega ocorre, na atualidade, em setembro, mas a existência do VTN, cujo fato gerador se dá todo dia 1º de janeiro de cada ano” .
 
Além dessas pertinentes críticas, também é preciso chamar atenção para outra situação que, embora recorrente, tem sido menos discutida, mas que tem assombrado alguns produtores rurais. E se o imóvel foi adquirido antes de 1º de janeiro de 1997, mas alienado posteriormente? Nessa hipótese, poderia se cogitar do afastamento da regra especial, retornando-se à apuração comum aos imóveis urbanos, dada a inexistência do “VTN declarado, na forma do artigo 8º” do ano da aquisição? Enfim, seria defensável a aplicação do §2º do artigo 10 da IN?
 
O enfrentamento dessa questão é relevante, pois alguns poucos doutrinadores, numa leitura apressada, entendem que a regra especial se restringe aos imóveis adquiridos e vendidos pós-97. Essa exegese já encontrou acolhida junto ao Carf, citando, a título de exemplo, o acórdão 104-22.438:
 
“Quanto às alegações do Recorrente, entendo que não lhe assiste razão. Primeiramente nã há como referir ao caso em questão a sistemática da Lei nº 9.393/1996, na medida em que por expressa disposição de seu artigo 19 ela só tem aplicação aos imóveis rurais adquiridos a partir de 1º de janeiro de 1997” .
 
A propósito, cumpre lembrar que antes da Lei 9393/96 o lançamento do ITR era normatizado pela Lei 8847/94. De acordo com o artigo 3º, a “base de cálculo do imposto é o Valor da Terra Nua — VTN, apurado no dia 31 de dezembro do exercício anterior”. Em complemento, o §2º previa que o valor da terra nua mínimo por hectare seria fixado pela Secretaria da Receita Federal, ouvindo-se outros órgãos públicos. Nessa época, em regra, o lançamento se dava de ofício, sem que houvesse o “VTN declarado”. Antes disso, o assunto encontrava-se disciplinado pelo Estatuto da Terra, com as alterações promovidas por leis posteriores, sem que as informações prestadas pelo contribuinte se dessem na roupagem inaugurada pela atual lei.
 
Diante desse contexto, a resposta para aquelas questões exige apenas a leitura atenta do parágrafo único do artigo 19 da Lei 9393/96. Esse dispositivo esclarece que, para imóveis comprados antes de 1º de janeiro de 1997, “será considerado custo de aquisição o valor constante da escritura pública”, o qual deverá ser atualizado, em caso de pessoa física ou jurídica optante pelo lucro presumido, até o dia 31 de dezembro de 1995, se a aquisição tiver ocorrido antes dessa data. Nota-se, portanto, que a regra se direciona tão somente ao custo de aquisição, silenciando-se (intencionalmente) no que tange ao valor de alienação, ou seja, este último não pode se pautar no título translativo. Por isso, qualquer apego ao §2º, artigo 10, da IN incorreria em ilegalidade gritante.
 
Desse modo, depreende-se que para imóveis rurais adquiridos antes do recorte temporal previsto na lei especial (1º de janeiro de 1997), o preço da compra para fins de imposto sobre a renda será aquele da escritura, mas, em contrapartida, o da venda (posterior aquela data) será o “VTN declarado” na DITR do respectivo ano. Nas palavras do sempre certeiro Robson Maia Lins, teremos “forma híbrida na apuração do ganho de capital” . Nesse mesmo sentido também é o entendimento do professor Marcelo Guaritá, conforme defendido em sua explanação XVIII Congresso do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).
 
Com razão os renomados tributaristas, até porque o intuito do legislador, ao editar a norma especial, foi concretizar o tratamento tributário diferenciado conferido a esse setor, previsto no artigo 187, I, da Constituição Federal, estimulando as transações imobiliários no campo, em prol da nossa produção. O assunto é extremamente relevante e atual, principalmente em virtude da recente valorização dos imóveis rurais, puxada pela elevação do preço das commodities.