O futuro chegou… mas será que é virtual?
 
Foi publicada no dia 09/03/2022, a lei 14.309/22 que “Altera a lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e a lei 13.019, de 31 de julho de 2014, para permitir a realização de reuniões e deliberações virtuais pelas organizações da sociedade civil, assim como pelos condomínios edilícios, e para possibilitar a sessão permanente das assembleias condominiais”.
 
Apenas para fins de contextualização, a explosão do debate acerca possibilidade de realização das reuniões virtuais da Assembleia Geral do Condomínio Edilício teve seu ápice durante a pandemia da COVID-19, especialmente diante da entrada em vigor do RJET (lei 14.010/20) que previa a possibilidade de reuniões a “ocorrer, em caráter emergencial, até 30 de outubro de 2020, por meios virtuais, caso em que a manifestação de vontade de cada condômino será equiparada, para todos os efeitos jurídicos, à sua assinatura presencial” (art. 12).
 
Ocorre que o próprio texto legal (parágrafo único do art. 12), trazia a mera possibilidade da realização, prevendo solução para hipótese de impossibilidade de fazê-lo, sem introduzir de forma perene a figura a reunião virtual.
 
Após outubro de 2020, o mercado literalmente se dividiu em três: (i) aqueles que defendiam cegamente a realização das reuniões virtuais; (ii) aqueles totalmente avessos à possibilidade de, fora do RJET, se pensar no modelo; (iii) aqueles que viam a inovação como algo interessante, mas que dependi a de um afinamento técnico, pois não haveria na legislação vedação ao meio virtual.
 
É preciso esclarecer que na seara societária, por exemplo, o DREI editou a IN DREI 79/20, que regulamentou “a participação e votação a distância em reuniões e assembleias de sociedades anônimas fechadas, limitadas e cooperativas”, tentando apaziguar os temores do mercado, sendo sido adotada a modalidade virtual como praxe de diversas sociedades.
 
Porém, por não depender das formalidades empresariais para sua gestão, os Condomínios Edilícios não contavam com um órgão regulatório que pudesse trazer segurança às reuniões virtuais, que começaram a se proliferar das mais diversas formas e modelos, albergadas pelo argumento da forma livre.
 
Mas qual seria o problema da realização de uma reunião virtual? Para entender o desafio, é preciso compreender primeiro como se constrói a liturgia da reunião presencial.
 
Buscando, inicialmente, a lei, a reunião da assembleia condominial não encontra normativa ritualística, tendo o legislador infraconstitucional eleito questões mais amplas como objeto de sua preocupação: a) a necessária convocação de todos os condôminos (art. 1.354 do Código Civil); b) os quóruns de instalação e deliberação (art. 1.352 e 1.353 do Código Civil); c) a regularidade de convocação (art. 1.350 e 1.355 do Código Civil); d) o direito de voto, voz e participação na reunião (art. 1.335, III do Código Civil e art. 24, §4º da lei 4.591/64); (e) dentre outros.
 
Mas então de onde emana a estrutura do ritual assemblear? A reposta mais intuitiva seria a Convenção, pois, segundo o art. 1.334 do Código Civil e art. 9º, §3º, “h” da lei 4.591/64, dela deverá constar forma e modo da reunião da Assembleia Geral.
 
Contudo, no dia-a-dia da prática jurídica, se constata grande pobreza das Convenções ao regulamentar a procedimento da reunião, limitando-se muitas vezes à definição das funções do presidente de mesa, limites de representação e intervalo entre primeira e segunda convocação.
 
Para solucionar o problema, poder-se-ia pensar na analogia plena com as normas societárias, recurso hermenêutico previsto no art. 4º da LINDB, mas o risco de sua aplicação encontra substrato na natureza sui generis do Condomínio Edilício, ente despersonalizado, mas dotado, inclusive em visão pragmática, de diversos atributos que compõem a personalidade jurídica autônoma.
 
Todavia, é preciso registrar que, quase de forma inconsciente, acaba-se por absorver a ritualística empresarial para as reuniões condominiais, a exemplo do art. 126 da Lei das SA, em que se deve exigir a comprovação da legitimidade do acionista, com a apresentação de documento hábil, ou do art. 128 do mesmo diploma, no modelo composição de Mesa para condução dos trabalhos assembleares.
 
O que se constata é que a reunião presencial da assembleia condominial tem a segurança de sua liturgia na consolidação de costumes e usos sociais, que por anos e anos foram testados no mercado e no judiciário, e formam hoje uma espécie de procedimento padrão, tendo sua legalidade embasada pelo art. 4º da LINDB e no arts. 113 c/c 185 do Código Civil.
 
A questão é que a reunião virtual não possui esse histórico para lhe dar segurança, estando aí colocado um paradoxo: ora, se a reunião presencial, na sua fonte normativa, não dependeu de um ritual positivado para a sua validade, porque isto seria exigível de uma reunião virtual?
 
