A liberdade absoluta invocada é equivocada, desprezando as formas de vida não contempladas pela prévia escolha dos genitores, onde não se é viabilizada a seleção do sexo da prole com fundamentação na autonomia privada e no direito à informação

 

Em recente decisão, o Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos de processo que corre em segredo de justiça, recusou o pedido de um casal que solicitava ao laboratório médico a informação do sexo dos embriões gerados por de fertilização in vitro. Os autores do processo apresentaram a argumentação de que a rejeição do pedido inicial, feito diretamente ao laboratório, feria diretamente seus direitos à informação e à autodeterminação informativa disposta na Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD. Para eles, era uma obrigação o fornecimento de dados sensíveis, nesse caso, o material genético1.

 

Trazemos à tela, ensinamento da Dra. Patrícia Pinheiro (2018, p. 26)2 ao tratar sobre a conceituação de dados sensíveis. Elucida ela que:

 

São dados que estejam relacionados a características da personalidade do indivíduo e suas escolhas pessoais, tais como origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente a saúde ou a vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural.

 

A argumentação não foi o bastante para convencer os desembargadores da 31ª Câmara de Direito Privado do Tribunal que negaram o pleito. Segundo trouxe o relator do caso, desembargador Francisco Casconi, a discussão levantada em nada tinha a ver com o quanto disposto na Lei Geral de Proteção de Dados. Para ele, a LGPD tem como ponto precípuo a preservação de direitos de liberdade e privacidade e não a garantia indiscriminada a qualquer dado. Esse é, inclusive, o entendimento do Supremo Tribunal Federal, ao julgar pedido cautelar na ADIn 6.387, tratando que a autodeterminação informativa não possui caráter absoluto. Ressaltou a ministra Rosa Weber que os direitos e garantias fundamentais encontram limites nos demais direitos consagrados pela Constituição Federal.

 

Os desembargadores elucidaram que muito embora o acesso à informação seja uma garantia constitucional, esse está distante de ser um direito absoluto, isso porque há outros valores e princípios constitucionais que podem ser impactados pelo uso desordenado do direito à informação. Não há o que se olvidar quanto a importância dos direitos fundamentais, entretanto, é necessário ter em mente que esses não são absolutos, tal como nos traz Raquel Denize Stum que nos ensina que “a função social dos direitos fundamentais os torna limitáveis, e que essa limitação são advindas da própria Carta Magna e de dispositivos legais de semelhante força”.3

 

Outro ponto ressaltado pelos magistrados é que o pedido formulado na inicial é tratado pelo Código de Ética Médica e pela Resolução 2.320/22 do Conselho Federal de Medicina (CFM) que traz, de forma expressa, a proibição de se utilizar de técnicas, tal como a fertilização in vitro, como meio de escolha do sexo do embrião gerado ou de qualquer outra característica física e/ou biológica, exceto nos casos em que se deseja evitar possíveis doenças. Trata o ponto 5 da Resolução citada que:

 

As técnicas de reprodução assistida não podem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo (presença ou ausência de cromossomo Y) ou qualquer outra característica biológica da criança, exceto para evitar doenças no possível descendente.

 

Nesse sentido, nos cumpre fazer uma ressalva quanto aos avanços tecnológicos já existentes. Neles são compreendidas técnicas avançadas para constatação e identificação de prováveis doenças, por meio de diagnóstico pré-natal, diagnóstico pré-implantação, terapia gênica, dentre outras. Tal como nos garante Barbas (2007, p. 75)4:

 

Graças aos progressos científicos operados na área do genoma humano, será dada primordial ênfase à prevenção e à predição da doença para evitar a necessidade do seu tratamento. Desenvolver-se-ão os testes genéticos que permitem diagnosticar com bastante antecedência as enfermidades. Aperfeiçoar-se-á o conhecimento das condições ambientais responsáveis pelo aparecimento da enfermidade.

 

Continuou o desembargador relator dizendo que qualquer escolha prévia dos pais quanto ao sexo do bebê gera uma “coisificação” do ser humano, comprometendo a dignidade da pessoa humana caso fosse possível estabelecer a forma e o gênero como alguém deve nascer. É preciso ter em mente que a dignidade da pessoa humana é um princípio consagrado pela constituição federal, sendo tido como o princípio base de todos os outros direitos fundamentais. Para Silva (1998, p. 92), “a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”5.

 

O desembargador trouxe à luz um importante debate ao tratar que as técnicas de reprodução assistida devem ser usadas sempre para o bem-estar humano e que deve haver condenação quando alçadas para a eugenia parental (processo seletivo dos pais). Sobre o tema, Stella Maris Martinez6 nos elucida que:

 

Estabelecerão os Estados um “controle de qualidade” que defina quais as características devem ter os seres humanos para integrar-se à comunidade? Embora estas opções possam desenvolver-se em determinadas ideologias, parece-nos claro que devem merecer repúdio absoluto por parte de um Estado Social Democrático de Direito, em cuja estrutura filosófica não podem merecer acolhida. O respeito à dignidade humana impede taxativamente todo tipo de discriminação.

 

Por fim, trata que a liberdade absoluta invocada é equivocada, desprezando as formas de vida não contempladas pela prévia escolha dos genitores, onde não se é viabilizada, juridicamente, a seleção do sexo da prole com fundamentação na autonomia privada e no direito à informação. Julgado improcedente o pedido, o Tribunal coaduna com o entendimento de limitação de direitos subjetivos face a princípios fundamentais – nesse caso, dignidade da pessoa humana e afasta, em duras palavras, uma verdadeira coisificação da vida humana, que não pode ser considerada um meio para satisfação de um fim.

 

Fonte: Migalhas

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