As definições de ata notarial e de escritura pública são bem delineadas, portanto, nesse ponto, não há considerável divergência. Apenas para reforçar tais conceitos, trazemos a seguir o quadro elaborado pelos ilustres notários e doutrinadores Paulo Roberto Gaiger Ferreira e Felipe Leonardo Rodrigues, em obra inédita de autoria de ambos, sobre a qual podemos afirmar se tratar da mais completa obra existente sobre ata notarial do país (Ata Notarial – Doutrina, Prática e Meio de Prova. 2.ed.rev.ampl. e atual. – Salvador: Editora JusPodivm, 2020. pp 149 e 150).

 

 

O tema que divide opiniões entre os notários brasileiros e estudiosos do Direito Notarial e Registral surge especificamente quando se trata da escritura pública declaratória e a sua distinção em comparação com a ata notarial.

 

Isso ocorre devido aos costumes praticados no notariado ao longo do tempo, cujos profissionais, em sua maioria, utilizaram a escritura pública declaratória para atender a vontade das partes quando, apenas, quisessem declarar algo. Assim, notamos que há um conflito entre os conceitos legais dos atos e os costumes na prática notarial.

 

Por um lado, há quem defenda que, quando as partes procuram um notário com a única finalidade de declarar algo, o instrumento público adequado seria a escritura pública declaratória. Por outro lado, há quem defenda que nessa situação, o instrumento público adequado seria a ata notarial.

 

Entre os adeptos da primeira corrente (escrituras declaratórias), existem duas interpretações sobre o tema, uma mais rígida e outra mais moderada. Na mais rígida se defende, por exemplo, que, caso houver qualquer tipo de declaração de pessoas durante a realização de uma ata notarial, essa declaração não poderia ser incluída na ata, pois toda e qualquer declaração deve ser formalizada por escritura pública declaratória, sendo necessário, nesse caso, realizar outro ato público em apartado, ou seja, a ata notarial para a constatação do que lhe foi requerido, e a escritura declaratória para as declarações que surgirem durante o ato.

 

A interpretação mais moderada, ainda dentro da primeira corrente (escrituras declaratórias), apesar de defenderem a escritura pública declaratória como o instrumento adequado quando se tratar de apenas colher declarações, não se recusam, no exemplo acima, a colher depoimentos ou declarações que possam surgir durante a realização da referida ata notarial, pois entendem que, neste caso específico, tais declarações surgiram durante a realização da ata, posto que seria o ato notarial secundário ou complementar, sendo a ata, nessa situação, o ato notarial principal ou primário.

 

Já a segunda corrente (ata notarial) defende que toda vez que se tratar de um ato que não contenha um negócio jurídico, onde a vontade das partes não resulta em um efeito jurídico obrigacional, o instrumento adequado sempre será a ata notarial, independentemente de as partes comparecerem no cartório somente para declararem algo. Essa corrente defende a literalidade dos conceitos legais de cada ato, não fazendo exceção quando se trata de declarações.

 

Paulo Roberto Gaiger Ferreira e Felipe Leonardo Rodrigues, que são defensores da segunda corrente (ata notarial), na obra já citada, trazem um exemplo bem simples para se distinguir esses dois instrumentos públicos. Os autores citam duas situações parecidas, mas que pela existência de um complemento em uma delas, faz com que o instrumento público adequado se torne outro.

 

O exemplo trazido por eles é de quando duas pessoas comparecem perante um tabelião para declarar, apenas, que vivem juntas, ou seja, essa não seria uma declaração de vontade das partes e sim o relato de um fato que é existente e está sendo declarado por elas, sendo, portanto, o instrumento adequado para o caso a ata notarial. Porém, nesse mesmo exemplo, se estas duas pessoas, além de declarar o fato existente de viverem juntas, complementam que essa união se submeterá às regras de determinado regime de bens, haverá, então, na explicação dos autores, uma declaração de vontade que resultará em um efeito jurídico obrigacional ou real, passando, a partir daí, a ser uma escritura pública declaratória o instrumento adequado ao caso.

 

O fato é que ao longo do tempo a ata notarial foi muito pouco utilizada, e a grande maioria dos notários se acostumou com a escritura pública declaratória para toda e qualquer declaração que as partes viessem a realizar dentro do Tabelionato. Mesmo que hoje já tenhamos estudos mais avançados sobre a ata notarial, a exemplo da brilhante obra já mencionada, e que o uso da ata notarial é cada vez maior em nosso país, muitos notários ainda não se acostumaram com a ideia de lavrar uma ata notarial em casos que sempre utilizaram a escritura pública declaratória. O próprio nome do ato, que contém a palavra “declaratória”, faz com que muitos afirmem ser esse o instrumento correto, pois alegam que não se trata de uma escritura comum, que envolve necessariamente um negócio jurídico, e sim de uma escritura específica, a qual serve para colher a declaração das partes.

