Um ano intenso no Direito Imobiliário. Momento de olhar pelo retrovisor, a fim de entender onde estamos e pensar e planejar o futuro. Neste artigo, seleciono em poucas palavras o que, na minha visão, aconteceu de mais relevante.

 

Legislativo

 

O Congresso Nacional produziu poucas leis que afetam diretamente o setor imobiliário, as quais, mesmo em pequeno número, inundaram nossa área de novidades.

 

A Lei 14.620/23 trouxe a nova fase do Programa Minha Casa Minha Vida, importantíssimo para a política habitacional, e que impulsiona em boa medida o PIB imobiliário. Mas não só isso. A mesma lei:

 

(i) passou a permitir a adoção do patrimônio de afetação, antes restrito às incorporações, também aos loteamentos. Todavia, a Lei não alterou a legislação fiscal para permitir a adoção do Regime Especial de Tributação (RET), com redução de alíquotas, que foi o principal estímulo para incorporadores adotarem a técnica da segregação patrimonial do empreendimento. Sem o RET, o mercado se empolgará com a novidade?

 

(ii) permitiu expressamente os editais e leilões eletrônicos na execução extrajudicial da alienação fiduciária;

 

(iii) alterou o art. 1.473 do Código Civil, para explicitar que a propriedade superficiária e os direitos oriundos da imissão provisória na posse podem ser objeto de hipoteca;

 

(iv) implementou novidades na regularização fundiária urbana de interesse social (Reurb-S), ao promover, na Lei 13.465/17, alteração do art. 37 e inserção do art. 37-A. O art. 44 ganhou o parágrafo 8º, que destrava a finalização do procedimento no registro de imóveis: na abertura das matrículas individuais de ocupantes não constantes da lista de beneficiários da CRF, constará o titular originário, na condição de proprietário anterior, com a menção, no campo relativo ao proprietário atual, de que “o futuro proprietário será oportunamente citado na matrícula quando do envio de listas complementares de beneficiários”; e

 

(v) inseriu na Lei 14.063/20 o art. 17-A, pelo qual “As instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública e os partícipes dos contratos correspondentes poderão fazer uso das assinaturas eletrônicas nas modalidades avançada e qualificada”.

 

Dia 30 de outubro foi publicado o importantíssimo Novo Marco Legal das Garantias (Lei 14.711/23). Uma avalanche de alterações:  cartórios, garantias imobiliárias, loteamentos, debêntures, extratos eletrônicos, fundos de investimento, concurso de credores, precatórios e créditos judiciais, entre outras. Foram tantas que deixo de expô-las em texto. E se estiver curioso:

 

(i) veja aqui o panorama geral das novidades, que já começaram a impactar o dia-a-dia do profissional do Direito Imobiliário;

 

(ii) confira aqui, os 54 dispositivos alterados da Lei 9.514/97, com o texto comparado, e aqui, em esquema visual, as 13 alterações mais importantes; e

 

(iii) aqui você encontra uma tabela com as atuais semelhanças e diferenças entre a alienação fiduciária de bem imóvel e a hipoteca.

 

No apagar das luzes, dia 20/12/2023 foi promulgada a Emenda Constitucional 132, que, após décadas de discussões, finalmente implementa, sob aplausos e críticas, a reforma tributária. Destaco os impactos diretos[1] para o Direito Imobiliário (não identifiquei modificações sobre o ITBI):

 

(i) Entidades religiosas (art. 150, V, “b”): o dispositivo, que antes previa imunidade fiscal apenas para templos de qualquer culto, agora estende o privilégio para “entidades religiosas”, “inclusive suas organizações assistenciais e beneficentes”;

 

(ii) Correios, autarquias e fundações públicas: (art. 150, §2º): As autarquias e fundações públicas eram imunes aos impostos sobre o patrimônio, e agora o §2º estende a imunidade a impostos sobre a renda ou serviços entre os entes públicos, além de incluir os Correios nesse conjunto de beneficiados;

 

(iii) ITCMD: em razão da reforma: (a) o ITCMD sobre bens móveis, títulos e créditos, que antes competia ao Estado “onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador”, agora pertence ao Estado “onde era domiciliado o de cujus, ou tiver domicílio o doador”, caracterizando uma alteração mais de redação do que de regra (art. 155, §1º, II); (b) o imposto tem sua progressividade fixada em razão do quinhão, do legado ou da herança (art. 155, §1º, VI); e (c) o ITCMD não incide sobre transmissões para instituições sem fins lucrativos com finalidade e relevância pública e social, inclusive as organizações assistenciais e beneficentes de entidades religiosas e institutos científicos e tecnológicos, e por elas realizadas na consecução dos seus objetivos sociais, observadas as condições estabelecidas em lei complementar (art. 155, §1º, VII); e

 

(iv) IPTU: Agora não há mais dúvida: o valor venal dos imóveis (base de cálculo do IPTU) pode ser atualizado diretamente pela Prefeitura, conforme critérios estabelecidos em lei do Município, sem a necessidade de aprovação de lei específica de atualização.

 

E acabam de sair os pareceres das subcomissões de revisão do Código Civil. Aqui é possível fazer o download do relatório completo, e visualizar as atualizações propostas, muitas delas com impacto relevante no Direito Imobiliário. O caminho é longo, mas o avanço é notável! Parabéns a todos os que estão participando desse trabalho monumental.

