A pandemia viu um boom de separações em boa parte do mundo. Entenda as razões e veja como o protagonismo das mulheres tem crescido nessa decisão
“Novelas da Globo aumentam o número de divórcios no Brasil.” Parece fake news de haters, mas não. Trata-se de um dado histórico. A conclusão é de um estudo de 2009, feito pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A pesquisa fez um cruzamento entre informações de censos das décadas de 1970, 1980 e 1990 e dados sobre a expansão do sinal da Globo no país. Segundo os autores do estudo, o número de mulheres que se separaram aumentou conforme a teledramaturgia da emissora foi chegando a mais cidades.
“A exposição a estilos de vida modernos mostrados na TV, a funções desempenhadas por mulheres emancipadas e a uma crítica aos valores tradicionais mostrou estar associada aos aumentos nas frações de mulheres separadas e divorciadas nas áreas municipais brasileiras”, diz a pesquisa. Nas 115 novelas analisadas, transmitidas pela Globo entre 1965 e 1999, 62% das principais personagens femininas não tinham filhos, e 26% eram infiéis a seus parceiros.
O que os estudiosos do BID não poderiam prever é o quanto os divórcios aumentariam no Brasil do século 21, por um motivo ainda mais insuspeito: a disseminação de um vírus.
Segundo o Colégio Notarial do Brasil, que congrega os tabeliães de notas e protestos, no primeiro ano da pandemia, em 2020, houve um aumento de 15% no número de divórcios em comparação com o ano anterior. Em 2021, então, o número de casais que oficializaram a separação bateu recorde: 80.573 divórcios consensuais, o maior da série histórica, que é registrada desde 2007.
Um crescimento bastante expressivo. Mas não tanto quanto o que aconteceu no Reino Unido. Principal escritório de advocacia britânico com foco em litígios, o Stewarts registrou em 2020 um aumento de 122% nos tratos de divórcio em relação ao ano anterior.
Na China, onde os números costumam ser superlativos – e drones monitoravam as ruas durante os lockdowns para garantir que ninguém saísse de casa –, houve 8,6 milhões de divórcios em 2020, segundo o Ministério de Assuntos Civis. Outro recorde: quase o dobro das separações que aconteceram em 2019.
Sim, o início desnorteante da pandemia foi o gatilho para um boom de divórcios planeta afora. Motivos para a escalada nas tensões entre casais não faltaram, você sabe: o encarceramento em casa de ambos os cônjuges (condição que se estendeu indefinidamente para quem aderiu ao home office), perrengues financeiros, a necessidade de lidar com as crianças estudando em casa, distúrbios psicológicos (ansiedade, depressão, paranoia…).
Ao impor uma coabitação 24 horas por dia, a pandemia expôs o desafio que é lidar com o marido ou a esposa o dia inteiro: não dava mais para desviar os olhos dos defeitos do outro, seus maus-humores, implicâncias e pequenas manias irritantes.
Nos EUA, porém, o fenômeno não ocorreu. O número de divórcios diminuiu durante a fase mais aguda da pandemia – de 2,7 separações em 2019 para 2,3 em 2020 (confirmando uma redução que já vinha ocorrendo ano a ano; em 2000, por exemplo, eram 4,0).
Mas algo indica que pelo menos pensar mais em separar eles pensaram. A empresa americana Legal Templates, especializada em gerenciamento de contratos, fez um levantamento dos dados de seus clientes, e identificou um aumento de 34% de aumento nas vendas de seu “acordo básico de divórcio” na primeira metade de 2020, em comparação com o mesmo período de 2019.
O levantamento mostra outro ponto, que provavelmente se aplica ao resto do planeta. Os casais que mais se divorciaram na pandemia foram aqueles que ainda não estavam tão habituados assim um com o outro.
A Legal Templates mostrou que os casados há menos de cinco anos foram os que mais se separaram em 2020: 58%. Aliás, quanto menor o tempo de união oficial, maior o aumento no índice de cada um para o seu lado. Enquanto, em 2019, pré-Covid, apenas 11% dos que se separaram tinham menos de cinco meses sob o mesmo teto, em 2020 essa porcentagem quase dobrou: foi para 20%.
Estudiosos que analisaram esses dados chegaram a uma conclusão que faz sentido: casais que haviam se unido havia pouco tempo são menos calejados para enfrentar o maremoto que atingiu a praia conjugal na onda do vírus. Os parceiros mais longevos já tinham passado por outras crises. Talvez ilesos, talvez feridos. E muitos aprenderam a sair delas juntos.
