Embora o tema tenha ressurgido modernamente com destaque em decorrência da grande expansão que apresentaram os ativos digitais – “criptoativos” -, sobretudo na última década, fato é que a necessidade de se criar métodos para garantir a integridade e autoria de um dado documento se faz presente há séculos nos serviços notariais e registrais encarregados, justamente, de prover, com alto grau de acuidade, as comunicações jurídico-sociais que por eles trafegam de “fé pública”.

 

Em outras palavras, a tão sonhada segurança da “blockchain”, ou de outras tecnologias com o mesmo intuito, tem seu correlato funcional “analógico” nos serviços notariais e cartoriais1. Aquilo que modernamente se apresenta como “criptografia” poderia, sem tanto glamour, ver suas raízes remontadas – “versão beta” – à antiga “esfragística”.

 

Não é coincidência que a “Lei orgânica” dos notários e registradores – Lei 8.935, de 18 de novembro de 1.994 -, a medida provisória que criou a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil – e permitiu a assinatura digital reconhecida em lei de forma ampla – MP 2.200-2, de 24 de agosto de 2001 -, e a recente lei das assinaturas digitais – Lei 14.063, de 23 de setembro de 2020 – se refiram, todas elas, à necessidade de garantir “a autoria e a integridade do documento”2, “a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica”3 ou a “publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”4.

 

De forma geral, todas as leis visam, nesse aspecto, evitar a negação da informação pelo emissor, após ser ela recepcionada pelo receptor5. Em outras palavras, permitem ao receptor ter a segurança de que a informação recebida é exatamente aquela expedida, e foi, com suficiente grau de certeza, emitida por aquele que se diz, no mesmo documento, ter sido o seu autor.

 

Da mesma forma, tanto o sistema “ICP-Brasil”, quanto o sistema notarial possuem, em grandes linhas, a mesma estrutura arquitetônica, sendo garantidos, em última análise, por uma hierarquia de certificação pública que possui um grande banco de dados de seus possíveis usuários6.

 

Assim, pela estrutura ICP, os usuários que desejam assinar documentos digitais pela forma mais ampla prevista em lei são previamente cadastrados pelas “Autoridades de Registro – AR”, as quais se encontram vinculadas às “Autoridades Certificadoras – AC” que, por fim, têm sua própria validação dada pela “Autoridade Certificadora Raiz – AC raiz”, sendo esta última o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação – ITI7. Uma grande rede de validação eletrônica centralizada é construída com a captação de informações biográficas dos possíveis usuários de forma descentralizada, ficando cada identidade vinculada a uma chave cuja validade, em última análise, se encontra garantida pelo ente público central.

 

Por sua vez, no âmbito dos tabelionatos de notas, a identidade do possível usuário é verificada por um escrevente capacitado, em face dos documentos de identificação previstos em lei, e conforme critérios de documentoscopia e grafotecnia padrão, que permitam auferir, com grande grau de exatidão, a veracidade das informações que, uma vez compondo a base de dados de cada cartório, serão validamente utilizadas como referência para a autenticação de todo e qualquer documento assinado com a mesma grafia depositada, e independente mesmo da vontade de seu próprio autor8. Nesse sentido, tem-se uma rede descentralizada de recepção, certificada por cada notário, enquanto profissional do Direito, fiscalizada pelo Poder Judiciário, a formar um verdadeiro bem público, repositório de comparação a toda a sociedade – independente da vontade do próprio depositante e signatário em cada documento apresentado.

