Há temas em Direito Civil que são extremamente caros e, dentre eles, os contratos merecem especial atenção. Para alguns doutrinadores, o contrato é para o civilista algo semelhante ao crime para o penalista [1]. Contratos são nada mais que “um acordo entre duas ou mais pessoas com o objetivo de impor obrigações juridicamente exigíveis para elas” [2].
Para além da importância ao Direito Civil, os contratos ganham, frente sua interdisciplinaridade, contornos interessantes, sobretudo no Direito Tributário. É importante lembrar que o Código Tributário Nacional [3] afirma que a lei tributária não pode atribuir conceitos e formas diversas do disposto na lei civil. Ou seja, os “conceitos e formas de direito privado são vinculantes no âmbito do direito tributário” [4].
Isso posto, duas modalidades contratuais chamam a atenção em relação ao Direito Tributário. A primeira é a procuração em causa própria e a segunda é a do contrato de doação com cláusula de reversão.
Dois questionamentos surgem diante desses dois contratos: (1) Seria possível a incidência de ITBI (Imposto Sobre a Transmissão de Bens Imóveis) em procurações em causa própria para tradição de bens imóveis? (2) Quando da efetivação da cláusula de reversão nos contratos de doação, haverá incidência de ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação)?
De antemão, entendemos que, para os dois questionamentos, a resposta correta é não: não há incidência de ITBI e nem ITCMD. Explica-se.
Quanto ao primeiro questionamento, o Código Civil, em seu artigo 685 [5], descreve a figura do mandato em causa própria. Segundo disposição legal, essa modalidade contratual refere-se a um poder de representação, em que o outorgado, no próprio interesse, pode realizar atos pelo outorgante [6]. Os efeitos desse negócio jurídico podem resumidos em:
“o negócio jurídico referente à procuração em causa própria outorga ao procurador, de forma irrevogável, inextinguível pela morte de qualquer uma das partes e sem dever de prestação de contas, o poder formativo (direito potestativo) de dispor do direito (real ou pessoal) objeto da procuração” [7].
Ou seja, o efeito jurídico que precisa ser ressaltado para responder o primeiro questionamento é o de que a procuração em causa própria não transmite o direito objeto do negócio jurídico, mas sim o poder de transferi-lo.
Esse entendimento foi referendado pelo STJ (Informativo 695/2021), que firmou a tese de que: “A procuração em causa própria (in rem suam) não é título translativo de propriedade.”
Tal espécie contratual é amplamente utilizada no mercado imobiliário, a fim de facilitar a venda de imóveis a terceiros. Ou seja, é muito comum a utilização de procuração em causa própria como meio de “alienar bens imóveis”. Ao invés do comprador celebrar um contrato de compra e venda com o vendedor, este concede uma procuração em causa própria ao comprador, conferindo poderes para alienar o bem para si mesmo ou para terceiros.
Imaginemos a seguinte situação: Rhaenyra assina uma procuração em causa própria, mediante pagamento prévio do valor do bem, concedendo poderes para que Daemon aliene o seu castelo para si mesmo ou para terceiros. Daemon, de posse desses poderes, aliena o imóvel à Aemond, que o transfere para seu nome, mediante pagamento de quantia superior.
Da situação hipotética, é possível presumir que houve duas transmissões onerosas de propriedade, o que ensejaria incidência do ITBI. Esse entendimento é utilizado por alguns municípios [8][9], ao inserirem como incidência de ITBI o mandato em causa própria ou com poderes equivalentes para a transmissão de bem imóvel.
Tal posicionamento é altamente equivocado. Primeiramente, quando do julgamento do AREsp 1.760.009 [10], o STJ reafirmou entendimento, segundo o qual o fato gerador do ITBI somente ocorre com a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o registro no cartório de imóveis.
Ou seja, o ITBI só será devido com a transferência do imóvel. Conforme demonstrado, a procuração em causa própria não é título translativo de propriedade, o que se permite com a mandato é o poder de transmitir o bem imóvel, situação diametralmente oposta.
O Fisco municipal poderia ainda alegar que incidiria o ITBI, pois a procuração deveria ser registrada na matrícula do imóvel no correspondente cartório de registro de imóveis. Contudo, a Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), quando da disciplina dos atos passíveis de registro [11], não listou o mandato em causa própria. Em outros termos, ante a taxatividade dos atos que podem ser registrados na matrícula, o mandato em causa própria não é contemplado.
