A sucessão dos direitos autorais equilibra a proteção da honra do autor falecido com os direitos dos herdeiros sobre a obra, considerando também a herança digital e os desafios tecnológicos

 

A sucessão dos direitos autorais envolve uma complexa interação entre os direitos autorais e os direitos da personalidade. A proteção da honra, da imagem e da reputação do autor falecido deve ser conciliada com o direito dos herdeiros de explorar a obra.

 

A presente análise busca explorar a intersecção entre o direito autoral e a sucessão, desvendando os desafios e as oportunidades que surgem com a transmissão dos direitos autorais, considerando, ainda, o avanço da tecnologia (herança digital).

 

Definição, amparo constitucional e regulação legal do direito autoral

 

Diante das várias definições para o direito autoral pela doutrina, pode-se afirmar que direito autoral é o direito que o criador de uma obra intelectual tem sobre a sua criação e a utilização desta, sejam elas criações artísticas, literárias ou científicas, como por exemplo textos, livros, pinturas, músicas, ilustrações, fotografias etc. O direito autoral é um ramo da ciência jurídica que protege o autor e suas obras, expressas pela criatividade humana e fixadas em meios tangíveis ou intangíveis.

 

A CF/88 incluiu a proteção dos direitos autorais no rol de direitos fundamentais, no contexto da inviolabilidade da propriedade, em seu art. 5º, nos incisos XXVII e XXVIII. Nesse cenário, observa-se que a Constituição destaca, de forma explícita, no inciso XXVII três direitos de autor: o direito de uso, de publicação e de reprodução, transmissível aos herdeiros, no entanto, sem oferecer as definições exatas para cada um desses termos.

 

Trazendo definições mais claras sobre os preceitos jurídicos atinentes ao direito autorial, foi promulgada a lei 9.610/98 (LDA), definindo em seu art. 1º que direitos autorais são os “direitos de autor e os que lhes são conexos”.

 

Os direitos autorais propriamente ditos garantem a proteção dos direitos morais e patrimoniais relacionados às obras originais. Por outro lado, os direitos conexos asseguram a proteção da maneira como essas obras são apresentadas ao público, abrangendo os direitos dos intérpretes, das organizações de radiodifusão e dos produtores de fonogramas.

 

Importante destacar que o direito autoral emerge com a criação da obra intelectual, dedicando-se mais na proteção da obra do que do autor em si. Ou seja, essa proteção é dirigida às formas de expressão das ideias, e não às ideias em si. Para que a proteção se aplique, é necessário que as ideias se concretizem em um meio físico, seja tangível ou intangível, sendo apresentadas em diferentes formas, tal como exemplifica o rol constante na “LDA”.

 

Compreendido o que é o direito autoral, necessário abordar a definição de direito patrimoniais e direitos morais de autor, segundo a “LDA”.

 

Segundo a doutrina, classificam-se os direitos morais do autor como direitos de personalidade. Os direitos morais referem-se aos direitos de personalidade e estão associados à conexão entre o autor e sua obra. Esses direitos são caracterizados por serem impenhoráveis, inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis, garantindo, assim, a proteção da relação do autor com a criação, o título e a circulação de sua obra intelectual. De acordo o art. 24 da “LDA”, os direitos morais asseguram a autoria e o respeito às características originais da obra, conferindo ao autor um controle exclusivo sobre sua criação.

 

Importante destacar que, a integridade da obra e a autoria são prejudicadas quando há violações aos direitos morais. Essas violações podem ocorrer por meio da não atribuição de autoria, da falsa indicação de outro autor, da publicação de obras ainda não divulgadas e de qualquer modificação não autorizada na obra original.

 

Já os direitos patrimoniais decorrem do direito exclusivo que o autor tem de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica. Relacionam-se à utilização e exploração econômica da obra, podendo o autor dispor desse direito a qualquer título, renunciar, transmitir a outrem, total ou parcialmente, entre vivos ou por sucessão.

 

Limitação temporal dos direitos autorais

 

Para abordar a questão da limitação temporal dos direitos autorais, é relevante citar o doutrinador José de Oliveira Ascensão1, que afirma que “o limite é constitutivo do direito autoral”.

 

Portanto, a limitação temporal constitui o cerne do direito autoral, como evidenciado pela Convenção de Berna – da qual o Brasil é signatário -, que estipula que a proteção concedida pela convenção abrange a vida do autor e se estende por (pelo menos) 50 anos após seu falecimento.