Aprendemos todos nós, aliás. Os porquês desse boom “separatista” e suas consequências levaram a um escrutínio por parte da comunidade científica, de onde emergiu uma montanha de evidências que trazem luz à questão – algumas, surpreendentemente, contrariando o senso comum.
Descobrimos que, embora os maridos sejam menos fiéis e menos comprometidos com o relacionamento, não são eles que mais querem abandonar o barco. E que os efeitos colaterais dessa decisão são bem piores para as crianças do que se imaginava.
É o que você vai ler nas próximas páginas.
Acomodados
Os homens são menos fiéis. Essa foi a conclusão de um estudo realizado pelo YouGov, grupo internacional de pesquisa e análise com base em Londres. Questionados sobre fidelidade, 25% deles afirmaram que já haviam traído. Entre as mulheres, só 13% admitiram ter se envolvido em atividades extraconjugais
Eles são menos comprometidos com a relação também. Um estudo da Universidade de Denver (EUA) apontou que os homens se mostram menos engajados com a felicidade conjugal em 22,8% dos casos; as mulheres, em 12,4%. Os que se esforçam menos pelo relacionamento, segundo a pesquisa, são os que provocam mais brigas.
E isso influencia demais nos rumos do casamento: a falta de comprometimento foi identificada como o principal motivo para divórcios, segundo outro estudo da Universidade de Denver, seguida por infidelidade e excesso de discussões.
Paradoxalmente, essa falta de comprometimento masculina não significa que os homens queiram se separar. Eles costumam ser mais acomodados do que elas com o que não os satisfaz na vida conjugal. Os pesquisadores descobriram que, quando as mulheres se tornam desinteressadas em seu casamento, a união não costuma durar dois anos (54% dos casos). Já quando eles são os indiferentes, a probabilidade de rompimento nesse período é menor (29%). Ou seja, o homem que não mexe um dedo para melhorar a relação também não toma iniciativa de dar um fim ao matrimônio.
A pandemia deixou mais clara do que nunca essa diferença na hora de tomar a decisão. Segundo o escritório britânico Stewarts, enquanto, em 2019, 60% dos pedidos de divórcio partiram delas, em 2020 essa porcentagem aumentou para 76%.
As mulheres é que não aguentavam mais.
Em comunicado sobre o levantamento, Carly Kinch, sócia da firma de advocacia, afirmou que o peso do acúmulo de trabalho profissional e cuidados parentais acaba caindo na mulher, o que ajuda a explicar esse aumento na iniciativa delas. “Algumas foram para o lockdown pensando ‘vai ser maravilhoso, passaremos muito tempo de qualidade juntos, e meu parceiro, que normalmente trabalha longe de casa, estará por aqui e vai poder me ajudar mais’. Mas a realidade se mostrou bem distante disso.”
Independência financeira
O último século provou que a história do divórcio é também a história da emancipação feminina. Quando a mulher tem independência financeira, o divórcio se torna uma opção mais natural para elas do que para eles.
Apesar da recente tendência de queda, o século 20 nos EUA, onde os índices de divórcios sempre foram bem documentados, ilustra bem. Nos loucos anos 1920, em que o país vivia uma fase de esplendor financeiro, mulheres saíram às ruas reivindicando seu direito ao voto (no movimento sufragista), deixaram de ficar presas em casa e perderam a vergonha de beber e fumar em público. Foi quando o índice de divórcios por mil habitantes, que era de 0,7 no fim do século 19, saltou para 1,7. Parecia que a fragilidade dos casamentos seria um caminho sem volta, mas não foi assim.
Nos primeiros anos da década de 1930, marcados pela Grande Depressão, o índice regrediu a 1,3. E voltou a subir justamente quando a economia americana subiu junto: durante a Segunda Guerra Mundial. Foi também quando o país mandou 16 milhões de soldados para os fronts na Europa e no Pacífico, e sobraram vagas para mulheres no mercado de trabalho.
Assim, o índice que estava em 1,3 separação para cada mil americanos em 1933 pulou para 3,4 em 1947, apenas dois anos após o conflito global. Alta de 160%. Para se ter uma ideia do que isso representou, a taxa foi maior que no pico dos rebeldes anos 1960, com pílula anticoncepcional e tudo – 3,2 em 1969.
Na Suécia, país que está em primeiro lugar no ranking de igualdade entre os gêneros, a Universidade de Estocolmo apresentou um estudo, em janeiro de 2020, que investigou o quanto as promoções na carreira influenciam a probabilidade de divórcio. O resultado: em companhias com mais de cem funcionários, as mulheres são duas vezes mais propensas a pedir a separação três anos após serem promovidas a CEO.