O entendimento pela não incidência do ITBI no caso descrito é referendado pela doutrina, seja civilista ou tributária. Vejamos:
“Entendemos que não há fraude fiscal, pois o mandatário “em causa própria”, além de ter-se valido de um negócio jurídico expressamente previsto em lei (no art. 685 do CC), jamais se tornou titular do direito real de propriedade e, portanto, nunca desfrutou dos privilégios desse tipo de direito (como a oponibilidade erga omnes), de modo que seria descabido cobrar ITBI para essa hipótese a pretexto de simulação. Não há simulação nem fraude. Entendemos ainda que a procuração em causa própria não pode ser objeto de registro na matrícula do imóvel em razão da taxatividade dos atos de registro (art. 167, I, da LRP), mas poderia ser objeto de averbação por força da natureza exemplificativa dos atos de averbação (art. 246, LRP), mas isso não terá o condão de transferir o direito real de propriedade” [12].
De maneira semelhante, Harada [13]:
“Ora, a outorga do mandato em causa própria, por si só, é irrelevante para deflagrar o fato gerador que ocorre apenas com a transmissão de bem imóvel, que se dá com o registro do título de transferência no registro imobiliário competente, conforme art. 1.245 do Código Civil que é vinculante ao Direito Tributário por força do art. 110 do CTN.
O mandato em causa própria não transfere a propriedade, como se depreende do art. 685 do CC:
‘Art. 685 – Conferido o mandato com cláusula ‘em causa própria’, a sua revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis e imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais’.
Como se verifica, é a própria norma que faz alusão à faculdade de transferir para si ou a terceiros o bem imóvel objeto do mandato. Enquanto não exercida essa faculdade e levada a registro o ato de transferência não há que se cogitar da cobrança do ITBI, sendo juridicamente irrelevante para fins de ocorrência do fato gerador a irrevogabilidade ou a perenidade do mandato.”
Isto posto, quando ao primeiro questionamento, concluímos que não há qualquer respaldo jurídico para a incidência do ITBI em face da procuração em causa própria.
De maneira semelhante, infere-se que não há incidência da ITCMD quando da efetivação da cláusula de reversão nos contratos de doação.
Sabemos que existem diversas modalidades de doações, que podem variar de acordo com os elementos contidos, como a existência ou não de condições, as motivações que ensejaram na celebração do contrato, entre outros. Sublinha-se o caso das doações com cláusula de reversão.
Nessa doação, consoante disposto no artigo 547[14] do Código Civil, poderá o doador “estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver ao donatário”. Em outras palavras, o doador, por mera liberalidade, transfere um bem, gratuitamente, com a restrição de que, sobrevindo a morte antes doador, o bem retornará a este sem reservas.
Essa cláusula é uma condição resolutiva, já que a eficácia da doação depende de um evento futuro.
“A cláusula de reversão configura condição resolutiva, subordinando a eficácia da doação a um evento futuro que se verificará, ou não, antes do outro. Se o donatário morrer antes do doador, o bem reverte ao patrimônio deste; se o doador falecer antes do donatário, consolida-se neste. Embora a morte do donatário seja acontecimento certo, a doação a retorno é condicional porque pode ocorrer antes ou depois do falecimento do doador. Por outro lado, a causa da extinção do direito do donatário é prevista no contrato. Diz-se, por isso, que quem recebe por doação com cláusula de reversão tem sobre o bem doado propriedade resolúvel, por isso que, no próprio título de sua constituição, se encontra o princípio que a tem de extinguir, realizada a condição resolutiva” [15] (grifo nosso).
Como se vê, a doação com cláusula de reversão só permite a aquisição da propriedade resolúvel do bem. Essa informação é de suma importância para se verificar a incidência do ITCMD sobre a reversão do bem doado.
O ITCMD é um tributo estadual que incide sobre transmissão de bens mortis causa ou por doação. O artigo 35 do CTN [16] afirma que o fato gerador será a transferência, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis como definidos na lei civil e a transmissão, a qualquer título, de direitos reais sobre imóveis e suas cessões de direito. O dispositivo relembra a importância de serem respeitados os conceitos da lei civil, neste caso o de transmissão da propriedade.
Não se discute a incidência do ITCMD quando da primeira doação, o que se está questionando é se haveria a incidência do ITCMD quando do retorno do bem pela cláusula de reversão. Conforme relatado, o tributo será devido quando da efetiva transmissão da propriedade. Quando o doador transfere a propriedade para o donatário, há um aumento da situação patrimonial do donatário e consequente diminuição do patrimônio do doador.
Destaca-se que sob o aspecto material, o ITCMD somente incide sobre a doação com acréscimo patrimonial em favor da parte donatária [17].