 

O problema que surge sobre o tema não é tanto sobre a instrumentalização pública adequada para tais declarações, pois apesar de serem instrumentos distintos, ambos são aceitos, inclusive no Poder Judiciário. Também não encontramos nenhum caso de punição a notário por praticar de uma forma ou de outra, pois essa divergência está mais ligada à técnica notarial, não gerando riscos ou prejuízos aos usuários com a utilização de ambas. O que se torna preocupante é outra situação, que abrange até onde vão os limites de tais interpretações e seus reflexos para a sociedade.

 

Desse modo, o que gostaríamos de chamar a atenção não é sobre qual interpretação está correta e deva ser usada, até porque, como já dito, qualquer que seja a forma que o notário optar lavrar, mesmo que não seja o instrumento adequado, será aceito, como vem sendo ao longo de todos esses anos. O que, para nós, é preocupante, são os apegos a certos formalismos na hora de lavrar o ato, os quais podem resultar em sérios prejuízos aos usuários dos serviços notariais.

 

Um exemplo deste “excesso de formalismo”, ao nosso ver, dá-se no momento da realização da ata notarial para fins de usucapião extrajudicial. Há entendimento no sentido da impossibilidade de colheita de depoimentos e declarações de pessoas que residem ao redor do imóvel usucapiendo, quando da realização da ata notarial, por mais que tais depoimentos sejam importantíssimos para contribuir na comprovação do tempo de posse, sob alegação de não ser possível inserir declarações de pessoas em atas notariais, sendo o instrumento adequado uma escritura pública declaratória. Vejam, com todo respeito a quem pensa de modo diferente, isso vai totalmente de encontro com o que se espera da usucapião extrajudicial, que é agilidade e economia.

 

Como o requerente irá conseguir que várias pessoas que moram ali na vizinhança compareçam no cartório para realizarem tais declarações? Ou, mesmo que o cartório pratique o ato em diligência, realizando várias escrituras públicas declaratórias com as pessoas que moram próximo ao imóvel, quanto ficaria o valor de todos esses atos ao final? Portanto, a recusa em colher tais depoimentos na própria ata se mostra muito prejudicial às partes e à Sociedade, inviabilizando a usucapião extrajudicial e ferindo frontalmente dois princípios notariais, o da economia para as partes e o da eficiência.

 

Mas então qual seria a saída para determinados conflitos de interpretação?

 

Entendemos e respeitamos as duas maneiras de interpretação sobre ata notarial e a escritura pública declaratória, sendo ambas aceitáveis, contanto que não sejam prejudiciais aos usuários; portanto, evitar excessos nas interpretações pode ser o caminho mais adequado e justo.

 

Uma sugestão, também, seria aceitar a forma escolhida pela parte, desde que essa seja aceita pela jurisprudência. Exemplo: o notário que entenda que se trata de escritura declaratória quando duas pessoas somente declaram que moram em referido endereço, caso lhe seja solicitado que faça o ato como ata notarial, poderia lavrá-lo como tal, mesmo não concordando, tendo em vista ter respaldo doutrinário e jurisprudencial. E o contrário também poderia ocorrer, ou seja, nessa mesma situação, o notário que entenda ser a ata notarial o instrumento adequado, poderia lavrá-lo como escritura pública declaratória, caso a parte insista que o ato seja lavrado como tal.

 

Não havendo prejuízos para as partes, e sendo o ato defensável e aceito, inclusive em juízo, se necessário for, entendemos não existir motivos para a recusa, pois estaria o notário atendendo a um pedido do usuário, em relação ao qual não existe ilegalidade presente. Isso não significa dizer que os notários devem sempre agir assim, estamos tratando especificamente dos casos que envolvem as polêmicas de interpretação sobre onde deve ser usada a ata notarial, e onde deve ser usada a escritura pública declaratória.

 

Porém, o que não deve ocorrer, sob pena de sérios prejuízos aos usuários dos serviços notariais, a nosso ver, são recusas como as que trouxemos de exemplo neste singelo artigo, de se negar a constar depoimentos e declarações em atas notariais, quando estas surgirem durante a constatação, tanto em atas para fins de usucapião extrajudicial ou em qualquer outra ata notarial de constatação que o notário esteja em diligência.

 

Por fim, esclarecemos que elaboramos uma sugestão de enunciado para a 1ª Jornada de de Direito Notarial e Registral, realizada nos dias 04 e 05 de agosto de 2022, porém, infelizmente, por um erro de envio de nossa parte, o enunciado não foi nem para a apreciação inicial. A proposta de enunciado que elaboramos foi a que segue.

 

Enunciado: As Atas Notariais para fins de Usucapião Extrajudicial podem conter depoimentos, testemunhos ou quaisquer espécies de declarações de pessoas em seu conteúdo, sem a necessidade de se formalizar escrituras públicas declaratórias em apartado.

 

Tal proposta será enviada para a próxima Jornada, para que possa ser avaliada pela comissão de Notas, com a intenção de evitar possíveis recusas que, além de causarem prejuízos aos usuários, prejudiquem a evolução da usucapião extrajudicial no país.

 

Assim entendemos, respeitando as opiniões contrárias.

 

Fonte: Migalhas

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