A reposta está no fato de que foi preciso grande esforço para se demonstrar que presencial ou virtual são espécies de um mesmo gênero, qual seja a reunião da Assembleia Geral do Condomínio Edilício e, dessa forma, desde que atendam a essência do gênero, podem existir cada qual com sua peculiaridade.
 
Os plurais modelos de reunião virtual, com seus modos de ser e muitas vezes supressões dessa essência do gênero, causou estranhamento na comunidade jurídica e no mercado, que enxergou na falta de regulamentação ritualística um risco à segurança da validade dos atos deliberados.
 
Verdade seja dita, as reuniões virtuais ganharam terreno em um tempo de aclamação e apoio às abordagens disruptivas dos meios tradicionais e se afiguram (positivamente) como um caminho sem volta.
 
Para contornar os problemas da falta de costumes e usos, com intuito de dar maior segurança e consolidar o uso das reuniões virtuais, foi votada e sancionada a lei 14.309/22.
 
Assim, o art. 1.354-A do Código Civil, introduzido pelo novel diploma, autoriza a realização da reunião virtual, tendo apenas dois requisitos gerais: (i) ausência de vedação convencional (inciso I) e (ii) preservação do direito de voz, de debate e de voto (inciso II).
 
O dispositivo é cirurgicamente alinhado com o contexto jurídico atual: o inciso I se alinha com a previsão do art. 1.334 do Código Civil e art. 9º, §3º, “h” da lei 4.591/64 e o inciso II, com os direitos elencados no art. 1.335, IV do Código Civil.
 
Neste ponto, merece destaque a garantia de preservação dos direitos condôminos, pois é entendimento jurisprudencial remansoso que “a assembleia, na qualidade de órgão deliberativo, é o palco onde, sob os influxos dos argumentos e dos contra-argumentos, pode-se chegar ao voto que melhor reflita a vontade dos condôminos” (REsp 1120140, STJ) e “não  obstante  ao  formato  da  assembleia,  se  virtual, presencial ou híbrida, o que deve ser resguardado é a  participação  efetiva  de  todos  os  condôminos  e  a lisura do procedimento” (AI 026307-54.2021.8.19.0000, TJRJ).
 
A reunião da Assembleia Geral é campo necessariamente democrático1, o que exige o somatório da participação2, da igualdade de voz para todos e da clareza das informações e temas deliberados.
 
Pinçando-se um ponto, para viabilizar a plena participação e transparência, o §1º do art. 1.354-A, exige que fique evidenciado o meio de realização (seja virtual puro ou híbrido), instruções de acesso, a manifestação e a coleta dos votos, com a descrição pormenorizada de tudo no edital de convocação (§4º do art. 1.354-A) e com a disponibilização de documentos da forma mais adequada ao acesso qualitativo dos participantes (§6º do art. 1.354-A).
 
Tal medida prestigia ainda a necessária garantia de que o exercício de todos os direitos e interesses em tela, sejam de acordo com a boa-fé e com a adequação à finalidade do ato, evitando-se a caracterização de qualquer tipo de abuso, nos termos do art. 187 do Código Civil.
 
No atual cenário, a opção legislativa é pela regulamentação mais ampla, deixando a forma e desenho das reuniões livres para se adequar às idiossincrasias de cada entidade condominial. De uma forma geral, se está diante de um convite a criar modelos, que devem respeitar as diretrizes traçadas; a espécie deve respeitar a essência do gênero, sem maiores preocupações operacionais.
 
Os demais aspectos como a necessária convocação de todos os condôminos, os quóruns de instalação e deliberação e a forma de convocação continuam submetidos ao mesmo rigor e modos descritos na legislação e na Convenção, sem que seja permitida sua supressão.
 
Por outro lado, não foram esquecidas ou ignoradas questões procedimentais relevantes, definidas para dar maior segurança aos resultados alcançados.
 
Assim, poder-se destacar o exemplo do §3º do art. 1.354-A, que exige que a ata eletrônica seja lavrada ainda no curso da reunião, depois de computados e divulgados os resultados das deliberações, podendo tal normativa ser complementada por normas previstas em Regimento Interno ou aprovadas por maioria simples em reuniões convocadas para essa finalidade (§5º do art. 1.354).
 
E sobre essas normas complementares, vale lembrar que serão essenciais, notadamente para estruturar as reuniões híbridas, a acessibilidade aos meios de participação, a guarda dos documentos gerados “na e para” a reunião, a comprovação de legitimidade do condômino, etc.
 
Pois bem: o futuro das assembleias condominiais é virtual? Não necessariamente. A reunião virtual não é um fim em si mesmo, mas o caminho para a melhoria e a eficiência das relações humanas. Se para alguns casos essa melhora se consubstanciar no virtual, abracemos com total intensidade. Caso contrário, mantem-se o modelo mais tradicional.
 
Em todo caso, criou-se mais um caminho eficiente para a condução e a gestão dos complexos Condomínios Edilícios.