Como as narrativas literárias de Sófocles e Machado de Assis podem contribuir para a compreensão de temas jurídicos sensíveis.
Há muito em comum entre o universo literário e o sistema jurídico. Um olhar superficial permite concluir que ambos possuem a palavra como matéria prima – mas esta não é a única interseção entre as duas formas de compreender o mundo.
Por vezes, direito e literatura entrelaçam as mãos para retratar as dinâmicas sociais. Para sistematizar o estudo fruto desta relação interdisciplinar foram criadas três categorias pelo Law and Literature Movement, originado nos Estados Unidos. São elas:
- Direito na literatura;
- Direito como literatura;
- Direito da literatura.
Em linhas gerais, a primeira perspectiva tem como escopo investigar a forma como o Direito é tratado nos textos literários. Esta é a lente que será utilizada no presente artigo.
Por sua vez, o Direito como literatura propõe a leitura de institutos jurídicos com o método da análise literária.1 Sob esta ótica, é possível compreender uma sentença ou um acórdão como uma história, com personagens, início, enredo e fim.
Já no âmbito do Direito da Literatura, estuda-se as normas jurídicas que tutelam a atividade literária. Aqui, portanto, estão abarcadas as leis que regulam a criação e difusão de obras, além dos direitos a elas atrelados.2
Traçada a distinção, passa-se a tratar de exemplos que subsidiam o título deste artigo. Este é um dos problemas de advogados: Dificilmente abandonam o ofício e querem comprovar, a todo tempo, através de teses e exemplificações, que sua perspectiva é adequada. Com a escusa da profissão, será analisado o universo jurídico constante nas obras de Sófocles, especificamente Édipo Rei e Antígona, bem como no conto O Alienista, de Machado de Assis.
Sabe-se que a tragédia clássica de Édipo Rei foi escrita por Sófocles, um dos mais importantes dramaturgos da Grécia Antiga, no século V a.C. Nela, conta-se a história de um homem que, por força de uma série de acontecimentos improváveis, mas vaticinados pelos deuses, mata seu pai e casa com sua mãe, sem, no entanto, ter consciência dos laços de parentesco. É neste contexto que, diante da morte de Laio, antigo rei de Tebas, Édipo, novo soberano, se propõe a buscar todas as instâncias de revelação da verdade para compreender o que havia ocorrido com seu antecessor, morto em um confronto.
É justamente esta conduta de Édipo que suscita reflexões no universo da lei. Ao buscar testemunhas oculares que comprovassem a versão do oráculo, todos foram ouvidos, inclusive, escravos, até então sem voz e à margem daquela sociedade. Verifica-se, nesta medida, a transição para um plano no qual todos são considerados fontes legítimas de produção da verdade. A partir disso, pode-se pensar o papel da testemunha no âmbito do processo penal.
De acordo com a legislação pátria, toda pessoa poderá ser testemunha. O dispositivo previsto no CPP, no entanto, não é indene às críticas contemporâneas, que questionam a valoração da prova testemunhal, frente a tantos equívocos em condenações criminais. Seja como for, é certo que a testemunha pode desempenhar papel central no desvendamento dos fatos. Assim, Sófocles foi responsável por inaugurar o procedimento jurídico investigativo3, estruturado de forma racional, com vistas à comprovação dos acontecimentos através de evidências e testemunhas oculares, em superação ao elemento místico como única fonte de veracidade.
O Direito também permeia a continuação desta história, cuja protagonista é Antígona, filha de Édipo e Jocasta. Em síntese, após a morte de Édipo, seus filhos Etéocles e Polinices acabam por disputar o trono de Tebas. No confronto, ambos morrem, razão pela qual Creonte, irmão de Jocasta, é quem assume o poder. Através de um decreto, Creonte proíbe que Polinices seja sepultado, o que gera inconformismo em Antígona, irmã de ambos os falecidos, e defensora do costume sagrado.
Assim, a narrativa contrapõe a lei dos homens, representada pela autoridade do soberano, e o direito universal ao sepultamento, entendido como um valor ético superior. Trata-se da clássica contraposição entre o jusnaturalismo e o positivismo, que influencia as discussões relativas ao poder constituinte originário até os dias atuais. Novamente, identifica-se o Direito na literatura, a suscitar questionamentos inerentes ao Direito Constitucional.
Ainda entre os clássicos, o conto O Alienista, de Machado de Assis, publicado pela primeira vez no século XIX, retrata uma série de comportamentos arbitrários por parte do protagonista, chancelados pelas autoridades que compõem a história, sob o verniz da legalidade. De forma resumida, o médico Simão Bacamarte decide cuidar das patologias mentais dos habitantes de Itaguaí. Amparado por autorização da Câmara dos Vereadores, constrói a Casa Verde, para tratamento dos desatinados. Contudo, os critérios traçados pelo cientista para definir a loucura variavam constantemente, o que representou o recolhimento desenfreado do povo.
A obra apresenta as ações dos personagens respaldadas por instrumentos do universo jurídico, no entanto, o que se destaca é o império da arbitrariedade. Nesta medida, o conto ilustra de que forma as leis e o Direito podem ser utilizados como ferramenta de institucionalização da violência, em cenário no qual impera a falsa legalidade, responsável pelos abusos e insegurança na vida da população.
Outro aspecto relevante na história é a zona de penumbra em relação ao interesse público e privado, que se confundem nas determinações do médico. No conto, é narrado o episódio do anel de prata, que induz ao leitor a acreditar que o Alienista não era movido exclusivamente pela ciência, de forma que suas atitudes dissimulavam uma finalidade privada, em que pese exercesse atividade supostamente voltada para o bem-estar social.
A arbitrariedade e a dicotomia entre o público e o privado são temas afetos ao Direito Administrativo. Justamente por isso, a retratação caricata do poder no conto é fonte de reflexões jurídicas.
Como demonstrado, a literatura aborda temas sensíveis das mais variadas áreas do Direito. O paralelo entre ficção e realidade permite a releitura de situações cotidianas, o que abre espaço para novas interpretações dos dilemas e controvérsias que acompanham o percurso histórico do homem.
_______
1 OST, François. Contar a lei. 1º ed. Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2007. 48 p.
2 SCHWARTZ, Germano André Doerderlein. A Constituição, a literatura e o direito. 1ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. 60-61 p.
3 FOUCAULT, Michel. Conferência 2. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2003.
Fonte: Migalhas
Deixe um comentário