No dia dez de dezembro do recém findado ano de dois mil e vinte e quatro, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento 188 que dispõe sobre a nova Central Nacional de Indisponibilidade de Bens (CNIB) 2.0, destinada ao cadastramento de ordens de indisponibilidade de bens específicos ou do patrimônio indistinto, bem como das ordens para cancelamento de indisponibilidade.
A normativa tem efeito em âmbito nacional e altera o Código Nacional de Normas (Provimento 149/2023), trazendo inovações no trato dos negócios imobiliários.
A alteração revoga o Provimento 39 de 25 de julho de 2014 e poder-se-ia aperfeiçoar o cadastramento das ordens de indisponibilidade, entretanto, na forma como foi editado traz insegurança ao mercado imobiliário e à atividade comercial imobiliária em massa.
A Constituição da República Federativa do Brasil, reservou à União, com exclusividade, a competência para legislar sobre registros públicos, cujo comando está insculpido no art. 22, XXV da Carta Magna. Com essa reserva, fica determinado que qualquer norma relativa a registros públicos, incluindo o de imóveis, portanto, somente pode ser de iniciativa de membro do Congresso Nacional ou do Presidente da República. Veja-se que a competência para legislar é exclusiva à União.
O Conselho Nacional de Justiça, fundamenta a edição de suas normativas, no poder de fiscalização e de normatização do Poder Judiciário em relação aos atos praticados por seus órgãos, regramento contido no art. 103- B, § 4º, I, II e III, da Constituição Federal de 1988. Pela mesma Emenda Constitucional 45 de 30 de dezembro de 2004, constituiu-se atribuição da Corregedoria Nacional Justiça a expedição de provimentos e outros atos normativos destinados ao aperfeiçoamento das atividades dos serviços notariais e de registro, com diretriz específica no art. 8º, X, do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça.
Ocorre que a novel alteração normativa altera significativamente dois princípios basilares do Direito Registral Imobiliário, quais seja, o da PRIORIDADE e o da CONCENTRAÇÃO, com intercorrências diretas ao princípio da PUBLICIDADE.
Na lição de CARLOS ROBERTO GONÇALVES:
“Para proporcionar maior segurança aos negócios imobiliários, criou o legislador um sistema de registros públicos, informado por diversos princípios que garantem a sua eficácia. O primeiro desses princípios é o da publicidade. O registro confere publicidade às transações imobiliárias, valendo contra terceiros. Qualquer pessoa poderá requerer certidão de registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou o interesse do pedido (LRP, art. 17)” (Direito das Coisas, Ed. Saraiva, São Paulo, 1997, p. 90). (grifei)
O que ocorre é que o Provimento 188 do CNJ, dispõe o § 3º do art. 320, I – que altera o Código Nacional de Normas – legisla o seguinte:
“A superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos, ainda que anteriormente prenotados, salvo exista na ordem judicial previsão em contrário”. (grifei)
A concentração dos atos na matrícula tem como fundamento jurídico os dispositivos contidos nos artigos 54 a 58 da Lei 13.097/2015. O artigo 54 regra especificamente o instituto, trazendo segurança aos adquirentes de boa-fé pela inoponibilidade de atos não constantes da matrícula imobiliária.
O comando contido no artigo 54 busca a dinamização da atividade comercial imobiliária, sujeitando os direitos reais à publicização mediante registro ou averbação na matrícula do imóvel. O artigo 1.227 do Código Civil Brasileiro dispõe que os imóveis constituídos ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro dos referidos títulos translativos, no competente Cartório de Registro de Imóveis.
Assim, tem preferência ou PRIORIDADE de direito aquele que primeiro alcança o fólio real, seja credor ou adquirente. Os demais comandos contidos no artigo 54 e seus parágrafos tratam sobre eventual conflito de interesses entre credores do alienante e o próprio adquirente.
O professor Olivar Vitale, em sua obra Curso de Direito Imobiliário Brasileiro (2. ed. São Paulo: Tomson Reuters Brasil, 2022, p.199), relata sobre a simplificação da atividade comercial imobiliária pela análise precípua da certidão atualizada da matrícula extraída do fólio real:
“Em apertada síntese, o novo ordenamento jurídico afastou a necessidade da análise numerosa de certidões e documentos, ancorada na interpretação do regramento contido principalmente no Código Civil de 1916 e do Código de Processo Civil de 1973, visando à demonstração da boa-fé pelo adquirente para delimitar essa comprovação ao exame da certidão atualizada da matrícula, e ostentou a inovação jurídica para legitimar a alteração do viés de proteção do credor ao adquirente de boa-fé. Acerca disso é importante mencionar a nova redação do art. 54 da Lei 13.097/2015 dada pela Lei 14.382/2022, que visa reforçar o conforto do adquirente de boa-fé pelo simples exame da matrícula do imóvel.” (grifei)
Existem discussões doutrinárias sobre se a CONCENTRAÇÃO matricial se trata de princípio registral ou tão somente regramento legal. Segundo critérios de solução de conflitos legislativos, a lei 13.097/2015 – concentração de atos – após sua ratificação pela lei 14.382/22, que instituiu o Sistema eletrônico dos Registros Públicos – SERP, verifica-se a existência de critérios de especialidade e hierarquia em relação ao comando normativo do CNJ.
