Em 2020, foram aprovados diversos regramentos europeus sobre a inteligência artificial (IA) no âmbito da União Europeia: 1) nos domínios da educação, da cultura e do audiovisual (2020/2017 — INI); 2) sobre a responsabilidade civil (2020/2014 — INL); 3) sobre a propriedade intelectual (2020/2015 — INI); e 4) sobre IA — Direito Penal e sua utilização pelas autoridades policiais e judiciárias em matéria penal  (2020/2016 — INI).

 

Posteriormente, em 13 de fevereiro de 2024 os 27 Estados-membros da UE aprovaram por unanimidade a Lei da IA, confirmando o acordo político alcançado em dezembro de 2023, e em 21 de fevereiro de 2024 foi criado o Gabinete Europeu para a Inteligência Artificial, sob a égide da Direção-Geral das Redes de Comunicação, Conteúdos e Tecnologias, para apoiar a aplicação do Ato sobre a IA, nomeadamente no que diz respeito à IA de uso geral. Em 21 de maio de 2024 o Conselho Europeu adotou oficialmente a Lei da IA da UE, cujo texto foi publicado oficialmente no jornal oficial europeu em 12 de julho de 2024.

 

O regramento entrou em vigor 20 dias após a sua publicação oficial e será plenamente aplicável 24 meses após a sua entrada em vigor, com as seguintes exceções: 1) em seis meses para os sistemas de IA proibidos; 2) em 12 meses para os GPAI; 3) em 24 meses para os sistemas de IA de alto risco abrangidos pelo Anexo III; e 4) em 36 meses para os sistemas de IA de alto risco do Anexo I. Ainda, os códigos de boas práticas devem ser elaborados em até nove meses da entrada em vigor do regulamento.

 

Hierarquia de normas no âmbito da União Europeia

Preliminarmente, é importante lembrar que a União Europeia se manifesta através de seu Conselho e de seu Parlamento, notadamente, por meio de diretivas, de regulamentos, de decisões, de recomendações e de opiniões.

 

Nos termos do artigo 83 do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), as diretivas fazem parte do direito derivado da UE e são adotadas pelas instituições europeias com base nos tratados. As diretivas devem ser necessariamente transpostas pelos Estados-membros da UE, de modo a terem força de lei nos Estados-membros. Cabe a cada Estado-membro desenvolver a sua própria legislação para determinar a forma como estas regras são aplicadas.

 

No entanto, para evitar que a falta de transposição por parte de um Estado prive os litigantes do benefício da aplicação destas normas europeias, o Tribunal de Justiça da União Europeia considera que, uma vez expirado o prazo fixado para a sua transposição, e desde que sejam suficientemente claras e incondicionais, as diretivas devem ser aplicadas diretamente contra os Estados (e não contra os particulares) pelos órgãos jurisdicionais nacionais, mesmo que sejam contrárias às regras do país em questão.

 

Por sua vez, conforme o artigo 288 do TFUE, os regulamentos são atos legislativos vinculativos que se destinam a ser imediatamente aplicados após a sua entrada em vigor. O regramento aplica-se imediatamente como norma em todos os Estados-membros da UE sem ter de ser transposto para o direito nacional, cria direitos e obrigações para as pessoas, que podem, portanto, invocá-lo diretamente perante os tribunais nacionais e pode ser utilizado como referência pelas pessoas nas suas relações com outras pessoas, com os Estados-membros da UE ou com as autoridades europeias.

 

Os seus efeitos jurídicos são impostos a todas as legislações nacionais de forma simultânea, automática e uniforme.Um regulamento faz parte do direito derivado da UE, o conjunto de leis que derivam dos princípios e objetivos estabelecidos nos Tratados da UE (direito primário). O regulamento destina-se a categorias abstratas de pessoas e não a destinatários identificáveis. É este fato que o distingue de uma decisão, definida no artigo 288.

 

No presente caso, a lei sobre a IA possui a natureza jurídica de regramento (ou regulamento), aplicável nos Estados-membros imediatamente após a sua entrada em vigor.

 

Regramento Europeu sobre a IA

O Regramento Europeu sobre inteligência artificial — doravante denominada apenas de IA —possui 180 artigos com a divisão de 13 capítulos: 1) disposições gerais; 2) práticas vedadas; 3) sistemas de alto risco; 4) deveres de transparência dos fornecedores; 5) modelos de IA de utilização geral; 6) medidas de apoio à inovação; 7) governança; 8) base de dados europeia sobre os sistemas de alto risco; 9) acompanhamento da comercialização de informações e vigilância do mercado; 10) códigos de conduta e diretrizes; 11) delegação de poderes e procedimentos do Comitê; 12) confidencialidade e sanções e 13) disposições finais.

 

O Regulamento estabelece regras gerais para a colocação no mercado, a entrada em serviço e a utilização de sistemas de IA na UE, requisitos específicos para sistemas de IA de alto risco e obrigações para os operadores desses sistemas, regras sobre o controle e a fiscalização do mercado, a governação e a execução, além de medidas de apoio à inovação, com especial destaque para as startup’s.

