O anteprojeto de reforma do Código Civil faz expressa menção às diretivas antecipadas de vontade (DAV), contudo, vai além da (necessária) inovação e inventa uma (desarrazoada) diretiva antecipada de vontade.

 

Assim, o objetivo deste texto é apresentar de forma sucinta as razões pelas quais a forma como os documentos de DAV são tratados no anteprojeto precisa de reforma, sob pena de a abordagem normativa destes documentos já nascer velha e, o pior, disforme.

 

Há dois artigos que tratam das diretivas antecipadas, dispostos em livros diferentes, a saber:

 

Livro I – Parte Geral

 

  • Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

 

  • § 1º É assegurada à pessoa natural a elaboração de diretivas antecipadas de vontade, indicando o tratamento que deseje ou não realizar, em momento futuro de incapacidade.

 

  • § 2º Também é assegurada a indicação de representante para a tomada de decisões a respeito de sua saúde, desde que formalizada em prontuário médico, instrumento público ou particular, datados e assinados, com eficácia de cinco anos.

 

  • § 3º A recusa válida a tratamento específico não exime o profissional de saúde da responsabilidade de continuar a prestar a melhor assistência possível ao paciente, nas condições em que ele se encontre ao exercer o direito de recusa.

 

  • Livro IV – Direito de Família

 

  • Art. 1.778-A. A vontade antecipada de curatela deverá ser formalizada por escritura pública ou por instrumento particular autêntico.

 

  • “Art. 1.778-B. O juiz deverá conferir prioridade à diretiva antecipada de curatela relativamente:

 

  • I – a quem deva ser nomeado como curador;

 

  • II – ao modo como deva ocorrer a gestão patrimonial e pessoal pelo curador;

 

  • III – a cláusulas de remuneração, de disposição gratuita de bens ou de outra natureza.

 

  • Parágrafo único. Não será observada a vontade antecipada do curatelado quando houver elementos concretos que, de modo inequívoco, indiquem a desatualização da vontade antecipada, inclusive considerando fatos supervenientes que demonstrem a quebra da relação de confiança do curatelado com a pessoa por ele indicada.”

 

O simples fato de os documentos de diretivas antecipadas serem tratadas de modos diferentes em dois títulos diferentes já demonstra a falta de compreensão sobre o tema. E tal demonstração é preocupante, notadamente, porque estamos em 2024 e já há uma vastíssima construção normativa estrangeira sobre os documentos de DAV, que se originaram nos anos 1960.

 

Apesar de o art. 15 conter inúmeras impropriedades terminológicas – como será visto a seguir – ele se refere, realmente, aos documentos de diretivas antecipadas de vontade, ou seja, documentos de manifestação prévia do paciente, que produzirão eficácia quando e se o outorgante ficar gravemente doente e impossibilitado de manifestar vontade. Os documentos de DAV, portanto, são manifestação de autonomia prospectiva para cuidados, tratamentos e procedimentos de saúde.

 

Em contrapartida, os arts. 1.778-A e 1.778-B inovaram ao nomear a “autocuratela1” de “diretiva antecipada de curatela”, instituto que não existe em ordenamentos jurídicos que positivaram os documentos de DAV. O uso do termo “diretiva antecipada de curatela” tem o potencial de confundir a aplicação da autocuratela e impedir o avanço de outros (verdadeiros) documentos de DAV. Inclusive, a própria justificativa do anteprojeto  – “Inovação que também merece destaque é a diretiva antecipada de curatela, uma espécie de ‘testamento para a vida’, em que o interessado delineia a forma como deseja ser tratado, no caso de perda da sua autonomia cognitiva”- já demonstra essa confusão.

 

A ideia de que o indivíduo tem o direito de planejar seus cuidados de saúde remonta à segunda metade do século XX e é produto do reconhecimento da autonomia da pessoa sobre seu corpo. Nesse contexto, surgem nos EUA os documentos de manifestação prévia de vontade do paciente – comumente chamados de documentos DAV – que partem da ideia de que toda pessoa tem autonomia prospectiva sobre seus cuidados de saúde futuros.

 

Em 1967, a Sociedade Americana para a Eutanásia desenvolveu a ideia de um documento de manifestação antecipada de cuidados de saúde a ser usado em situações em que o paciente estiver impossibilitado de expressar seus desejos. Tal documento recebeu o nome de living will e, em 1969, foi sistematizado em um artigo científico escrito por Luis Kutner2, advogado representante da entidade. Kutner propôs que essa manifestação de vontade se dê como um adendo ao consentimento informado feito em cirurgias e procedimentos complexos ou ainda como um documento autônomo, feito especificamente com a finalidade de recusa de tratamento em caso de terminalidade.

 

Tal documento foi renomeado para direct for phisicians, pelo Natural Death Act, lei californiana de 1977.3 Em 1983, a Califórnia publicou o California’s Durable Power of Attorney for Health Care, reconhecendo o direito de o paciente nomear um procurador para tomar decisões médicas quando estiver impossibilitado de fazê-lo.

 

Em 1990, a PSDA – Patient Self Determination4, lei federal sobre os direitos dos pacientes, dispôs especificamente sobre o direito dos pacientes a manifestarem sua vontade prévia por meio de documentos de diretivas antecipadas, reconhecendo, naquele momento, duas espécies: Living will e durable power of attorney for health care. Este modelo foi recepcionado por inúmeros países como Espanha, Itália, Argentina, Alemanha, Inglaterra, México, etc.

