Passamos pela vida manifestando nossa vontade, exprimindo nossos desejos, exercendo o poder de decidir o que vamos comprar, onde vamos trabalhar, com quem vamos relacionar. O que raramente imaginamos é que nos últimos momentos de vida talvez não consigamos expressar a nossa vontade sobre como queremos morrer.

 

A filosofia chama esse poder de decidir sobre nossa vida de autonomia, uma palavra originada do grego significa “aquele que estabelece suas próprias leis”. Para Immanuel Kant, o grande filósofo da liberdade, a autonomia é precisamente a condição da liberdade moral.

 

Conforme vai amadurecendo, a pessoa vai adquirindo a capacidade de discernir o que é correto e errado, o que é bom e ruim, e vai tecendo a sua própria individualidade. No Brasil, a lei entende que essa capacidade de discernimento é alcançada aos 18 anos, quando a pessoa adquire a maioridade e passa a ser civil e penalmente responsável pelos seus atos.

 

Em nossa Constituição, a dignidade humana também repousa na liberdade de a pessoa ser e de expressar-se de forma singular, única, e justamente por isso as suas decisões precisam ser respeitadas, desde que, obviamente, não afrontem as regras de convivência legitimamente estabelecidas pelas leis.

Nesse contexto, parece claro que se a pessoa exerce sua vontade, com autonomia, durante toda a vida adulta, então ela também tem o direito de decidir como quer morrer. O problema está no fato de que pode ocorrer de ela não conseguir expressar sua vontade ao fim da vida. Para esse caso, no entanto, ela pode deixar uma declaração escrita, que no Brasil é chamada de “diretivas antecipadas da vontade do paciente” ou, simplesmente, de “testamento vital”.

 

Em 2012 o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução nº 1995 que dispõe sobre as “diretivas antecipadas da vontade do paciente”, conceituando-as como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.

 

No mesmo ano, o Conselho da Justiça Federal publicou o resultado dos estudos de direito realizados na chamada “Jornada de Direito Civil”, e dentre os enunciados está o 528, que diz que é válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado “testamento vital”, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade.

 

É preciso dizer que o testamento vital não serve para estabelecer disposições para depois da morte. Nesse caso fala-se em testamento propriamente dito, que é aquele disposto no artigo 1857 do Código Civil, segundo o qual “toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte”.

 

Na prática, o testamento vital serve para dizer ao médico e aos familiares se o paciente, caso fique impossibilitado de expressar a sua vontade, deseja ou não ser submetido a um tratamento para prolongar a vida quando estiver em fase terminal. Caso o paciente decida por não se submeter a tratamento, então ele estará autorizando o médico a realizar a chamada “ortotanásia”.

 

A ortotanásia foi autorizada em 2006 pela Resolução nº 1805 do Conselho Federal de Medicina. Ali decidiu-se que é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

 

Vale lembrar que não se pode confundir ortotanásia com eutanásia. Esta última, que é crime no Brasil, consiste na abreviação do tempo de vida do paciente, seja de maneira ativa, como quando se aplica alguma substância, ou de maneira passiva, quando se deixa de realizar algum tratamento que seja potencialmente eficaz.

 

O que caracteriza a eutanásia é a abreviação do tempo de vida do paciente, por uma ação ou omissão, com finalidade de cessar o sofrimento. Diferentemente, na ortotanásia o que se pretende é evitar o prolongamento artificial da vida, por meio de aparelhos ou tratamentos, quando a morte é inevitável.

O testamento vital é o documento no qual o paciente em fase terminal deixa escrito se deseja, ou não, ser submetido à eutanásia, onde ela é permitida, como na Holanda, ou ser submetido à ortotanásia, como no Brasil.

 

Os Cartórios de Notas estão aptos a fazê-lo, mas ele também pode ser redigido em instrumento particular e entregue aos cuidados de um amigo ou familiar. Neste caso, recomendo ao menos reconhecer a firma, para não gerar dúvidas depois.

 

Ademais, para se fazer um testamento vital não é preciso estar doente. Uma pessoa saudável pode querer registrar a vontade de ser, ou de não ser, submetida a procedimentos ou tratamentos inúteis em termos terapêuticos, mas que prolongam a vida. Nesse caso, ela estará se antecipando quanto a eventos, como acidentes de trânsito, que comprometam a capacidade de expressar sua vontade.

 

Uma das vantagens do testamento vital é retirar dos familiares a difícil decisão de “desligar o aparelho” de suporte à vida. Também pode haver uma vantagem econômica, caso os gastos com o prolongamento da vida possam fazer falta para a família. Agora, imagine o paciente em fase terminal, no leito hospitalar, consciente e ouvindo tudo, mas sem conseguir expressar sua vontade, como num caso de paralisia. Para essa situação, o testamento vital pode ser o único meio de as pessoas saberem que ele não quer mais viver daquele jeito.

 

Finalmente, o testamento vital pode ser utilizado para prolongar a vida o máximo possível, na crença de que a medicina possa encontrar uma solução para o caso do paciente, seja qual for ele, afinal de contas, a esperança é a última que morre.

 

Um abraço e até a próxima!

 

Fonte: Primeira Página

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