Quando da reversão, não há os elementos configuradores da doação, porquanto não há aferição de vantagem patrimonial ao donatário por mera liberalidade do doador. Ou seja, por ser uma condição resolutiva e verificada a condição, qual seja: a morte do donatário antes do doador, os bens revertem ao domínio do doador, resolvendo-se, com a reversão, os direitos reais concedidos pelo donatário.
Entende-se por isso, que não se trata de negócio novo e sim de restauração da situação primitiva, o que afasta, portanto, a incidência do ITCMD, já que não se caracteriza nova doação, mas simples devolução do bem.
Em que pese alguns estados entenderem pela tributação na reversão [18], nos alinhamos ao entendimento do TJ-DF, segundo o qual a reversão não é fato gerador do ITCMD, já que não configura doação nova. Veja-se:
“JUIZADO ESPECIAL DA FAZENDA PÚBLICA. TRIBUTÁRIO. ITCD. HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA E FATO GERADOR. REVERSÃO DA DOAÇÃO. CONCEITO DE DOAÇÃO ESTABELECIDO PELO CÓDIGO CIVIL. SITUAÇÃO RELATADA QUE NÃO CONFIGURA FATO GERADOR DA HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA DO TRIBUTO. DEVER DE RESTITUIÇÃO DO ITCD PAGO A TÍTULO DE REVERSÃO DA DOAÇÃO. INDÉBITO TRIBUTÁRIO. ÍNDICE DE ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA. INCIDÊNCIA DA LC 435/2001 ALTERADA PELA LC 943/2018. APLICAÇÃO EXCLUSIVA DA TAXA SELIC. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO EM PARTE. […] Em seu recurso, alega que houve equívoco na interpretação da norma tributária, uma vez que no caso concreto ocorreu a reversão do contrato de doação, caracterizando uma nova doação operada mediante a reversão do usufruto em virtude da morte do donatário, o que também é hipótese de incidência do ITCD, uma vez que neste momento ocorre uma nova transmissão, pois o imóvel retornou ao patrimônio do doador. Neste sentido, destaca que o artigo 3º da Lei Distrital nº 3.804/06 estabeleceu a incidência do ITCD ‘nas transmissões por doação, na data em que ocorrer o fato ou formalização do ato ou negócio jurídico’. Portanto, aduz que não ocorreu o pagamento em duplicidade, mas sim duas transmissões da propriedade, razão pela qual mostra-se correta a tributação efetivada pelo réu. […]. Para analisar a alegação de que teria ocorrido uma ‘segunda doação’, deve-se também transcrever o §1º, do artigo 2º, do Decreto nº 34.982/2013 que, regulamentando a Lei Distrital nº 3.804/2006, dispôs que ‘considera-se doação qualquer transferência não onerosa de bens ou direitos’. IX. Contudo, não se pode ignorar que o artigo 110 do CTN estabelece que ‘a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”. X. Em consequência, não obstante o conceito de doação estabelecido na lei tributária local, a eventual ocorrência de doação exige a adequação ao artigo 538 do Código Civil, que assim estabelece: ‘Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”. Ademais, o artigo 547 daquele diploma legal esclarece a possibilidade de reversão da doação, ao dispor que: ‘O doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver ao donatário’. XI. Na espécie, quando do reingresso do imóvel no patrimônio dos genitores, não existiu um contrato onde a pessoa teria, por liberalidade, transferido o seu patrimônio para outra, como exige o Código Civil. Na verdade, o que ocorreu foi apenas a reversão da doação, estabelecida no artigo 457 do Código Civil, eis que na escritura pública de doação não existia ‘duas transferências sucessivas’, mas sim apenas uma única doação que resultou em uma propriedade resolúvel, pois subordinada a uma condição resolutiva. XII. Portanto, face a ausência de uma segunda doação, constata-se a não ocorrência do fato gerador, inexistindo a obrigação tributária relativa à cobrança do ITCD. Em tempo, também cumpre destacar que sequer existe hipótese de incidência relativa à ‘reversão da doação’, razão pela qual esta não é apta a fundamentar a cobrança do ITCD, o que confirma que a situação relatada nos autos não se amolda à previsão legal da incidência do ITCD” [19].
Destarte, ante às perfeitas ponderações elencadas pelos magistrados do TJ-DF, verifica-se inviável a cobrança de ITCMD quando a reversão da doação, já que não se trata de nova doação e, assim sendo, não enseja a tributação.
A análise dos institutos civis é de suma importância para os demais ramos do direito, sobretudo quando há, como no Direito Tributário, norma impositiva para aplicação das definições e conteúdo dos conceitos civis nas relações tributárias. Tal determinação deve ou deveria ser uma “regra de ouro”, pois facilitaria a primazia de uma unidade da interpretação da lei tributária.
Fonte: Conjur
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