 

Neste âmbito, é salutar mencionar a qualificação adotada no que concerne ao sistema de IA, “um sistema baseado em máquinas concebido para funcionar com diferentes níveis de autonomia e que pode demonstrar adaptabilidade após a implantação e que, para fins explícitos ou implícitos, infere a partir dos dados que recebe como gerar resultados como previsões, conteúdos, recomendações ou decisões que podem influenciar ambientes físicos ou virtuais”, conforme o artigo 3º do regulamento europeu.

 

O artigo 4º estabelece o respeito pela vida privada e a integridade dos dados pessoais como princípios orientadores do desenvolvimento da IA na Europa. Os criadores deverão, por conseguinte, respeitar os princípios bem conhecidos do RGPD, nomeadamente os princípios da proteção da vida privada desde a concepção/por defeito e da minimização.

 

Também na linha do RGPD, o texto exige agora a realização de avaliações de impacto antes da implantação de AIS de alto risco, conforme o artigo 27 da Resolução do Parlamento Europeu adotada em 13 de março de 2024. Esta avaliação consistirá numa análise destinada a minimizar os riscos relacionados, mais uma vez, com os direitos fundamentais dos cidadãos. Os critérios a ter em conta incluem o âmbito territorial e temporal previsto para a implantação do AIS, as categorias de pessoas em causa e os objetivos perseguidos.

 

Em seu artigo 5˚ a lei europeia classifica a IA em conformidade com os riscos que ela apresenta: 1) Os riscos inaceitáveis são proibidos (por exemplo, os sistemas de notação social adotado na China); 2) Os sistemas de IA de alto risco, que são objeto de regulamentação; 3) Os sistemas de IA de risco limitado, que estão sujeitos a obrigações de transparência mais leves (chatbots e deepfakes) e 4) os sistemas de risco mínimo e não regulamentados (incluindo a maioria das aplicações de IA atualmente disponíveis no mercado único da UE, como os jogos de vídeo e os filtros de spam com IA — pelo menos até 2021; esta situação está a mudar com a IA generativa).

 

No que concerne à governança, o regulamento europeu prevê que cabe ao “Office IA” a aplicação efetiva e a conformidade dos fornecedores de modelos do GPAI. Nesse sentido, dispõe que os fornecedores poderão apresentar queixas ao Gabinete de IA sobre as infrações cometidas pelos fornecedores. O referido gabinete de Inspeção poderá efetuar avaliações do modelo de IGP para analisar a conformidade nos casos em que não foram recolhidas informações suficientes no âmbito dos seus poderes de pedido de informações e investigar os riscos sistêmicos, nomeadamente na sequência de um relatório qualificado do grupo de peritos científicos independentes.

 

Vale ressaltar ainda que no Anexo III (sistemas de alto risco), existe uma previsão interessante concernente à administração da justiça e aos processos democráticos. O documento considera de “alto risco”: 1) Os sistemas de IA destinados a serem utilizados por uma autoridade judicial ou em seu nome em sede de investigação, interpretação de fatos perante a lei e na aplicação da lei a um conjunto concreto de fatos, ou a serem utilizados de forma semelhante no contexto da resolução alternativa de litígios e 2) Os sistemas de IA destinados a serem utilizados para influenciar o resultado de uma eleição ou referendo ou a votação de indivíduos no exercício do seu direito de voto em eleições ou referendos.

 

Os eurodeputados incluíram uma avaliação de impacto obrigatória sobre os direitos fundamentais no regulamento, que também se aplica aos setores da banca e dos seguros. Os sistemas de IA utilizados para influenciar o resultado das eleições e o comportamento dos eleitores são classificados como de alto risco.

 

Ainda, os cidadãos terão o direito de apresentar queixas sobre os sistemas de IA e receber explicações sobre decisões baseadas em sistemas de IA de alto risco que afetem os seus direitos. O não cumprimento das regras pode resultar em multas que variam, dependendo da dimensão da empresa e da infração, entre 7,5 milhões de euros ou 1,5% do volume de negócios e 35 milhões de euros ou 7% do volume de negócios mundial.

 

Por fim, o Regramento Europeu possui 11 anexos: 1) lista da legislação de harmonização da UE; 2) lista de infrações penais; 3) sistemas de IA de alto risco; 4) documentações técnicas; 5) declaração de conformidade da UE; 6) procedimento de avaliação de conformidade no âmbito da UE; 7) conformidade baseada na avaliação do sistema de gestão da qualidade e na avaliação da documentação técnica; 8) e 9) informações necessárias para o registro de sistemas de IA de alto risco; 10) legislação da UE sobre os sistemas informáticas de grande escala no domínio da liberdade, da segurança e da justiça e 11) documentação europeia.

 

Fontes:

 

“ L’Acte sur l’IA de l’UE”. Disponível em: https://artificialintelligenceact.eu/fr/ai-act-explorer/ Acesso em 6 de agosto de 2024.

“Annexe III : Systèmes d’IA à haut risque”. Disponível em: https://artificialintelligenceact.eu/fr/annex/3/. Acesso em 6 de agosto de 2024.

Résolution du Parlement européen du 20 octobre 2020 sur les droits de propriété intellectuelle pour le développement des technologies liées à l’intelligence artificielle (2020/2015(INI)). Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2020-0277_FR.html. Acesso em 6 de agosto de 2024.

 

Fonte: Conjur

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