Explorando a alteração do nome indígena no Registro Civil, este artigo destaca a importância jurídica e cultural desse direito como expressão de cidadania, identidade e dignidade da pessoa humana
O presente artigo visa traçar um panorama acerca da possibilidade da alteração do nome no registro de nascimento da população indígena e povos originários e seus consectários legais.
Visa, ainda, analisar algumas situações afetas ao registro de nascimento do indígena e à legislação correlata acerca do tema, estabelecendo-se uma diretriz sobre a possibilidade de alteração do nome do indígena, de maneira a fazer constar a inclusão da etnia e/ou aldeia – e até mesmo a supressão de sobrenomes -, no registro de nascimento daquele, ou seja, como sobrenome do indígena, seja ele integrado ou não integrado à sociedade.
Visa, ainda, o presente artigo, tecer breves apontamentos, sobre o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e sua relação com a alteração do nome do indígena, como forma de concretização dos direitos fundamentais, haja vista a relação ancestral dos indígenas, e sua relação com os direitos da personalidade.
Quando nos propomos a pensar sobre o nome da pessoa humana, iniludivelmente, precisamos enfrentar as questões jurídicas afetas ao Registro Civil de Pessoas Naturais. Frise-se, aliás, o fato de esta especialidade, disciplinada pela lei 6.015/73, ser natural e, essencialmente, vocacionada a atos intrinsecamente ligados à cidadania, pois tutela de forma pública e perene bens jurídicos imprescindíveis à vida da pessoa natural, desde seu nascimento até a sua morte.
Neste diapasão, o nome da pessoa natural se constitui em um dos atributos mais significativos e importantes da pessoa humana. Isto porque além de carregar toda uma história, toda a ancestralidade da pessoa natural, por assim dizer, corresponde ao fio condutor, ao elo de ligação entre as gerações presente, passada e futura.
Destarte, o nome da pessoa humana muito antes de ser um mero elemento identificador e designativo – e por que não dizer até mesmo decorativo -, não raro, compõe um atributo, essencialmente, ligado à felicidade, que, por sua vez, liga-se, invariavelmente, à dignidade da pessoa humana.
Talvez, por isso, Paulo Bonavídes, seguido, posteriormente, pelo ex-senador Cristovam Buarque propuseram a inclusão na lei maior, do direito à felicidade, visando ressaltar que os direitos sociais elencados no art. 6º da CF/88 são essenciais à busca da felicidade1.
Não é despiciendo lembrar que o CC hodierno ao tratar dos direitos da personalidade, tamanha a importância do tema, expressamente, estatuiu que “toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome”.
Em sua obra Registro Civil das Pessoas Naturais, Luis Guilherme Loureiro, ao tratar deste instituto do nome, assevera o seguinte:
“O nome, juntamente com outros atributos, tem por missão assegurar a identificação e individuação das pessoas e, por isso, é como se fosse uma etiqueta colocada sobre cada um de nós. Cada indivíduo representa uma soma de direitos e de obrigações, um valor jurídico, moral, econômico e social e, por isso, é importante que tais valores apareçam como o simples enunciado do nome de seu titular, sem equívoco e sem confusão possível.2”
Em razão da relevância do tema ora focado, as Corregedorias Geral e do Interior, do colendo TJBA – Tribunal de Justiça da Bahia, certamente, antevendo uma situação merecedora de especial atenção e cuidado, qual seja a questão relacionada à situação indígena na Bahia, editou o provimento conjunto CGJ/CCI 08/24 que trata da possibilidade de retificação extrajudicial do nome da pessoa indígena.
O festejado ato normativo deita raízes na fonte da CF/88, bem assim na resolução conjunta 03/12 do CNJ e CNNMP – Conselho Nacional do Ministério Público, os quais tratam do tema em comento, permitindo-se que seja alterado o nome do indígena, via retificação extrajudicial, sem a necessidade de decisão judicial, procedimento totalmente gratuito, a fim de passar a constar do registro de nascimento a etina ou aldeia como sendo o sobrenome a partir de então, ou seja, vê-se, claramente, uma ligação com a ancestralidade do indígena (vetor axiológico).
Dito de outro modo, por meio do citado provimento conjunto 08/24, permite-se que o indígena altere seu sobrenome3 para que passe a constar a etnia ou aldeia como sendo o seu sobrenome. Aliás, o ineditismo do ato normativo editado pelo egrégio Tribunal de Justiça da Bahia é digno de aplausos, eis que demonstra modernidade e dinamismo na interpretação dos dispositivos legais que regem a matéria.
