A cláusula penal é um instrumento lícito de regulação antecipada dos riscos de inadimplemento. A sua maior utilidade consiste em resguardar as partes do tempo, custos e incerteza de uma disputa sobre os efeitos da inexecução do contrato. Por meio dela, os contraentes definem ex ante, no exercício de sua autonomia negocial, a exata consequência patrimonial para a hipótese de inadimplemento de determinada prestação, exonerando o credor da necessidade de provar os prejuízos sofridos (CC, art. 416, caput) e gerando previsibilidade para o devedor sobre o montante devido em caso de descumprimento.

 

Naturalmente, como todo ato de autonomia negocial, a estipulação da cláusula penal também está sujeita a controle. Esse controle, no ordenamento jurídico brasileiro, é duplo: há uma limitação prévia da cláusula penal ao valor da obrigação principal, estabelecida no art. 412 do CC, e há uma previsão para a sua redução equitativa em caso de cumprimento parcial da prestação principal ou de excesso manifesto, estabelecida no art. 413.

 

Pouquíssimos ordenamentos jurídicos da tradição romano-germânica possuem esse duplo controle: Basta dizer, a título ilustrativo, que os Códigos Civis alemão, italiano, francês e o recente argentino só preveem a hipótese de redução equitativa posterior, em caso de cumprimento parcial ou de excesso manifesto, não estabelecendo nenhuma limitação prévia à estipulação da cláusula penal.

 

Essa limitação prévia sempre foi objeto de muitas críticas doutrinárias e só foi incluída no CC de 1916 (e depois replicada no CC de 2002) na revisão final do projeto pela denominada Comissão dos Cinco,1 com posterior revisão de Rui Barbosa.2 Clóvis Beviláqua, que a tinha excluído de seu Projeto Final, considerava a limitação prévia “uma restricção á liberdade das convenções, que mais perturba do que tutela os legítimos interesses individuaes”.3 A seu ver, a redução posterior em caso de excesso manifesto, prevista em outros ordenamentos jurídicos (e só incluída no CC de 1916 para a hipótese de adimplemento parcial), era a solução mais adequada para a tutela do interesse dos contraentes.4

 

O CC, como cediço, atravessa um novo período de reforma. É uma excelente oportunidade, portanto, para retomar as discussões sobre o controle da cláusula penal. E a subcomissão responsável pela parte das obrigações não se furtou a isso. O anteprojeto final da reforma propôs o acréscimo de um parágrafo único ao atual art. 412 para esclarecer que “a limitação [nele prevista] não se aplica à multa cominatória.” Na justificação, o parecer acrescentou que “[h]á importante distinção entre a cláusula penal e a multa cominatória: enquanto a primeira tem carácter indenizatório, a segunda tem caráter coercitivo e, portanto, não se justifica sua limitação. Impor um limite à multa cominatória mitiga o efeito coercitivo e pode ser um incentivo ao inadimplemento”.

 

A proposta de reforma parte de uma escolha doutrinária diante de um tema que é objeto de amplo debate: admite que a cláusula penal exerce preponderante função indenizatória, em qualquer de suas modalidades, e que por isso o seu valor não pode exceder o da obrigação principal, diferentemente da multa cominatória (astreinte) que, por desempenhar papel coercitivo, não deve ser previamente limitada. Não há espaço, neste breve texto, para aprofundar a discussão acerca da função exercida pela cláusula penal, mas não se pode deixar de destacar que há relevante doutrina que entende que, em algumas situações, ela exerce preponderante função coercitiva, principalmente quando estipulada para a hipótese de mora,5 de modo que não haveria justificativa para tratamento diverso daquele dispensado à multa cominatória.

 

Mas, independentemente dessa discussão, o que se objetiva indagar, neste breve texto, é se, mesmo admitida a função indenizatória da cláusula penal, há justificativa para esse limite prévio. E mais: O valor da obrigação principal é o melhor limite abstrato para esse controle prévio? As partes não têm liberdade para estipular uma compensação maior do que o valor da obrigação principal?

 

O primeiro inconveniente da limitação da multa ao valor da obrigação principal é definir objetivamente esse limite nas hipóteses em que a obrigação não tem valor econômico determinado ou quando ele é de difícil avaliação.6 Ou mesmo quando a própria cláusula penal não constitui uma obrigação pecuniária.7 Há inúmeras tentativas na doutrina de estabelecer uma resposta satisfatória a essas perplexidades, mas o fato é que, na prática, ainda não há um critério único bem delimitado, o que acaba gerando litígio entre as partes sobre o tema.8

 

Se a utilidade da cláusula penal reside justamente na previsibilidade que proporciona para os contraentes, com a respectiva redução da litigiosidade, a dificuldade na definição do seu limite monetário milita contra a própria finalidade do instituto, porque dá margem para que o litígio se desloque para a definição do valor da obrigação principal a que o dispositivo legal faz referência.9

 

