Que o Código Civil precisa ser atualizado, ninguém duvida.

 

Adequação indispensável para que não permaneçam fora do alcance da tutela jurídica situações invisibilizadas durante este meio século que permeia entre os dias de hoje e seu projeto originário, e que levou 30 anos para ser aprovado.

 

Afinal, a lei que regula a vida das pessoas, deve acompanhar as mudanças e os avanços sociais. Ou isso, ou se instalam vazios que acabam batendo nas portas da justiça, que resta por assumir um papel que não é seu. E, como o juiz não pode se omitir diante da ausência de lei (LINDB, art. 4º), esta função é pejorativamente rotulada de ativismo judicial.

 

E mais. Até se consolidar a jurisprudência, reina a incerteza jurídica, impondo a edição de súmulas, teses e enunciados a servir de norte diante da omissão do legislador.

 

Este foi o propósito do Senado Federal em constituir uma comissão de juristas. Adequar a lei ao momento atual da sociedade, incorporando saberes já consolidados, atentando à evolução tecnológica que mudou a dinâmica da vida de todos e aos anseios de quem busca ver assegurados novos direitos.

 

Certamente o tema mais sensível é o que trata das relações interpessoais, por serem permeadas de influências culturais e religiosas. Chamada “pauta de costumes” é rechaçada pelos segmentos mais conservadores e fundamentalistas, sob o fundamento de comprometer os princípios da família tradicional. Ora, o costume é do que uma das fontes do direito.  A aceitação geral de determinados comportamentos acaba se impondo na vida das pessoas e precisam ser regulada pela lei.

 

E esta é a maior dificuldade em se avançar no âmbito do Direito das Famílias, expressão que injustificavelmente não foi aceita para rotular o livro que trata dos vínculos afetivos. Falar em Direito de Família se justificava enquanto somente era aceita – ao menos oficialmente – a entidade familiar constituída pelo casamento. No entanto, no momento em que a própria Constituição da República esgarçou este conceito (art. 226), não mais se pode falar em família, mas em famílias.

 

Mas este não foi o único pecado do Projeto que foi apresentado.

 

Apesar de trazer muitos avanços, as omissões e os equívocos precisam ser pontuados, na esperança de que o legislador os corrija.

 

Efeito civil do casamento religioso

 

Perdeu o Projeto a oportunidade de conferir segurança jurídica a quem opta por celebrar o casamento perante uma autoridade religiosa. Impositivo que, para se emprestar efeito civil a este ato, é necessária a prévia habilitação perante o cartório do registro civil. Ou, procedimento pré-nupcial, como passou a ser chamada a habilitação (art. 1.525). Afinal, há uma série de requisitos que precisam ser atendidos, e não há como emprestar efeito retroativo ao ato religioso, sem que seja reconhecida antecipadamente a possibilidade da chancela estatal.

 

Ao depois, o lapso de tempo entre o ato religioso e a posterior habilitação deixa um vácuo, que pode ser fonte de manobras indevidas, uma vez que tais atos podem ser levados a efeito em cidades ou estados diferentes.

 

Dever de fidelidade e vida em comum

 

Apesar de mantida a vedação de interferência de qualquer pessoa na comunhão de vida instituída pela família (art. 1.511-C, I), aos cônjuges e companheiros é imposto o dever de fidelidade e de vida em comum no domicílio do casal (art. 1.555).

 

Estes assuntos situam-se no estrito campo da vida privada do casal. Sendo de todo descabida a ingerência do estado, até porque o descumprimento desses deveres não gera qualquer efeito e nem a imposição de quaisquer sanções.

 

União estável

 

Apesar de a Constituição da República conceder à união estável status de entidade familiar, merecedora da especial proteção do Estado (art. 226, § 3º), e ter o Supremo Tribunal Federal considerado inconstitucional tratamento diferenciado entre casamento e união estável,1 o Projeto acabou por criar e hierarquizar duas categorias de união estável.

 

A união estável não levada a registro no Livro “E” do Registro Civil, ainda que tenha sido formalizada, por documento particular, por escritura pública ou mediante termo declaratório perante o registro civil, não produz alguns efeitos, entre eles:

 

  • Art. 9º, § 1º: não produz efeitos patrimoniais perante terceiros;
  • Art. 10, IX: não pode ser averbada na certidão de óbito do companheiro falecido;
  • Art. 1.564-A: não altera o estado civil dos conviventes e nem torna obrigatório ser declarada a união nos atos da vida civil;
  • Art. 1.597: não gera a presunção de pternidade;
  • Art. 1.647, § 3º: não exige a autorização do convivente para a venda de bens imóveis ou para a concessão de fiança.