Saliente-se, aqui o fato de nenhum outro Tribunal de Justiça da Federação ter se debruçado e se sensibilizado com questão tão cara aos povos originários. Ademais, se é certo que o direito não consegue acompanhar o dinamismo da sociedade, não menos certo é o fato de que os povos indígenas, assim como outras minorias, terem sido relegadas ao léu por décadas e décadas, pelo Estado.
A permissão estabelecida no referido provimento veio em boa hora. Mutatis mutandis, poderíamos fazer uma comparação com uma política afirmativa implementada pelo Estado, pois se liga, intrinsecamente, ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Como forma de ter apreciado o pedido de alteração do nome, faz-se necessário que o indígena solicite, pessoalmente, ou por meio de representante legal – inclusive pela própria Fundação Nacional dos Povos Indígenas que detém legitimidade para tanto -, administrativamente, perante a serventia do Registro Civil de Nascimento em que tenha sido lavrado o registro, a inclusão do prenome e/ou sobrenome escolhidos a figurar no assento.
Não se olvide, porém, que RANI – Registro Administrativo de Nascimento de Indígena, também poderá ser utilizado como fundamento a supedanear o deferimento da pretensão da parte. A subsidiar o pedido, é interessante a apresentação dos documentos pessoais de que dispuser a parte.
Importante observar, ainda, o fato de ser permitido legalmente a inclusão da etnia e da aldeia como sendo o sobrenome do indígena. In casu, a FUNAI – Fundação Nacional dos Povos Indígenas, poderá apresentar declaração dando conta que o indígena pertence à etnia ou aldeia a que se visa faça constar como sendo integrante do prenome e/ou sobrenome.
De igual modo, a parte interessada poderá, apresentar Requerimento Administrativo de Nascimento Indígena, o qual também servirá de fundamento a pretensão junto à serventia, de modo a se incluir a “aldeia de origem do indígena e a de seus pais poderão constar como informação a respeito das respectivas naturalidades (Art. 2º, provimento conjunto CGJ/CCI 08/24, do TJBA).
Lado outro, diante da utilização da CRC – Central de Informações do Registro Civil, perfeitamente possível a colheita e envio das informações idôneas a supedanear o tramite do procedimento em tela via referida plataforma, eis que vedar o acesso, caso o indígena interessado resida em local diverso do local em que situada a serventia do Registro Civil de Pessoas Naturais em que lavrado o assento com atribuição para a prática do ato, seria o mesmo que tornar inócua uma norma jurídica plenamente capaz de produzir os efeitos que lhe próprios.
Lado outro, autuado o procedimento, caso haja a solicitação de alteração de prenome, a certidão de protesto poderá ser substituída por consulta gratuita à CENPROT – Central de Protesto. De igual modo, a publicação do edital eletrônico será realizada gratuitamente pela ARPEN-BA – Associação dos Registradores Civis de Pessoas Naturais da Bahia.
Noutro giro, discute-se se seria possível a exclusão total dos sobrenomes até então utilizados, acaso se deseje -, no registro de nascimento do indígena. A meu ver, plenamente, possível. Isto porque se trata da concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.
Cediço o entendimento da intensa busca pela proteção dos direitos fundamentais. Nesse sentido podemos citar agenda 2030 que foi realizada em 2015 em New York e contou com a presença de diversos chefes de Estado e de governo.
Na agenda 2030 foram estabelecidas diversas metas e ainda 17 objetivos. Aliás é bom salientar que os objetivos contidos na CF/88 em muito se assemelham àqueles objetivos. Em artigo intitulado Registro Civil das Pessoas Naturais e as Pessoas Em Estado de Vulnerabilidade Socioeconômica – Uma Análise à Ampliação da Semana Nacional do Registre-se, as autoras Maraísa Beraldo Sanches e Deborah de Lima Possar, reafirmam a busca mundial pela proteção aos direitos fundamentais. Vejamos:
Como se vê, há uma intensa busca mundial pela proteção dos direitos fundamentais e, entre eles, está a dignidade da pessoa humana, que possui conceituação jurídica ampla, contemplando a proteção de direitos relacionados à vida, à moral, à intimidade, à privacidade, visando à liberdade e à igualdade4.