Na política sueca ocorre algo semelhante: enquanto 85% das mulheres que perdem uma eleição para Prefeitura ou o Congresso continuam casadas após oito anos, esse índice baixa para 75% entre as eleitas. No caso dos homens, não há diferença perceptível entre eleitos e não eleitos.
Mas, claro, os espaços conquistados pela mulher não têm a explicação completa para essa linha evolutiva do divórcio. A revolução sexual mostrou ao mundo que havia amor e sexo também fora do casamento monogâmico. Uma transformação de mentalidade que tem reflexos até hoje, no século 21, com seus “trisais” (relacionamentos a três), casamentos abertos, uniões assexuadas e outras formas de conviver.
Não à toa, o auge do divórcio aconteceria no fim dos anos 1970. Foi uma década que consolidou os valores libertários da geração do amor livre. Em 1979, o índice de separados em cada mil americanos chegaria ao seu topo, nunca mais atingido: 5,3.
Se a separação era boa para ambas as partes, por que não? O problema é que, frequentemente, há uma terceira parte, sem voz na hora em que uma decisão tão importante quanto essa é tomada: os filhos.
Traumas
Um estudo holandês publicado em março deste ano, com base em dados extraídos de 17 países, revelou o efeito negativo do divórcio sobre a escolaridade dos jovens. E mostrou que ele é mais forte para quem tem pais com ensino superior completo.
Isso porque esses filhos passam pelo luto de uma mudança maior na vida, que inclui a perda de recursos financeiros. Já os pais com baixa escolaridade costumam oferecer menos – não há aula de natação, intercâmbio no exterior e lazer de alto padrão quando o foco é garantir comida na mesa. Nesses casos, a queda é menor, assim como o sofrimento.
Seja entre ricos ou pobres, o pior é quando o divórcio vem acompanhado de muita briga entre os pais, claro. E essa foi uma constante na dura convivência da pandemia. O documentário Erasing Family (“Apagando a Família”), de 2020, dirigido pela americana Ginger Gentile, toca no delicado tema da alienação parental, sob o ponto de vista do sofrimento causado às crianças que se veem privadas da convivência com o pai ou a mãe (tem no YouTube).
Alienação parental é quando o principal guardião da criança reiteradamente coloca barreiras no contato entre seu ex e seus filhos, frequentemente com o objetivo de se vingar.
Richard Gardner, um professor da Universidade de Columbia (EUA), foi quem identificou, nos anos 1980, um conjunto de transtornos psicológicos chamado de Síndrome da Alienação Parental. A pressão do cuidador principal para que o pequeno desenvolva sentimentos de rejeição ao pai ou a mãe pode provocar na criança sintomas de inibição, medo e bloqueios na aprendizagem, além de uma percepção de mundo maniqueísta.
Na vida adulta, esse filho alienado do convívio paterno ou materno pode desenvolver depressão crônica, distúrbios de identidade, incapacidade de adaptação, sentimento de culpa e tendência a projetar uma personalidade agressiva.
Mesmo quando os pais não falam mal um do outro para o filho, a separação já é uma mudança difícil de processar na mente infantil. “Há um conflito entre dois amores”, diz a psicóloga clínica Viviane Almeida Santos, especializada em tratamento de casais. “Com isso, o nível de ansiedade da criança fica alto e ela cria mecanismos de dissociação. Quando está com a mãe, não consegue falar sobre o pai, e vice-versa. Vira um tabu. E isso acaba se estendendo para outras áreas da vida. Ela perde a capacidade de cruzar assuntos.”
A psicóloga lembra que pais e mães separados precisam ser transparentes e estabelecer diálogos que deixem claro um fato importante: a criança não deve se ver como parte dessa relação que terminou. Geralmente, ela não tem nada a ver com o fim do amor romântico entre seus pais, infidelidade, suas divergências por dinheiro ou valores pessoais.
Nesta nova era do divórcio, vale um alerta: mesmo nas separações mais amigáveis – e até afetuosas –, romper um relacionamento de anos segue sendo tão difícil quanto sempre foi. Os primeiros tempos tendem a ser um período deprimente, de luto mesmo, acordos difíceis e de pisar em ovos. Se você se separou, vale a pena um esforço a mais para manter o bom convívio. Não apenas pelo bem dos filhos – se o casamento produziu crianças. É importante honrar uma história que, em boa parte do tempo, foi partilhada com a pessoa que um dia você amou como se fosse a única.
Fonte: Superinteressante
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