No último dia 28 de maio, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, exarou a Portaria nº 648/2024, que estabelece diretrizes sobre o uso de câmeras corporais pelos órgãos de segurança pública.

 

O texto guarda características programáticas das normas editadas para regular uma realidade que ainda não se apresenta, pois, de acordo com a CNN Brasil, apenas cinco estados no Brasil utilizam as conhecidas bodycams nas suas polícias militares. Segundo a mesma reportagem, outros nove estados e o Distrito Federal estariam em vias de implementação da tecnologia [1]. Inclusive, a decisão cautelar do STF na ADPF 635 [2], ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) com objetivo de reconhecer e sanar graves lesões a preceitos constitucionais fundamentais, decorrentes da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, ilustra bem a lógica da crescente adoção dessa tecnologia.

 

O legítimo objetivo do partido é enfrentar uma omissão estatal histórica no que tange ao desenho de uma política pública de segurança de caráter institucional, baseada em dados e orientada por um modelo de governança robusto, que entregue, por certo, eficiência, mas também transparência, auditabilidade, prestação de contas e respeito aos demais direitos fundamentais previstos na Constituição, mas também consolidados em legislações infraconstitucionais como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)  e em seus processos de adequação e relatórios de impacto.

 

O que precisamos discutir inicialmente?

Nesse cenário, é importante, antes de discutir se a implementação de câmeras corporais corrobora ou não com este propósito, que se avalie o impacto técnico-jurídico desta atividade. Isso porque as câmeras operacionais portáteis são dispositivos que capturam, no mínimo, registros audiovisuais das interações entre o seu portador e o ambiente em que está inserido.

 

Ou seja, trata-se de um gadget que captura imagens e áudio tanto do seu portador quanto de tudo que o rodeia, limitado apenas pelo raio técnico de captura. Há ainda contratos em que o dispositivo captura, além dos registros audiovisuais, a geolocalização dos portadores — e, pela via indireta, frise-se: de todos aqueles que passam pelo dispositivo.

 

LGPD e bodycams

Como dito acima, sempre que as bodycams capturam uma informação que pode, de maneira direta ou indireta, identificar uma pessoa natural, atraída estará, ainda que em parte, a incidência da LGPD.

 

Apesar de a própria LGPD estabelecer uma limitação material do seu espectro normativo, que, conforme já preleciona o §1º do artigo 4º, deverá ser objeto de legislação específica [3], por hora, as definições legais ainda não vieram [4]. Todavia, isso não significa que a lei não se aplica aos órgãos que atuam típica ou atipicamente com as atividades de segurança pública e de persecução penal.

 

O critério escolhido pela LGPD para retrair, em parte, seu espectro normativo parece ser a finalidade exclusiva da atividade de tratamento examinada, conforme se extrai do artigo 4°, III e seus parágrafos — todos da Lei 13.709/18. Isso porque o conceito legal de tratamento de dados pessoais está previsto no inciso X do artigo 5º da lei. O artigo 6º, I, por sua vez, trata do princípio da finalidade, que demanda a “realização do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades”.

 

Dessa forma, da leitura do texto da LGPD, é razoável que se extraia a seguinte norma: Apesar de sempre dever obediência ao devido processo legal, aos princípios gerais de proteção e aos direitos do titular, a LGPD não se aplica integralmente àquela (e somente a esta) atividade de tratamento cujo escopo sirva exclusivamente à segurança pública ou à persecução penal [5].

 

Dados pessoais, cadeia de custódia, bodycams e integridade da prova

Outro ponto que merece destaque é o reflexo que o manejo dessas informações pode ter na cadeia de custódia da prova penal digital produzida pelos dados capturados pelas câmeras operacionais portáteis.

 

Neste recorte dogmático, sempre que um dado pessoal é capturado por uma câmera operacional portátil operada por um agente do estado que atua nas forças policiais, é possível prever que esses dados podem servir à persecução penal de um fato crime, fazendo com que as imagens, o áudio e a geolocalização capturados constituam-se como vestígio (artigo 158-A, §3º do Código de Processo Penal) no primeiro momento da investigação.

