O artigo introduz a categoria do crédito predatório, fazendo um paralelo com a litigância predatória e evidenciando seu impacto social. Propõe ainda medidas legais para combater essa prática danosa.

“Chamam violenta a torrente impetuosa do rio.

Mas não chamam violentas as margens que o reprimem.”

Bertolt Brecht, A Vida de Galileu, 1938.

Introdução

O objetivo deste texto é propor a introdução, na dogmática jurídica1, da categoria2 do crédito predatório.

Para atender a este objetivo, o estudo tem como premissa a noção do crédito responsável, categoria já bem assentada em nosso ordenamento. Este é o conjunto de deveres previstos ao fornecedor do crédito, principalmente o crédito bancário, com o objetivo de prevenir o superendividamento ou outras situações que levem o tomador de crédito à ruína.

O desrespeito às práticas do crédito responsável leva ao seu oposto, o crédito irresponsável, que justamente fomenta o superendividamento das pessoas físicas e leva à inviabilização de empreendimentos empresariais.

O crédito predatório, no entanto, se encontra uma oitava acima. Compõem a sua configuração elementos que estão presentes na Litigância Predatória, fenômeno que se tornou mais relevante recentemente, e que vem assolando a prática jurídica e provocando uma série de iniciativas, seja do Poder Judiciário, seja das entidades lesadas, no sentido de reprimi-lo e evitar seus efeitos deletérios para a sociedade como um todo.

A função do crédito na sociedade atual

Para bem construir a noção clara do que se entende como crédito predatório, convida-se o leitor a acompanhar uma reflexão inicial acerca da função do crédito na sociedade atual.

A etimologia ensina que o crédito deriva do latim creditum, que remete à ideia de confiança, de acreditar. Ou seja, se uma pessoa empresta dinheiro ou mesmo um bem a outra, é porque confia que este dinheiro ou este bem será restituído.

O crédito desempenha uma função central na estrutura econômica e social de nossos dias. Ao antecipar recursos, o crédito permite que indivíduos e empresas tenham acesso a bens, realizem projetos e concretizem sonhos em um prazo muito mais curto do que seria possível por meio da simples acumulação de capital.

É possível desdobrar a função do crédito na sociedade contemporânea em duas grandes vertentes.

A primeira é o fomento ao consumo. Ao viabilizar o acesso a bens e serviços que, de outra forma, seriam economicamente inacessíveis, o crédito potencializa a atividade comercial, o mercado consumidor se desenvolve, a economia gira. Empregos são criados, impostos são recolhidos.

A segunda é o fomento à atividade produtiva. O crédito viabiliza a expansão dos negócios, a pesquisa e desenvolvimento de novos produtos e serviços, a implantação de projetos empresariais. É, portanto, um instrumento de grande relevância para o desenvolvimento econômico e a competitividade empresarial.

O ordenamento jurídico reconhece a elevada estatura do crédito para a sociedade, disciplinando-o tanto na esfera constitucional como na legislação ordinária.

O art. 192 da CF/88 prevê que o Sistema Financeiro Nacional (arcabouço institucional onde estão albergadas as instituições financeiras, principais articuladoras das operações de crédito em nosso país) deve ser estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade.

Já a lei 4.595/64, considerada a lei fundante do Sistema Financeiro Nacional, declara, em seu art. 3º, inciso IV, que “A política do Conselho Monetário Nacional objetivará: IV – Orientar a aplicação dos recursos das instituições financeiras, quer públicas, quer privadas; tendo em vista propiciar, nas diferentes regiões do País, condições favoráveis ao desenvolvimento harmônico da economia nacional”.

Um mercado de crédito saudável leva ao crescimento econômico e social, à geração de riquezas, e tem o potencial de aumentar o nível geral de bem-estar de uma nação.

Quando o crédito atende sua vocação constitucional e também o que está previsto na lei ordinária, tem também um importante papel na inclusão econômica e social. Ele permite que pessoas e empresas de menor poder aquisitivo superem barreiras financeiras e alcancem novas oportunidades. Seja para a compra da casa própria, a educação de filhos ou o início de um pequeno negócio, o crédito é uma ponte que conecta as aspirações ao mundo real. É uma forma de converter sonhos e projetos em realizações efetivas.

Em última instância, é um instrumento para promover cidadania.

Crédito saudável e crédito doentio

No entanto, nem todo crédito promove desenvolvimento ou inclusão. Assim como muitas substâncias químicas ou alimentos, um uso inadequado pode produzir efeitos indesejados. Quando praticado sem a observância de suas finalidades, o crédito pode se transformar em um instrumento de exploração e desequilíbrio. Por isso é importante ter ciência da distinção entre crédito saudável e crédito doentio.