 

A descer ao nível de segurança da autenticação do documento considerado individualmente, em relação à ICP-Brasil, verifica-se que a maior parte da população se encontra alijada de conhecimentos computacionais básicos, a desde logo restringir a capacidade de fraude de um grande número de possíveis contrafatores. Ademais, a garantia técnica da integridade do documento – leia-se, que o documento não foi alterado entre a sua formalização e a sua recepção – e ao mesmo tempo de autoria, se dá pela ação conjunta da “função hash” e da estrutura de chaves públicas-privadas por ela criada. A chave privada é aquela responsável por criptografar o documento assinado em cada assinatura por seu portador, gerando concomitantemente um “hash” que se alteraria na hipótese de qualquer mínima alteração de pedaço de informação digital assinado. Por sua vez, a chave-pública, compondo, justamente, a infraestrutura de chaves-públicas, permite a decriptografia por parte do receptor que, com base na cadeia de chaves emitidas e validadas, saberá também que aquele documento foi criptografado pela específica chave-privada atribuída a determinada pessoa na base pública de certificação, tendo-lhe chegado sem alterações se o hash for compatível.

 

A grande vantagem da assinatura eletrônica se encontra, assim, na integridade, pois o documento encaminhado não poderá sofrer qualquer mínima alteração: até mesmo um “espaço” a mais entre duas palavras quaisquer do texto assinado alteraria o seu “hash” e consequentemente denunciaria sua falta de integridade. Por outro lado, a grande desvantagem se encontra na comprovação de autoria, eis que, embora a MP determine que a chave privada seja de “exclusivo controle, uso e conhecimento” de seu titular9, fato é que lamentavelmente a maior parte dos certificados digitais em uso no país não se encontra em mãos de seus titulares, estando, antes, em mãos de assessores e contadores para o uso perante órgãos administrativo-estatais e fiscais, recordando-se, inclusive, que até mesmo um Ministro da Justiça já teve oportunidade de repudiar o uso de sua assinatura eletrônica certificada10.

 

Por seu turno, os documentos notarizados não possuem garantia de suas mínimas alterações, como a têm os digitais por meio da função “hash”. Nem por isso deixam de ser adotadas medidas de autenticação que visam a sua integridade. Assim, uma série de normas escritas e não escritas fazem pressupor a autenticidade de um documento, de modo que sinais nem sempre explícitos ao cidadão médio sem conhecimento específico se fazem verdadeiros denunciadores de maiores cuidados que degradam a confiabilidade no documento. Diversas normas estaduais proíbem, por exemplo, o reconhecimento de firma em documentos em branco, ou que contenham, no contexto, espaços aptos à adulteração11. Igualmente, as mesmas normas determinam que os sinais públicos sejam integrados em etiquetas, assinaturas e selos que produzam uma única estrutura de difícil alteração, inclusive com impossibilidade de retirada ulterior sem destruição de suas partes12. Ao fim, muitas normas não escritas são também aplicadas no dia a dia do tabelionato, como ligação de páginas por carimbos, a atestar a continuidade do documento, pequenos erros propositais de grafia em sinais e carimbos a atestar a autenticidade ao leitor treinado, entre outros. Por sua vez, a contrafação da autoria do documento exigiria do contrafator ao menos alguns dotes artísticos, que podem mesmo ter seu êxito bloqueado através de subsequentes níveis de confiabilidade de autoria, como a exigência de reconhecimentos de firma “por autenticidade” – em que a parte assina em frente ao notário -, ou por meio de escrituras públicas – a forma mais solene de garantia não só da autoria, mas da própria vontade.

 

Ao menos em relação à assinatura manuscrita, não vige, ainda, o costume de se pedir para que se assine pelo efetivo autor, como acontece em relação às assinaturas digitais, a demonstrar que a própria sociedade vê em tais atos físicos uma maior solenidade e os trata com maior cuidado.

 

Em síntese, as assinaturas digitais constroem, por meio de uma estrutura tecnológica, documentos de integridade quase incontestável e de autoria às vezes duvidosa, sem qualquer qualificação da vontade emanada. Por sua vez, as assinaturas manuscritas contam com métodos analógicos que nem sempre garantem a integridade do documento, mas que encontram em sua autoria uma maior assertividade, podendo, inclusive, atestar a qualificação da vontade livre e informada a depender do método utilizado para sua coleta.

 

Nesse sentido, o que se tem do manuscrito ao digital é uma evolução técnica, mas não uma alteração de substância, ambos buscando certificar a autoria e integridade do documento que precisa circular e ser recepcionado com alta confiabilidade.