O jurista e filósofo austríaco Hans Kelsen – tido como um dos nomes mais importantes do direito moderno – em sua obra “Teoria Pura do Direito”, leciona que o Estado deve ser o único e principal detentor do poder de elaborar leis, sendo que essas legislações devem seguir uma hierarquia: as normas gerais derivam das normas específicas.
Como poderia o regramento contido em uma normativa emanada pelo Conselho Nacional de Justiça ARREBATAR o princípio da CONCENTRAÇÃO trazendo uma exceção à PRIORIDADE do protocolo registral? As normas contidas no Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial (o Prov. 188/24 o altera), que se destina a regulamenta os serviços notariais e de registro seria oponível à terceiros ou somente aos notários e registradores?
O Conselho Nacional de Justiça, por diversos Provimentos e Resoluções, ultimamente, vem inferindo na atividade notarial e registral trazendo regramentos e normas, muitas vezes, contrárias à legislação, veja-se a recém autorização para a lavratura de inventários e divórcios extrajudiciais com a participação de menores e/ou incapazes, o que é defeso no Código de Processo Civil Brasileiro. Entretanto, tais modificações não alteram PRINCÍPIOS e trazem benefícios aos usuários, tanto quanto à opção pela celeridade notarial, quanto pela economia nos custos de tramitação, que em muitos estados é maior quando tramitam pelo judiciário que os emolumentos se processados pelos cartórios.
O princípio da PRIORIDADE impõe que os títulos submetidos ao registro imobiliário tomarão, no livro 1 (protocolo), um número de ordem que obedecerá rigorosa sequência de apresentação, e este número determina a preferência dos direitos objeto da qualificação registral.
O Art. 320-F do Código Nacional de Normas, incluído pelo Provimento 188, regra que a consulta ao banco de dados da CNIB será obrigatória para todos os notários e registradores de imóveis, no desempenho de suas atividades, bem como para a prática dos atos de ofício, nos termos da Lei e das normas regulamentares, devendo o resultado da consulta ser consignado no ato notarial. A regra contida neste artigo se contradiz com o que denominamos de princípio do ARREBATAMENTO, insculpido no § 3º do art. 320, I, ora, se o notário consultar a CNIB antes da lavratura do ato notarial, consignando o seu resultado NEGATIVO, nada impedirá de que uma ordem de indisponibilidade superveniente arrebata os princípios CONCENTRAÇÃO e da PRIORIDADE, alcançando a publicidade real antes do título em tramitação de registro, tornando o negócio imobiliário eivado de incertezas e de insídia ao adquirente. O registro efetivo da propriedade será um evento de celebração e festividade.
Não se trata, aqui, de incentivo de fraude à execução – conflito legal previsto no inciso IV, do artigo 792, do CPC – mas à garantia de higidez do negócio imobiliário ao adquirente. A regência contida no § 3º do art. 320, I do CNN/CNJ traz insegurança ao adquirente privilegiando o credor que, eventualmente, foi indiligente ou desidioso quanto a publicização de suas pretensões creditícias.
Necessário, lembrar, contudo, que o Superior Tribunal de Justiça sumulou sob número 375, o entendimento jurisprudencial, de que para se possa reconhecer a fraude à execução, dependerá do registro da constrição sobre o bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.
O mercado imobiliário desempenha um papel crucial no crescimento econômico e social de um país, veja-se a crise e bolha imobiliária nos Estados Unidos em 2008 que, por motivos outros, retratou uma das piores crises financeiras da história recente.
Em nada adianta a consulta antecipada à CNIB vez que o parágrafo único do art. 320-F do CNN normatiza que a existência de ordem de indisponibilidade não impede a lavratura de escritura pública, mas obriga que as partes sejam cientificadas, cientificação esta que pode sofrer mutação imediata e on-line.
Diante desses raciocínios, na eventual permanência da inteligência do contido no Provimento 188 do CNJ – ainda sob vacatio legis até 10 de janeiro de 2025 – logo, pendente de eficácia até então, para a higidez do negócio imobiliário e da correta instrução notarial, imperativa a volta da apresentação das certidões pessoais em nome e cadastro dos alienantes, já que a indisponibilidade de bens terá o condão ARREBATAR a CONCENTRAÇÃO e a PRIORIDADE registral.
*DOUGLAS GAVAZZI é advogado especializado em consultoria para Cartórios, atuou por 30 anos em cartórios pelo estado de São Paulo. Especialista em Direito Notarial e Registral, autor de livros e artigos na área cartorial.
Fonte: JUS.com.br
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