 

Como vestígio, os dados capturados pelas bodycams têm um caminho jurídico determinado com objetivo de preservar características de autenticidade, integridade, disponibilidade e confidencialidade — isso tudo para garantir a cadeia de custódia daquela evidência digital. E a própria portaria reconhece esse complexo desafio quando estabelece como valores norteadores do seu texto normativo:

 

“I – respeito aos direitos e garantias fundamentais

 

VI – qualificar a produção de provas materiais, resguardando a cadeia de custódia a partir de registros audiovisuais

 

IX – assegurar a disponibilidade, integridade, confidencialidade e autenticidade das informações coletadas pelos sistemas de registros audiovisuais”

 

Ocorre que, sem um rigor técnico, orientado, dentre outras, pela ABNT NBR ISO/IEC 27037:2013, que estabelece diretrizes para a identificação, coleta, aquisição e preservação de evidências digitais em diferentes contextos, a evidência digital pode ser facilmente manipulada, alterada ou corrompida, o que geraria um impacto considerável tanto na atividade jurisdicional quanto nas atividades de segurança pública e de persecução penal.

 

Sem garantir o princípio da mesmidade, que, como ensina Geraldo Prado [6], “é o princípio pelo qual se determina que ‘o mesmo’ que se encontrou na cena [do crime] é ‘o mesmo’ que se está utilizando para tomar a decisão judicial”, não há atividade de polícia judiciária juridicamente válida e, como consequência, não poderá haver prestação de atividade jurisdicional que garanta um exame processualmente lícito do acervo probatório.

 

Recentemente, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça [7], por exemplo, decidiu que são inadmissíveis no processo penal as provas obtidas de celular quando não forem adotados procedimentos para assegurar a idoneidade e a integridade dos dados extraídos. Para o relator, ministro Joel Ilan Paciornik,

 

“(…) é indispensável que todas as fases do processo de obtenção das provas digitais sejam documentadas, cabendo à polícia, além da adequação de metodologias tecnológicas que garantam a integridade dos elementos extraídos, o devido registro das etapas da cadeia de custódia, de modo que sejam asseguradas a autenticidade e a integralidade dos dados.

 

(…) o material digital de interesse da persecução penal deve ser tratado mediante critérios bem definidos, com indicação de quem foi responsável pelas fases de reconhecimento, coleta, acondicionamento, transporte e processamento, tudo formalizado em laudo produzido por perito, com esclarecimento sobre metodologia empregada e ferramentas eventualmente utilizadas.”

 

Em uma análise sumária, a lógica aqui seria garantir a proteção contra nulidades jurídicas e injustiças:

 

  • Qualificando a prova, já que não se trata de mero formalismo ou estratégia processual. No processo penal, forma é garantia;
  • Qualificando a tomada de decisão, conferindo maior racionalidade, mais certeza e segurança ao julgador;
  • Legitimando o poder de punir do Estado através do respeito ao devido processo e seus corolários, da entrega de previsibilidade e mitigação de eventual arbítrio da prestação jurisdicional.

 

Ocorre que, diante da volatilidade do ambiente digital, os elementos telemáticos são mais suscetíveis a alterações, o que torna imprescindível a adoção de mecanismos que assegurem a auditabilidade, a repetibilidade, a reprodutibilidade e a justificabilidade dos dados que podem servir como evidência digital (sejam eles vocacionados desde a sua geração a tal, como os dados capturados durante uma ocorrência com relevância penal, ou não, como em um serviço ordinário de patrulhamento de rotina, por exemplo).

 

Questionamentos importantes e necessários

Importante ainda ressaltar a responsabilidade do Estado em garantir que a empresa que opera a tecnologia que se pretende contratar, atue de forma aderente à legislação de proteção de dados e às boas práticas de segurança da informação.

 

Nesse cenário, então, indaga-se se teria o Estado recursos (humanos, técnicos, financeiros etc.) para desenvolver equipamentos de captura e infraestrutura de armazenamento e tratamento de dados análoga ou similar àquela fornecida pelas empresas privadas que hoje prestam esse tipo de serviço para as forças de segurança.

 

Se a resposta a essa pergunta for negativa, duas opções se mostram presentes: ou delega-se parte do poder de polícia estatal para a empresa privada gerenciar a cadeia de custódia das evidências digitais capturadas pelas bodycams, atividade esta definida tipicamente como exclusiva de Estado; ou se cria um modelo estatal de armazenamento e tratamento seguro para o input dos dados em uma infraestrutura pública, que garanta interoperabilidade entre os bancos de dados do Estado e as operações do parceiro privado que capturou as imagens.

 

Caso se permita delegar a gestão da cadeia de custódia para uma empresa privada, quantos sistemas (e quantas empresas) de gerenciamento de cadeia de custódia privados seriam permitidos no cenário nacional? Qual seria o papel do Estado na manutenção da cadeia de custódia dessas evidências? Quais seriam os parâmetros objetivos de auditoria dos sistemas operados pelas empresas?