 

Judiciário

 

Na área extrajudicial (regulada pelo Poder Judiciário), o novo Código Nacional de Normas, editado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), consolidou diversos atos normativos anteriormente publicados, aplicáveis à área extrajudicial. No Brasil, aliás, as delegações dos cartórios são promovidas por cada ente Federativo. A seleção, por concurso público, de cada delegatário, a normatização infralegal e a fiscalização cabem ao Tribunal de cada Estado e do Distrito Federal. Um sistema com muitos méritos, mas que gera uma distorção inevitável: intensa heterogeneidade de entendimentos notariais e registrais. O que se faz no Rio de Janeiro não se consegue em São Paulo. E vice-versa. Vamos para o Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul, e cada lugar terá, em certa medida, suas regras próprias. A lei é federal, mas o entendimento é local. Se, por exemplo, o Código de Normas de um Estado manda o registrador exigir uma determinada certidão negativa, de pouco adianta um acórdão do Supremo Tribunal Federal declarando a exigência inconstitucional. Enquanto a regra estiver ali, o registrador com a espada da Corregedoria Geral sobre sua cabeça, provavelmente exigirá a certidão. Vivemos uma pirâmide invertida de Kelsen. Daí que o novo Código Nacional deve ser celebrado, por ser um passo notável rumo à homogeneização paulatina de práticas em todo o país.

 

Em setembro, o Provimento CNJ 150/23 (desenhado aqui) regulamentou a adjudicação compulsória extrajudicial, trazendo luz para o procedimento, e potencializando sua aplicação Brasil afora.

 

Destaque, ainda, para os avanços do registro de imóveis brasileiro, que brilha cada vez mais no cenário mundial, e só para ficar em dois exemplos:

 

(i) O mapa interativo está melhor a cada dia, um verdadeiro Google Earth do Direito Imobiliário, onde é possível obter informações extremamente úteis para auditorias jurídicas: matrículas, unidades de conservação, dados minerários, tombamentos, quilombos, último registro, entre outros. Difícil não se viciar. Salve no seu Favoritos. E use sem moderação. O projeto merecidamente recebeu, do CNJ, o Prêmio Solo Seguro 2023. Aqui você acessa o mapa, o vídeo explicativo e uma sugestão de minissérie para se ter a dimensão do quão revolucionária essa ferramenta pode ser; e

 

(ii) O ranking nacional de usucapião extrajudicial é de grande utilidade, inclusive para os advogados visualizarem de antemão se determinado cartório costuma finalizar muitos ou poucos procedimentos dessa natureza. Na imagem, os 20 primeiros lugares no país em out/23 (mas ressalto que o ranking é relativo, pois a plataforma considera os dados do Diário Eletrônico do RIB/ONR, e, portanto, não computa as usucapiões de Estados que utiliza(va)m os Diários de Justiça Eletrônicos estaduais, a exemplo do Paraná).

 

O STJ, em 2023, seguiu julgando muitos casos sobre o Direito Imobiliário. Para ver os principais acórdãos, confira aqui uma seleção das decisões divulgadas nos Informativos de Jurisprudência de mai/21 a dez/23, organizados por temas.

 

E algo que até parece mentira, e que estava fora do radar de muita gente. Mais de 25 anos após a edição da Lei 9.514/97, a alienação fiduciária ainda estava sob grave risco. Havia no STF um recurso extraordinário com repercussão geral (RE 860631) questionando a constitucionalidade da execução extrajudicial da garantia. Em outubro, por maioria (houve quem votasse pela queda da AF, e imaginem o tsunami que isso poderia gerar), o STF fixou a seguinte tese: “É constitucional o procedimento da Lei nº 9.514/1997 para a execução extrajudicial da cláusula de alienação fiduciária em garantia, haja vista sua compatibilidade com as garantias processuais previstas na Constituição Federal”. Não posso deixar de mencionar a forma distorcida com que parte da imprensa divulgou o julgamento, publicando que “bancos podem tomar imóveis de devedores sem decisão judicial”. Um desserviço à informação.

 

IBRADIM

 

Por fim, o Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário. O IBRADIM segue sendo uma supermáquina de produzir conhecimento, conexões e amizades, e que este ano realizou, com o engajamento de suas comissões temáticas e diretorias estaduais, nada menos do que 304 eventos de Norte a Sul do país, além de um congresso memorável (confira aqui os melhores momentos). Sem contar as diversas publicações. E nosso adorado IbradimCast, cujas conquistas estão aqui. Um instituto cada vez mais forte, cada vez mais relevante. Difícil não se apaixonar.

 

Então, caro leitor, se conseguiu chegar até aqui sem partir para algo mais útil no seu dia, só posso admirar sua paciência e resiliência, ou quem sabe um sacrifício por pura amizade. Muito obrigado de coração a todos que me ensinaram, a todos que se dispuseram a me ouvir, e a todos que de alguma forma contribuíram para um Direito Imobiliário mais justo, mais técnico e mais acessível. Que tenhamos um fim de ano com amor em família, saúde e momentos de alegria, e que possamos recarregar nossas baterias para recomeçarmos com tudo o próximo ciclo. Que venha 2024!

 

Fonte: Migalhas

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