O conceito de “obrigação principal” também suscita dificuldade interpretativa: se ele se refere ao valor nominal da obrigação ou mesmo do contrato como um todo, poderá estar sempre aquém do próprio prejuízo sofrido pelo credor que, não raro, vai além da simples prestação inadimplida para abranger também outros interesses legítimos, como lucros cessantes, outros danos emergentes, danos extrapatrimoniais etc. A frustração da obrigação dificilmente gera como prejuízo apenas o seu valor nominal.10 Por isso a limitação prévia da cláusula penal ao valor da obrigação principal poderá mantê-la sempre aquém das expectativas do credor, sobretudo quando a sua natureza é compensatória e sua cobrança substitui a própria prestação inadimplida.11

 

Para contornar esse problema, parte da doutrina propõe uma interpretação ampliativa do conceito de obrigação principal, tornando-o um conceito fluído que não se restringe ao valor nominal da obrigação, mas abrange o conjunto de interesses do credor.12 Foi essa compreensão que prevaleceu, por exemplo, no julgamento do RE. 1.466.177/SP pela 4ª turma do STJ, sob a relatoria do ministro Luis Felipe Salomão.

 

O inconveniente dessa interpretação ampliativa é que ela introduz no ordenamento jurídico brasileiro uma outra problemática: se o limite da cláusula penal passa a ser o efetivo prejuízo do credor, considerados todos os seus interesses, a estipulação da cláusula penal tem a limitada função de servir de acordo sobre a distribuição do ônus da prova acerca do prejuízo sofrido. Uma vez estipulada, o credor estará liberado do ônus de comprovar o seu prejuízo, mas poderá ter limitada a sua pretensão se o devedor comprovar, em caso de disputa, que o valor da cláusula penal é superior aos danos suportados.

 

Reintroduz-se, assim, em manifesta contrariedade ao disposto no art. 416, caput, do CC, a discussão sobre os prejuízos sofridos pelo credor, que era justamente o que se buscava evitar com a instituição da cláusula penal.13 Além disso, por depender de uma análise concreta e dinâmica do momento do inadimplemento para a correta avaliação dos prejuízos sofridos pelo credor, o valor total do prejuízo se torna um conceito indeterminado para funcionar como um limite prévio e abstrato que permita às partes, no momento da celebração do contrato, perfeita ciência do valor passível de estipulação para respeitar a legislação vigente. Cria-se, com isso, enorme insegurança jurídica, na contramão da previsibilidade que se esperava com a fixação da cláusula penal.14

 

Daí a indagação: Por que a cláusula penal deve estar previamente limitada ao valor do prejuízo efetivo do credor, especialmente quando ela desempenha “função indenizatória”, como destacado no anteprojeto de atualização do CC? A única resposta possível parece ser o disposto no art. 944 do CC, segundo o qual “[a] indenização mede-se pela extensão do dano.” Como a cláusula penal exerce “função indenizatória”, o seu valor jamais poderia ser superior ao do próprio dano sofrido pelo credor, sob pena de tornar o descumprimento do contrato mais interessante para o credor do que a sua execução.

 

Essa interpretação, no entanto, ignora que o princípio da reparação integral, extraído do disposto no art. 944 do CC, admite mitigações, como é o caso da hipótese prevista no seu próprio parágrafo único: “[s]e houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.” Ou seja, a indenização pode ser reduzida equitativamente pelo juiz e não corresponder à integralidade do dano sofrido. Essa limitação do valor da indenização também pode ser convencional, como é o caso das chamadas cláusulas limitativas do dever de indenizar.15

 

E, como princípio, a reparação integral também admite ponderações que, em vetor contrário, permitam que as partes estipulem uma indenização superior ao valor do prejuízo sofrido pelo credor. E o exemplo dessa ponderação é exatamente a cláusula penal que, por força do disposto no caput do art. 416 do CC, dispensa qualquer discussão sobre os prejuízos sofridos para a sua cobrança.16

 

A cláusula penal, na verdade, funciona em ambos os vetores como mitigadora do princípio da reparação integral: O seu valor, a depender do incumprimento do contrato e de suas consequências efetivas, pode ser tanto inferior ou superior ao do prejuízo efetivo, e esse foi o risco que os contraentes aceitaram correr para não terem que discutir posteriormente sobre perdas e danos. Essa repartição de risco, se realizada sem desproporção manifesta (plenamente passível de controle a partir da previsão do art. 413 do CC), não tem razão para ser previamente limitada pelo legislador. Ainda mais por um limite indeterminado como “o valor da obrigação principal”.

 

Por isso que, tratando-se de direito disponível, e estando-se diante de uma relação paritária, não há fundamento jurídico que justifique o cerceamento ex ante da autonomia negocial das partes na estipulação da cláusula penal de natureza indenizatória. É justamente a invariabilidade da cláusula penal, ressalvada a excepcional hipótese de excesso manifesto, que constitui o interesse das partes na sua estipulação.