Crédito saudável é aquele que proporciona ao tomador o atingimento de um patamar de bem-estar, não só material, mas também familiar ou mesmo emocional, superior ao que seria possível alcançar apenas com recursos próprios.

Já o crédito doentio é aquele tomado sem planejamento, sem critério, sem a necessária clareza sobre seus riscos. Na grande maioria dos casos, sem a devida orientação. Normalmente, produz o efeito inverso do crédito saudável, ou seja, produz sofrimento das mais diferentes ordens, prejuízos, declínio na qualidade de vida e diminuição geral do bem-estar.

A esta altura, já é possível antecipar a noção de que o crédito predatório tem íntima conexão com o crédito doentio. Mas não nos precipitemos, e sigamos o estudo.

A lei 14.181/21 e o crédito responsável

Tendo presente a função que o crédito exerce (ou ao menos deveria exercer) em nossas vidas, fica mais fácil compreender o movimento legislativo, que por sinal é amparado em sólida fundamentação doutrinária, pela promoção do crédito responsável.

A lei 14.181/21 (que ficou conhecida como a lei do superendividamento) incluiu dentre os direitos básicos do consumidor (art. 6º do CDC – Código de Defesa do Consumidor) a garantia de práticas de crédito responsável3.

Bruno Miragem ensina que “os deveres imputados ao fornecedor na oferta e contratação de crédito, de caráter preventivo, são abrangentes, em relação à sua atuação no mercado.” (…) “A garantia de práticas de crédito responsável compreende, nesta perspectiva, a previsão de deveres específicos do fornecedor de crédito, visando a esclarecimento do consumidor e a cooperação e cuidado para evitar o superendividamento.”4

Classifico as obrigações que a lei 14.181 introduziu para o fornecedor do crédito como objetivas e subjetivas.

As obrigações objetivas estão previstas fundamentalmente no art. 54-B da lei5 e constituem um aprimoramento do dever de informação, ao especificar dados essenciais que o fornecedor precisa comunicar ao consumidor tomador do crédito.

Já aquelas que denomino obrigações subjetivas estão elencadas em especial nos arts. 54-C e 54-D6. Estas são comportamentos, atitudes a serem evitadas ou observadas pelo fornecedor do crédito. Tanto é assim que a cada uma delas há um verbo associado. Dentre as condutas a serem evitadas, há por exemplo os verbos assediar, pressionar, condicionar. Já quanto às condutas a serem observadas, há os verbos informar, esclarecer e avaliar.

Observe-se, por oportuno, que o parágrafo único do art. 54-D prevê sanções específicas para quando não se pratica o crédito responsável, tais como a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais. Estas são as que eu tenho chamado de novas possibilidades para a revisão contratual.

As regras específicas que promovem o crédito responsável, agora materializadas no CDC, são os desdobramentos de um dos princípios basilares do direito contratual, a boa-fé objetiva7. Esta, por sua vez, concretiza o atuar ético nas relações contratuais. Busca assegurar que o exercício do crédito seja um instrumento de emancipação dos agentes econômicos, e não a causa de sua submissão e empobrecimento.

Neste passo, seria de se perguntar por que é necessário todo um regramento para assegurar a prática do crédito responsável.

O crédito irresponsável na perspectiva da análise econômica do Direito

Pois bem. O desenvolvimento da noção do crédito responsável e a sua positivação no CDC surgem justamente como uma reação ao que se observa de forma recorrente no mercado, que é o seu oposto, o crédito irresponsável, uma prática de todo reprovável que desconsidera as funções saudáveis do crédito, referidas acima.

A análise econômica do Direito8 fornece subsídios que facilitam a compreensão do que motiva o crédito irresponsável.

Um primeiro conceito que se deve ter presente é o de assimetria da informação9. Esta ocorre quando uma das partes em uma transação econômica ou relação contratual detém mais informações relevantes do que a outra. Essa desigualdade pode afetar decisões e resultados, pois a parte mais informada pode tirar vantagem de seu conhecimento superior, enquanto a parte menos informada enfrenta dificuldades para avaliar os riscos ou benefícios envolvidos.

A assimetria de informação se relaciona com o que a doutrina consumerista denomina de vulnerabilidade informacional, aquela em que consumidor não tem acesso a todas as informações necessárias para a realização do negócio jurídico, e fica sujeito à manipulação da informação por parte do prestador de serviços10.

O outro conceito a se considerar é o de conflito de agência11, que também pode ser compreendido por conflito de interesse.