 

Como anteriormente exposto, o art. 5º, XXVII da Constituição Federal assegura o direito exclusivo aos autores, que pode ser transmitido aos herdeiros dentro do prazo estipulado pela lei, consagrando o princípio da temporalidade. Este dispositivo estipula que a legislação infraconstitucional defina o limite temporal, sem que o legislativo possa omitir-se em estabelecer esse prazo, sempre respeitando o estipulado pela Convenção de Berna.

 

A “LDA” define em seu art. 41 que os “direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento”. No caso de obras em coautoria, o prazo é contado a partir da morte do último dos coautores sobreviventes, conforme prevê o art. 42 da citada lei.

 

Finalmente, todos os herdeiros têm um prazo de 70 anos, contados a partir de 1º de janeiro do ano seguinte ao falecimento do autor, para que as obras entrem em domínio público, prazo este que foi ampliado em 10 anos em relação à legislação anterior, aplicando-se igualmente a todos.

 

Assim, ocorrendo o falecimento do autor, os herdeiros passam a ter o direito sobre a obra pelo período de 70 anos, contados a partir de 1º de janeiro do ano seguinte após o falecimento do autor. Após esse prazo, a obra cairá em domínio público, não sendo mais os sucessores os responsáveis pela defesa dos direitos morais do autor, e sim o Estado. Caso o autor falecido não tenha herdeiros, também é o Estado que ficará responsável pela defesa da integridade e autoria da obra.

 

Sucessão autoral

 

A morte também impacta os direitos relacionados às criações intelectuais.

 

A sucessão causa mortis envolve a transferência do patrimônio em razão da morte, e segue uma ordem de vocação legal para os herdeiros prevista no art. 1.829, do Código Civil, que deve ser considerado à luz da decisão do STF, que equiparou a união estável ao casamento (Recurso Extraordinário n. 878.694, julgado em maio/17). Dessa forma, a sucessão legítima segue a seguinte ordem: a) primeiro, os descendentes, em conjunto com o cônjuge ou companheiro sobrevivente, exceto se o regime de bens for o de comunhão universal, separação obrigatória de bens, ou se, no regime de comunhão parcial, o falecido não tiver deixado bens particulares; b) em segundo lugar, os ascendentes, em conjunto com o cônjuge ou companheiro, independentemente do regime de bens; c) em terceiro lugar, o cônjuge ou companheiro sobrevivente; e d) por último, os colaterais.

 

Essa transferência, guiada pelo princípio da continuidade, assegura a perpetuação dos direitos de posse e propriedade do falecido. Segundo Gonçalves2, a herança abrange “um conjunto de bens, dívidas, créditos, débitos, direitos, obrigações, pretensões e ações que pertenciam ao falecido e que sejam transmissíveis. Inclui, portanto, tanto o ativo quanto o passivo.”

 

De acordo com o art. 1.791 do Código Civil, a herança “defere-se como um todo unitário” e permanece indivisível até a partilha definitiva.

 

O princípio da saisine, consagrado no art. 1.784 do Código Civil, estabelece que a sucessão se inicia automaticamente com a morte, sem intervalo de tempo. Isso ocorre porque, no sistema jurídico brasileiro, o patrimônio não pode ficar sem um titular, sendo imediatamente transferido para alguém que possa, ao menos temporariamente, administrá-lo.

 

Os direitos da personalidade, por sua natureza intransmissível, geralmente não fazem parte da herança. Esses direitos, considerados naturais, têm origem e término com a existência do indivíduo (Código Civil, arts. 2º e 6º). A partir de uma visão da dignidade da pessoa humana, os direitos da personalidade, como vida, nome, imagem e honra, são protegidos durante a vida do indivíduo.

 

Para Maria Helena Diniz3, esses direitos não integram o conceito de sucessão, pois não podem ser separados do titular e transmitidos aos herdeiros, visto que se relacionam à integridade física, intelectual e moral. No entanto, a transmissibilidade de certos direitos personalíssimos tem sido reconhecida pela doutrina e jurisprudência em contextos específicos, e como veremos adiante, a própria legislação autoral prevê essa possibilidade.

 

A lei 9.610/98 (“LDA”), em consonância com a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil, assegura a continuidade dos direitos autorais de uma obra de arte após o falecimento do autor, permitindo aos herdeiros e detentores desses direitos controlar o uso da obra.

 

Em caso de falecimento do autor, a lei determina que sejam transmitidos aos seus sucessores os direitos morais estabelecidos nos incisos I e IV do art. 24 da “LDA”, sendo eles: (i) o direito de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra e (ii) o direito de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra.

 

Considerando apenas os direitos acima citados são transmissíveis, os sucessores deverão apenas promover a defesa dos direitos morais do autor. Caso a obra seja utilizada sem autorização prévia, o responsável pela violação poderá sofrer um processo judicial na esfera cível e/ou penal.