 

Multiconjugalidades

 

O Projeto manteve a postura machista e sexista que reina na sociedade, ao continuar conivente com quem mantêm mais de uma entidade familiar.

 

Como são os homens que constituem famílias simultâneas e uniões poliafetivas, eles vão continuar contando com a proteção da lei.

 

Ainda que tais relacionamentos atendam a todos os requisitos de uma união estável, o só fato de o varão manter um casamento ou outra união estável, faz com que tais entidades familiares simplesmente sejam invizibilizados. Tanto que restou afirmado, pura e simplesmente, que tais vínculos não são uma família (art. 1.565-D).

 

São o quê? Nada! Ou seja, a reforma promoveu enorme retrocesso ao ressuscitar a figura da sociedade de fato, relegando as questões patrimoniais destas estruturas de convívio às regras da proibição do enriquecimento sem causa (art. 1.565-D, parágrafo único).

 

Claro que a grande prejudicada continuará sendo a mulher que, dedicada à economia do cuidado, não terá como provar a participação na constituição do patrimônio, além de restar sem direito a alimentos, benefício previdenciário e direito sucessório.

 

Direito de convivência e exercício da autoridade parental

 

Atendendo aos reclamos da doutrina, houve a substituição da expressão “poder familiar” por “autoridade parental”. Mas foi só. Por incrível que possa parecer, não foi inserida no projeto qualquer sugestão sobre o exercício da autoridade parentalidade o direito de convivência (arts. 1.583 a 1.596).

 

Ainda que tenham sido sugeridas várias e importantes alterações a este que, certamente, é o capítulo mais significativo no âmbito das relações familiares por dizer com a convivência entre pais e filhos.

 

Só que, cedendo a pressões de uma minoria barulhenta de mulheres que querem ser reconhecidas como proprietárias exclusivas dos filhos, na votação final do Projeto, a comissão, simplesmente, se absteve de submeter à votação as proposições aprovadas pela subcomissão.

 

A proposta afastava as expressões “direito de visita” e “guarda”, as substituindo por “convivência”. Para dar efetividade à norma constitucional que atribui aos pais o dever de assistir, criar e educar os filhos menores (art. 229), imposição referendada pelo Estatuto da criança e do Adolescente (art. 22) e pelo Código Civil (arts. 1.566, IV e 1.634, I), impunha o compartilhamento da convivência e do exercício dos encargos parentais, tendo os filhos dupla residência.

 

E mais, afastava a possibilidade inconstitucional de um dos pais abrir mão da convivência, como se fosse possível um dos pais deixar de cumprir os deveres parentais, o que, inclusive, configura abandono afetivo.

 

A “custódia” unilateral somente poderia ser imposta pelo juiz, mediante a prova de que o convívio com um dos genitores poderia trazer-lhe prejuízo. Ainda assim, este período seria acompanhado por equipe interdisciplinar, para ver da possibilidade do retorno ao compartilhamento.

 

Diante da omissão de quem assumiu o encargo de propor o aperfeiçoamento do Código Civil, certamente vão permanecer as disputas dos pais, deixando-se de atentar ao direito dos filhos de convier com ambos, de modo a assegurar seu sadio desenvolvimento.

 

E, se uma comissão nacional formada por um punhado de juristas encaminha proposta de emendas ao Código Civil, sem nada sugerir sobre este tema tão sensível, tal significa que reconhece que nada precisa ser alterado.

 

Filiação socioafetiva

 

A filiação socioafetiva, de há muito reconhecida jurisprudencialmente, foi trazida para a lei. No entanto, de forma de todo descabida foi elevado para 18 anos a possibilidade de o reconhecimento ocorrer extrajudicialmente.

 

Nada mais do que um retrocesso que afronta um dos propósitos da reforma: a desjudicialização de procedimentos que não demandem a prolação de sentença de mérito.

 

Basta atentar que, havendo consenso dos pais e a concordância do adolescente, a partir dos 12 anos de idade, o Conselho Nacional de Justiça admite o procedimento perante o registrador civil (Provimento 149/2023, art. 505).

 

Como é atribuído ao registrador atestar a existência do vínculo afetivo da parentalidade socioafetiva mediante apuração objetiva por intermédio da verificação de elementos concretos, maior é a segurança jurídica, uma vez que o juiz não designa audiência e nem ouve as partes, limitando-se a homologar o pedido.