 

Ocorre que, como os documentos de DAV são reflexo das conquistas dos pacientes e nas últimas décadas a compreensão de autodeterminação destes foi alargada (e continua a ser), novas espécies de documentos de diretivas surgiram e, atualmente, há oito recepcionadas na doutrina jurídica estadunidense:

 

  • Testamento vital;
  • Procuração para cuidados de saúde;
  • Diretivas antecipadas psiquiátricas/para saúde mental;
  • Diretivas antecipadas para demência;
  • Ordens de não reanimação;
  • Documentos de recusa terapêutica;
  • Plano de parto;
  • Diretivas de parada voluntária de comer e beber.

 

No Brasil, a recepção dos documentos de DAV aconteceu de maneira sui generis – vez que a primeira norma a tratar do tema foi uma resolução do CFM – o que, possivelmente, influenciou a falta de compreensão destes documentos em nosso país.

 

A resolução CFM 1.995/125 estabeleceu que a manifestação prévia de vontade do paciente deve ser respeitada pelos médicos e que prevalecerá sobre a vontade dos familiares; todavia, seguindo o modelo da lei portuguesa, optou por substituir o termo “testamento vital” pelo gênero, DAV. Em 2017, o Conselho Federal de Enfermagem publicou um novo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem6 replicando as premissas da norma do CFM: Reconhecimento de que as diretivas antecipadas do paciente devem ser respeitadas pelos profissionais e uso do termo diretivas antecipadas como sinônimo de testamento vital.

 

Em 7/5/24, foi publicada pelo Ministério da Saúde a Política Nacional de Cuidados Paliativos7, que apresenta como um de seus princípios a observância à diretiva antecipada de vontade da pessoa cuidada, esclarecendo textualmente que a DAV “compreende o testamento vital ou outro documento em que haja registro expresso das preferências da pessoa com relação a tratamentos ou outras medidas de cuidado quando em condições de saúde irreversíveis e potencialmente terminais.”

 

Sim, é verdade que o termo “testamento vital” é uma má-tradução do termo “living will” e que isso influencia sobremaneira as tentativas de substituí-lo pelo termo “diretivas antecipadas de vontade”. Contudo, os efeitos deletérios desta substituição continuam a reverberar e a redação dos arts. 15, 1.778-A e 1.778-B do anteprojeto de reforma do Código Civil é apenas mais um exemplo disso.

 

Por todo o exposto, entende-se que a manutenção da redação dos referidos artigos não significará a esperada (necessária) inovação, mas sim a positivação do desconhecimento acerca dos documentos de diretivas antecipadas.

 

Diante disso, propõe-se que:

 

O artigo 15, § 1º seja alterado para evidenciar as diversas espécies de diretivas antecipadas;

 

O artigo 15, § 2º seja alterado para:

 

  • Nomear o documento ali disposto como “procuração para cuidados de saúde”;
  • Dispor que a procuração para cuidados de saúde é um documento de representação voluntária e prevalece sobre eventual representante legal;
  • Esclarecer que se trata de uma espécie de documento de diretivas antecipadas;
  • Evidenciar que o procurador para cuidados de saúde não precisa ter vínculo de parentesco ou de casamento com o outorgante;
  • O retirar o prazo de eficácia de 5 anos, pois os documentos de DAV devem ser entendidos como documentos de manifestação de vontade e, portanto, eficazes até que sejam alterados ou revogados pelo outorgante, independentemente de tem mínimo ou máximo. Ademais, o prazo de eficácia de 5 anos é usado pela lei 25/12 de Portugal e os dados portugueses demonstram que a inclusão deste prazo burocratizou o registro destes documentos e contribuiu para a baixa adesão dos cidadãos.

 

O termo “vontade antecipada de curatela”, previsto no art. 1.778-A seja substituído pelo termo “autocuratela”;

 

O termo “diretiva antecipada de curatela”, previsto no art. 1.778-B seja substituído por “autocuratela”.

 

Alternativamente, caso o termo “autocuratela” seja rechaçado, haja a substituição do termo “vontade antecipada de curatela/diretiva antecipada de curatela” por outro que diferencie o instituto dos documentos de diretivas antecipadas de vontade.

 

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1 Coelho, Thaís Câmara Maia Fernandes. Autocuratela. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

 

2 Kutner, L. Due process of Euthanasia: The Living Will, A Proposal. Indiana Law Journal, vol. 44, p. 539-554, 1969.

 

3 Towers, B. The impact of the California Natural Death Act. Journal of Medical Ethics. 1978, n. 4, v. 2, p.96-98. Disponível aqui. Acesso em 16 jul. 2024.

 

4 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Patient Self Determination Act of 1990. Disponível aqui. Acesso em 16 jul. 2024.

 

5 Conselho Federal De Medicina. Resolução 1995/2012. Disponível aqui. Acesso 11 jun. 2024.

 

6 Conselho Federal de Enfermagem. Resolução COFEN 564/2017. Disponível aqui. Acesso 11 jun. 2024.

 

7 Ministério da Saúde. PORTARIA GM/MS Nº 3.681, DE 7 DE MAIO DE 2024. Institui a Política Nacional de Cuidados Paliativos. Disponível aqui. Acesso em 11 jun. 2024.

 

Fonte: Migalhas

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