 

Sucessão autoral em ambiente virtual

 

Atualmente, importante destacar também acerca do direito sucessório em ambientes virtuais (herança digital).

 

Isso porque, a evolução tecnológica trouxe uma parte significativa da vida das pessoas para o âmbito digital, o que gera desafios sucessórios que não são totalmente solucionados pela perspectiva do Código Civil atual.

 

A herança digital pode ser dividida em bens digitais (tais como contas de e-mail e redes sociais) e informações digitais (como senhas e dados financeiros). A legislação brasileira, apesar de ainda pouco adaptada às novas realidades tecnológicas, precisa ser revisitada para lidar com essas questões. A partilha de bens digitais com valor econômico, como criptomoedas, pode ser feita normalmente, mas a herança de bens com valor afetivo e informações confidenciais levanta questões sobre a dignidade e os direitos da personalidade do falecido.

 

A regulamentação sobre herança digital é igualmente crucial para salvaguardar propriedades intelectuais, como direitos autorais, patentes e marcas registradas. Com o aumento da relevância dos bens digitais, é cada vez mais comum que indivíduos possuam ativos intelectuais na internet. Na ausência de uma legislação clara sobre a transferência desses bens após o falecimento, os herdeiros podem enfrentar desafios para proteger e administrar tais ativos.

 

Com o advento da lei 13.709/18, LGPD foram estabelecidas regras para a proteção de dados pessoais, incluindo aqueles que são deixados após o falecimento de uma pessoa. De acordo com a LGPD, os dados pessoais só podem ser utilizados com o consentimento do titular ou em casos previstos em lei. Sendo assim, após o falecimento do autor os herdeiros possuem o direito de acessar e de gerenciar os dados digitais deixados pelo autor falecido, desde que respeitem as leis e as regulamentações aplicáveis.

 

Por sua vez, vale ressaltar que o Código Civil atual admite a inclusão de conteúdos extrapatrimoniais em testamentos, conforme dispõe o art. 1.857, § 2º, “Disposições testamentárias de caráter não patrimonial são válidas, mesmo que o testador tenha optado por limitá-las a esse tipo de disposição.” Deste modo, caso haja testamento capaz de manifestar a vontade do autor falecido em relação à sua herança digital, este deverá ser respeitado, independentemente de o ordenamento jurídico reconhecer ou não o conceito de herança digital.

 

Nesse sentido, prevalecerá a vontade do falecido se existir expressão de vontade. Porém, quando a vontade do falecido não for previamente determinada, incumbe aos herdeiros, respeitada a ordem de vocação hereditária, pleitear judicialmente pelo bem, diante da ausência de vontade.

 

Entretanto, a despeito do que dispõe o Código Civil atual, a ausência de uma legislação específica para herança digital pode originar conflitos e disputas legais entre os herdeiros e também com as empresas de tecnologia responsáveis pelos ativos digitais. Sem normas claras e consistentes, podem surgir decisões arbitrárias ou injustas, comprometendo a justiça e a equidade na administração desses bens digitais.

 

Recentemente, o relatório final da Comissão de Juristas criada para discutir a reforma do Código Civil, submetido ao Congresso Nacional, incluiu propostas de inclusão referentes à herança digital.

 

Em resumo, as principais indicações sobre o tema foram as seguintes: (i) 1.791-A sobre a conceituação dos bens digitais, (ii) 1.791-B sobre a restrição de acesso de mensagens  privadas, (iii) 1.791-C sobre os bens digitais e o inventário, (iv) alteração no artigo 1.881 para permitir a ocorrência de codicilo virtual, inclusive incluindo os bens digitais, (v) 1.918-A sobre o legado dos bens digitais; (vi) inclusão do inciso IV no artigo 83 para incluir os bens digitais de conteúdo econômico como bens móveis.

 

Finalmente, a questão da herança digital está em desenvolvimento no Brasil, apresentando desafios legais, éticos e práticos. É essencial que os indivíduos incluam a herança digital em seu planejamento sucessório e que as leis evoluam para acompanhar as mudanças tecnológicas, assegurando a proteção dos direitos e das vontades das pessoas em relação aos seus ativos.

 

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1 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Fundamental de acesso à cultura e direito intelectual. In: SANTOS, Manoel J. Pereira dos (org.). Direito de autor e direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 9-44

 

2 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. 17. ed. v. 7.

 

São Paulo: Saraiva Jur, 2023.

 

3 DINIZ, Maria H. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. v.6. ed. 36 São

 

Paulo: Editora Saraiva, 2022.

 

Fonte: Migalhas

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