 

Enteados

 

Com relação ao vínculo que se estabelece entre os filhos com o cônjuge ou companheiro de um de seus genitores, o Projeto comete dois pecados capitais:

 

autoriza a inclusão extrajudicial do sobrenome  do padrasto ou da madrasta somente a partir dos 18 anos do enteado (art. 16, § 7º), limitação injustificável uma vez que O Conselho Nacional de Justiça admite esta possibilidade a partir dos 12 anos de idade (Provimento 149/2023, art. 505);

traz uma afirmação das mais descabidas e perversas, ao afirmar que o relacionamento dos enteados com os cônjuges ou companheiros de um de seus pais “não decorre, por si só e necessariamente, vínculo de filiação  socioafetiva” (art. 1.512-G). Ora, a parentalidade afetiva é um ato-fato jurídico que merece reconhecimento quando comprovada a posse de estado de filho.

Usufruto e administração dos bens de filhos menores

 

Injustificadamente foi mantida a condição dos pais de usufrutuários dos bens dos filhos (arts. 9º, § 2º e 1.617-C), previsão que remete à época em que o pater familiae, tinha poder de vida e morte sobre os filhos e a mulher.

 

Não se pode olvidar que usufruto assegura direito de posse, uso e percepção dos frutos. Ou seja, a apropriação pelos pais dos rendimentos de bens que não lhes pertence, o que configura verdadeira apropriação indébita.

 

Os pais devem é administrar, zelar pelos bens dos filhos, e não se apropriar dos lucros que produzem.

 

Reprodução assistida

 

Até que enfim a regulamentação da reprodução assistida deixa de ser prerrogativa do Conselho Federal de Medicina (Resolução 2.320/202), para ser disciplinado pela codificação civil.

 

No entanto, uma das hipóteses de inseminação foi ignorada: a chamada auto inseminação ou reprodução caseira. Trata-se de prática recorrente. Quer em face dos elevados custos dos procedimentos realizados nas clínicas de fertilização; quer porque, muitas vezes, é desejo de todos os envolvidos no projeto parental assumir a parentalidade.

 

Para o registro do nascimento dos filhos concebidos pelas técnicas de reprodução assistida , o Conselho Nacional de Justiça (Resolução 149/2023, art. 513, II) exige a declaração do diretor técnico da clínica em que foi realizada o procedimento. Como nas hipóteses de auto inseminação, não existe esta figura, as partes precisam promover uma ação judicial em que o juiz se limita a chancelar o pedido, sem ouvir as partes para comprovar a existência da socioafetividade multiparental.

 

Esta é mais uma das atividades que deveria ser delegada ao Oficial do Registro Civil, com a atribuição de ouvir as partes e colher a manifestação do Ministério Público.

 

Dos alimentos entre cônjuges e companheiros

 

Eis mais um ponto em que o Projeto se afastou da determinação do Conselho Nacional de Justiça da necessidade de se atentar às perspectivas de gênero (Resolução 942/2023).

 

No que diz com os alimentos entre cônjuges e companheiros:

 

afirma que  o fim da sociedade conjugal ou convivencial do devedor com o credor de alimentos extingue o dever alimentar (CC, art. 1.704). De todo descabida a cessação automática do dever de mútua assistência, principalmente ao se levar em conta que foi chancelado o divórcio e a dissolução da união estável unilateral (art. 1.582-A). Como o cônjuge ou o companheiro são simplesmente comunicados do pedido feito pelo outro, tal vai obrigar àquele que não tem condições de prover a própria subsistência, a promover ação de alimentos, sem a certeza de obter sua concessão liminar;

outro absurdo: é admitida a fixação de um termo final à obrigação alimentar . Ou seja, é concedido ao juiz o dom de prever o lapso temporal necessário e razoável para o credor promover sua inserção, recolocação ou progressão no mercado de trabalho (CC, art. 1.702, parágrafo único). Dita previsão se afasta da regra legal que impõe o dever de alimentos a quem deles necessita (CC, art. 1.694). Mais uma vez o Projeto esquece que a economia do cuidado desempenhado pelas mulheres, as afasta do mercado de trabalho, o que dificulta, em muito, sua reinserção. Ao depois, deve atentar-se à sua idade e ausência de qualificação profissional. O fato é que, sem a prova da cessação de sua necessidade não é possível impor automaticamente o fim do encargo alimentar.

 

Enfim…

 

Somando-se ganhos e perdas; avanços e retrocessos, o saldo do trabalho da Comissão é positivo.

 

Agora cabe é uma movimentação de quem têm o compromisso com a efetividade à justiça, de gestionar junto às casas legislativas para que os parlamentares se debrucem sobre este projeto, sejam sensíveis a muitas das propostas apresentadas. Mas que também atentem à possibilidade de aperfeiçoá-lo, para que se tenha uma legislação que corresponda à necessidade de todos, de ter seus direitos garantidos.

 

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1 STF – Tema 498: É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002.

 

Fonte: Migalhas

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