 

Afinal, como observa André Seabra, as partes é que estão em melhores condições para avaliar a cláusula penal que mais perfeitamente preserva a equivalência das prestações do contrato, e não o legislador a partir da criação de um standard prévio e abstrato que, na prática, só tem o condão de perpetuar a litigiosidade entre as partes, em vez de resguardá-las desse custo.17

 

Respondendo, então, de forma objetiva, aos questionamentos formulados no início do texto: a manutenção do limite prévio da cláusula penal estabelecido pelo art. 412 do CC não encontra justificativa no ordenamento jurídico brasileiro e, se mantido, tal como proposto pela comissão responsável pela atualização do CC, perpetuará a litigiosidade entre as partes acerca da adequação da penalidade ao limite imposto.

 

O valor da obrigação principal não é o melhor parâmetro para efetuar o controle prévio da cláusula penal, pois a sua definição suscita incontáveis divergências acerca de sua abrangência, conduzindo a uma interpretação ampliativa – para nele incluir todos os interesses do credor afetados pelo descumprimento – que gera enorme insegurança jurídica, na contramão da finalidade de se estipular uma limitação capaz de ser adequadamente valorada pelas partes no momento da celebração do contrato.

 

Os contraentes devem ter liberdade para estipular, a título de cláusula penal, uma compensação que eventualmente seja maior ou menor do que o valor nominal da obrigação ou mesmo do prejuízo concretamente suportado pelo credor, sem que aí haja necessariamente um ajuste ilícito. Eventual abuso do ajuste dependerá sempre de uma análise funcional18 do contrato que, à luz dos parâmetros estabelecidos pelo art. 413 do CC, ou seja, da natureza e da finalidade do negócio, revele um excesso manifesto na penalidade. Esse controle deve ser sempre excepcional e estar circunscrito apenas aos casos de excesso manifesto ou de adimplemento parcial útil da prestação.

 

Por isso, a atualização do CC representa uma oportunidade perfeita para que o limite ex ante previsto no art. 412 seja inteiramente retirado da legislação brasileira, restringindo-se o controle da cláusula penal apenas à correção posterior de eventual excesso manifesto, como atualmente previsto no art. 413. Com isso, o CC brasileiro estará em conformidade com a legislação da maioria dos países da tradição do direito continental europeu.

 

________

 

1 Comissão formada por Lacerda de Almeida, Olegário Hereculano de Aquino e Castro, Joaquim da Costa Barradas, Amphilophio Botelho Freire de Carvalho e João Evangelista Sayão de Bulhões Carvalho.

 

2 SEABRA, André Silva. Limitação e redução da cláusula penal. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2020. p. 254.

 

3 BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Commentado. 3ª ed. v. 4. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1943. p. 69.

 

4 Ibidem.

 

5 TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson. Apontamentos sobre a cláusula penal a partir da superação da tese da dupla função. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 31, p. 353-366, 2023.

 

6 FLORENCE, Tatiana Magalhães. Aspectos pontuais da cláusula penal. In: (org.) TEPEDINO, Gustavo. Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 525.

 

7 SANTOS, J. M. de Carvalho. Código Civil brasileiro interpretado, principalmente do ponto de vista prático. 13ª ed. v. XI. Rio de Janeiro: Freitas Bastos S.A., 1986. p. 430.

 

8 BIANCHINI, Luiza Lourenço; SILVA, Rodrigo da Guia. O sentido do art. 412 do Código Civil: a definição do valor da “obrigação principal” como limite à cláusula penal. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 1-25, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2024.

 

9 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito das obrigações, 1ª parte – das modalidades, das obrigações, dos efeitos das obrigações, do inadimplemento das obrigações. v. 4. 32ª ed. atual. por Carlos Alberto Dabus Maluf. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 346.

 

10 SALLES, Pedro Amaral. A função coercitiva da cláusula penal e uma crítica ao art. 412 do Código Civil de 2002. Coimbra: Almedina, 2014, p. 44.

 

11 KONDER, Carlos Nelson. Arras e cláusula penal nos contratos imobiliários. Rio de Janeiro, Revista dos Tribunais, v. 4, pp. 83-104, mar.-abr. 2014, p. 6.

 

12 NEVES, José Roberto de Castro. Direito das obrigações. 7ª ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2017, p. 384; NANNI, Giovanni Ettore. Comentários ao Código Civil: direito privado contemporâneo. Alexandre Dartanhan de Mello Guerra et al. (coord.). São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 675.

 

13 KONDER, Carlos Nelson. Arras e cláusula penal nos contratos imobiliários. Rio de Janeiro, Revista dos Tribunais, v. 4, pp. 83-104, mar.-abr. 2014, p. 6.

 

14 SEABRA, André Silva. Limitação e redução da cláusula penal. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2020, p. 280.

 

15 FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. civilistica.com, v. 7, n. 1, p. 1-25, 5 maio 2018.

 

16 Ibidem.

 

17 SEABRA, André Silva. Limitação e redução da cláusula penal. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2020, p. 247.

 

18 KONDER, Carlos Nelson. Arras e cláusula penal nos contratos imobiliários. Rio de Janeiro, Revista dos Tribunais, v. 4, pp. 83-104, mar.-abr. 2014, p. 8.

 

Fonte: Migalhas

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