 

Contudo, mesmo esta evolução é parcial, e atinge ainda apenas parte do afazer notarial.

 

Nesse aspecto, embora a evolução tecnológica seja capaz de construir um arcabouço mais ou menos confiável para a função autenticadora exercida pelos notários no mundo “analógico”, ainda não se encontrou substituto para a função qualificadora, em específico, aquela que qualifica efetivamente a vontade das partes no ato notarial, ou seja, os aspectos “intrínsecos” da autoria negocial, e não apenas a autoria documental enquanto elemento “extrínseco”, tão somente probatório.

 

Denuncia essa diferença o fato de que mesmo os notários, ao transporem parte de sua atividade para o meio digital, na forma das chamadas “assinaturas digitais notarizadas” pelo módulo “e-not assina”, reconhecerem que “Os atos notariais de reconhecimento de firma e da assinatura eletrônica em documento digital se limitam à verificação da assinatura no documento com base naquela depositada em Tabelionato ou correspondente ao certificado digital notarizado, respectivamente, sem que haja análise da legalidade e conformidade jurídica do conteúdo do negócio ou ato jurídico no qual a assinatura física ou digital esteja inserida”13.

 

Ora, o específico da função notarial estaria, assim, não na construção do documento em si, enquanto material externo representativo do fato jurídico14, mas na qualificação interna do próprio ato jurídico (lato sensu) no documento representado. Em outras palavras, no cuidado com a vontade juridicamente relevante para o Direito, e não tão somente na forma como ela se documenta. Se a confiabilidade decorrente do afazer notarial poderia eventualmente ser substituída pela confiança no sistema eletrônico, como uma forma adequada de certificação autenticadora, o mesmo não pode ser dito ainda da qualificação do negócio enquanto manifestação jurídica das vontades, ao menos não enquanto não se outorgue a uma máquina, por exemplo, a análise sobre a “liberdade” e grau de consentimento informado de um ser humano15.

 

A verdadeira “função notarial” não é mecânica – embora seja técnica em outro sentido. O notário é, antes de tudo, profissional de confiança da parte16, dotado de saber jurídico especializado, que qualifica não apenas a identidade e certifica os fatos, mas, sobretudo, qualifica a vontade livre e isenta de vícios e seus momentos de atuação no mundo jurídico. A certificação é poder instrumental e acessório. O cerne da atividade é a formatação, muitas vezes artesanal, do negócio em cada manifestação. Na interação entre sistema psicológico-humano e sistema jurídico-social, o notário é aquele encarregado de “conoscere il volere che colui che vuole non conosce: ecco il drama del notaio”17.

 

Em outro sentido, como já alertado, na maior parte das vezes não é verdadeiro que o responsável pelo certificado digital de determinado titular seja, como queria a lei, o próprio titular. E não é por outra razão que uma grande parte dos países do globo não preveja a regulamentação de assinaturas digitais quando os atos dizem respeito a negócios tão centrais como os imobiliários18. Nesse aspecto, sempre vai ser necessário o questionamento de quanto se quer passar ao digital aquilo que, embora talvez com alguns inconvenientes, é preciso reconhecer, se faria, de forma muito mais segura, de modo analógico19.

 

Isso não quer dizer que mesmo o cerne da atividade notarial não deva sofrer os influxos da era digital. O que se deve buscar é a digitalização do notário – e não a sua substituição pela tecnologia20. Assim a indispensável audiência, ainda que por videoconferência, prevista para as “escrituras eletrônicas” pelo Provimento nº. 100, de 26 de maio de 2020, do Conselho Nacional de Justiça, que criou a plataforma “e-notariado”. Pode-se levantar questionamentos se a mencionada videoconferência comporta o mesmo grau de certificação que a assinatura física com colheita da manifestação de vontade in loco21, mas ao menos ainda se tem, mesmo que por vias digitais, a certificação da vontade humana por outro sistema humano.

 

E assim o é inclusive por uma tomada de decisão filosófico-política fundamental, o que já é matéria para outro texto.

 

Fonte: Migalhas

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