 

Nenhuma dessas perguntas parece encontrar respostas na Portaria 648/24. A norma até menciona regras para integridade dos registros audiovisuais (artigo 11 a 13), armazenamento (artigo 14 a 17) e acesso (artigo 18 a 21), mas sempre com enfrentamento abstrato.

 

Conclusão

Desta feita, a tendência é que, ainda que se alcance a transparência absoluta das atividades de segurança pública e persecução penal, dois problemas permanecem sem solução: a opacidade do tratamento de dados pessoais pelas empresas que fornecem a tecnologia e a falta de parâmetros técnicos mínimos para viabilizar a utilização dessas imagens como meios de prova no processo penal.

 

É imperioso discutir de maneira interdisciplinar e multissetorial como enfrentar o cumprimento de normas técnicas de segurança da informação e proteção de dados pessoais na implementação das bodycams nas forças policiais sob pena de colocar a própria eficiência das atividades estatais em xeque.

 

Em tempo, como cumprimento de sua competência firmada no texto da Portaria (artigo 6º), espera-se que o próprio Ministério da Justiça edite guias de referência para subsidiar a compreensão dos órgãos de segurança pública quanto às presentes diretrizes e aos demais temas pertinentes (inciso IV).

 

Nada obstante, parece imperioso que todos os atores da academia, da sociedade civil e do governo se unam em busca de um ambiente de construção de futuros possíveis em que diálogos multissetoriais sirvam mais ao desenho efetivo de soluções para os complexos problemas do Brasil do que a discursos políticos em vales do eco sobre pertencimento e manejo ideológico.

 

Referências:

 

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Anteprojeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais para segurança pública e investigação criminal. Disponível em https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/56a-legislatura/comissao-de-juristas-dados-pessoais-seguranca- publica/documentos/outros-documentos/DADOSAnteprojetocomissaoprotecaodadossegurancapersecucaoFINAL.pdf  Acesso em 13 abr 2022.

 

GAMA, Guilherme; LAFORÉ, Bruno. PMs de 5 estados do Brasil usam câmeras nos uniformes; outras 10 UFs devem adorar prática em breve. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/pms-de-cinco-estados-do-brasil-usam-cameras-nos-uniformes-outras-10-ufs-devem-adotar-pratica-em-breve/ Acesso em 08 ago 2024.

 

PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2021, p. 162

 

STF. Supremo Tribunal Federal. ADPF 635. Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5816502 Acesso em 08 ago 2024.

 

STJ. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HABEAS CORPUS Nº 828054 – RN (2023/0189615-0). Disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=242041837&registro_numero=202301896150&peticao_numero=202300906480&publicacao_data=20240429&formato=PDF Acesso em 08 ago 2024.

 

VALADÃO, Rodrigo  Borges; ALVES, Fabrício da Mota: Proteção de Dados Pessoais na Segurança Pública – Breves considerações acerca do art. 4º, inciso III e §1º da LGPD Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/dados-publicos/379087/protecao-de-dados-pessoais-na-seguranca-publica

 

[1] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/pms-de-cinco-estados-do-brasil-usam-cameras-nos-uniformes-outras-10-ufs-devem-adotar-pratica-em-breve/

 

[2] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5816502

 

[3] Ainda em tramitação, o Anteprojeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais para segurança pública e investigação criminal que dispõe sobre o tratamento de dados pessoais realizado por autoridades competentes para atividades de segurança e de persecução penal, com objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural, cujo texto completo encontra-se disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/56a-legislatura/comissao-de-juristas-dados-pessoais-seguranca-publica/documentos/outros-documentos/DADOSAnteprojetocomissaoprotecaodadossegurancapersecucaoFINAL.pdf  – Acesso em: 13/04/2022.

 

[4] A opção por não enfrentar tecnicamente o texto do que se convencionou chamar de Anteprojeto da LGPD Penal foi consciente e motivada pelo fato de que o argumento deste trabalho antecede a discussão sobre a técnica legislativa adotada no PL 1.515/2022, bem como  sobre o seu impacto nas atividades de persecução penal. Estes temas serão abordados em estudo específico.

 

[5] Sobre o tema, leia também: VALADÃO, Rodrigo  Borges; ALVES, Fabrício da Mota: Proteção de Dados Pessoais na Segurança Pública – Breves considerações acerca do art. 4º, inciso III e §1º da LGPD Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/dados-publicos/379087/protecao-de-dados-pessoais-na-seguranca-publica .

 

[6] PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2021, p. 162

 

[7] Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=242041837&registro_numero=202301896150&peticao_numero=202300906480&publicacao_data=20240429&formato=PDF

 

Fonte: Conjur

Deixe um comentário