Neste dia diapasão, sabe-se que a tão falada Semana do Registre-se, a qual foi inspirada no programa de enfrentamento ao sub-registro exerce um importante papel na erradicação do sub-registro e concretiza na prática o princípio constitucional da dignidade humana.
Outrossim, podemos dizer que o combate ao sub-registro decorre da meta 16.9 da agenda 2030 da ONU para o desenvolvimento sustentável.
Nesse sentido, pontuam Maraísa Beraldo Sanches e Deborah de Lima Possar, na intitulada a obra registro civil de pessoas naturais os desafios decorrentes da evolução humana o seguinte:
A primeira Semana Nacional do Registre-se ocorreu entre os dias 8 e 12 de maio do corrente ano, como decorrência do Programa de Enfrentamento ao Sub-Registro Civil e de Ampliação ao Acesso à Documentação Básica por Pessoas Vulneráveis, criado pelo provimento 140/23, da Corregedoria Nacional do CNJ, que, por sua vez, nasceu como consequência da Meta 16.9 da Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável5.
Se outrora se discutiu sobre o deferimento da alteração do nome caso o indígena fosse integrado ou não à sociedade, atualmente, descabe tal distinção, haja vista as disposições contidas na CF/88.
De mais a mais, no atual estágio de evolução da sociedade não se permite estabelecer distinção com relação ao fato de ser ou não integrado à sociedade como forma de se permitir a alteração do nome indígena. Ademais, é importante asseverar a possibilidade de alteração do sobrenome indígena de maneira a permitir a inserção, no registro de nascimento deste, de novo sobrenome como forma de concretização do vetor axiológico máximo da CF/88.
Por derradeiro, cumpre ressaltar o fato de que após o tramite regular do procedimento de retificação solicitado, procederá o Oficial de Registro com lançamento de averbação no registro de nascimento do indígena. Como se trata de informação de ordem pública, deverá ser lançada nas observações da certidão, a averbação procedida, com as informações alteradas.
Portanto, nota-se que o fim último visado pelo Estado Democrático de Direito deve ser a efetiva concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, sendo que o instituto jurídico do nome da pessoa natural e, também, do nome da pessoa indígena, por se tratar de direito da personalidade, encerra ao mesmo tempo um signo distintivo, mas também um elemento ligado, umbilicalmente, à ancestralidade, bem assim à felicidade humana, de maneira que, observadas as normas legais vigentes nada mais justo que se permita a alteração do nome – com exclusão até mesmo total dos sobrenomes até então utilizados, acaso se deseje -, no registro de nascimento do indígena.
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1 PEC 19/2010 – Senado Federal. Acesso em 16 de junho de 2024.
2 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: Teoria e Prática. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 169.
3 Art. 1º O indígena já registrado no Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais poderá solicitar extrajudicialmente a alteração de seu prenome e sobrenome, pessoalmente ou por representante legal, não se aplicando o disposto no art. 55, § 1º, da Lei nº 6.015/73. § 1º. No caso de registro de indígena, a etnia do registrado poderá ser lançada como sobrenome, a pedido do interessado, desde que a informação seja comprovada pela apresentação da RANI ou por declaração expedida pela FUNAI. § 2º. Aplicam-se aos indígenas as regras de alteração de prenome e sobrenome, previstas no Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial. § 3º. Na hipótese da alteração de prenome, a certidão de protesto poderá ser substituída por consulta gratuita à Central de Protesto – CENPROT, assim como a publicação do edital eletrônico será realizada gratuitamente pela ARPEN/BA. § 4º. A FUNAI possui legitimidade para representar o indígena perante a serventia extrajudicial, mediante a apresentação de documento que comprove a manifestação inequívoca de vontade. Art. 2º A pedido do interessado, a aldeia de origem do indígena e a de seus pais poderão constar como informação a respeito das respectivas naturalidades, juntamente com o município de nascimento, desde que a informação seja comprovada pela apresentação da RANI ou por declaração expedida pela FUNAI.
4 PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida. MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Registro Civil de Pessoas Naturais. Os Desafios decorrentes da evolução humana. Vol. 2. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024, p. 165.
5 PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida. MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Registro Civil de Pessoas Naturais. Os Desafios decorrentes da evolução humana. Vol. 2. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024, p. 168.
Fonte: Migalhas
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