O conflito de agência ocorre quando há uma relação entre um agente (aqui podemos pensar no representante do banco), que toma decisões em nome de um principal (o cliente do banco), e os interesses de ambos não estão completamente alinhados. Esse descompasso frequentemente é agravado pela assimetria de informação, pois o agente, que possui mais informações sobre as decisões ou ações necessárias, pode utilizá-las em benefício próprio, enquanto o principal enfrenta dificuldades para monitorar ou compreender plenamente as escolhas feitas em seu nome.

A todos quantos militam no Direito Bancário, em especial prestando serviços aos devedores bancários, é cristalina a presença cotidiana tanto da assimetria de informação quanto do conflito de agência.

Ainda que haja honrosas exceções, como regra o único espaço em que os interesses dos clientes bancários são colocados em primeiro plano é nas peças publicitárias, esteticamente impecáveis, dos grandes bancos nacionais, em especial aquelas veiculadas no horário nobre. Obviamente, para inglês ver.

É para refrear a sanha maximizadora de resultados a qualquer custo que entram em cena as normas que buscam disciplinar e estabelecer as práticas responsáveis na concessão de crédito.

Crédito irresponsável: Agir culposo ou dolo eventual

Quando se fala em crédito irresponsável, se está falando em um fornecedor de serviços de crédito que deixa de observar as obrigações legais na concessão do crédito, e com isso, deixa de cumprir seu dever legal de prevenir a configuração de uma situação de superendividamento de uma pessoa física, ou de insolvência de um empreendimento empresarial. No mais das vezes se está diante de um comportamento análogo a uma conduta culposa, ou até mesmo a um dolo eventual.

Vale dizer, o fornecedor do crédito negligencia de seus deveres. Deixa de prestar a informação adequada ao tomador do crédito. É imprudente ao avaliar o risco de crédito do potencial cliente.

Adota uma posição deliberadamente omissiva, “lava as mãos” e quando confrontado procura desvencilhar-se de suas obrigações. São comuns manifestações, seja na esfera extrajudicial, seja nos autos de processos, que sintetizam a ideia básica de que o devedor “se obrigou porque quis.” Ou ainda, “ninguém o obrigou a fazer o empréstimo.”

Na mesma linha, invoca-se o clássico “pacta sunt servanda”, o que muitas das vezes revela um constrangedor desconhecimento da evolução da ciência contratual pelo menos dos últimos 100 anos.12

É aquilo que o professor Bruno Miragem refere como a ideia de imputar ao devedor a responsabilidade por seu endividamento. Quase como culpar a vítima pelo estupro, com o perdão da analogia grotesca.

Na seara da concessão de crédito de fato há uma parcela da responsabilidade que é sim do consumidor, o tomador do crédito. Não é por outra razão que a lei 14.181/21 introduziu, na Política Nacional das Relações de Consumo, o princípio do fomento de ações direcionadas à educação financeira dos consumidores, no art. 4º inciso IX do CDC. A mesma lei assegura a garantia de práticas de educação financeira como um dos direitos básicos do consumidor, no art. 6º inciso XI.

Porém, esta vulnerabilidade do consumidor, reconhecida na evidente deficiência de educação financeira que está presente na média da população brasileira, deveria ser tratada pelo fornecedor do crédito como mais uma razão para a prática do crédito responsável, e não como uma justificativa para os terríveis malefícios que as práticas condenáveis dos fornecedores de crédito produzem, tanto nas famílias como nos negócios.

O que a economia comportamental tem a dizer

A economia comportamental13 tem já estudos bem estabelecidos, demonstrando que os agentes econômicos (para os fins deste estudo, os consumidores de serviços de crédito) detém racionalidade limitada, e são suscetíveis a vieses que produzem escolhas subótimas, ou seja, decisões com a aparência de serem as melhores, mas que na realidade levam a resultados não desejados.

Daniel Kahneman, ganhador do prêmio nobel de economia, é autor de vasta obra envolvendo temas de economia comportamental. Uma delas, Rápido e Devagar – Duas Formas de Pensar14, ganhou bastante notoriedade nos últimos anos.

Nela o autor apresenta os conceitos de Sistema 1 e Sistema 2 para descrever os processos de pensamento humano. O Sistema 1 é rápido, automático, emocional e opera com base em intuições e heurísticas15, sendo responsável pelas decisões imediatas e pouco refletidas. Já o Sistema 2 é mais lento, deliberativo e racional, exigindo maior esforço cognitivo e análise. O Sistema 1 é predominante na maioria das situações cotidianas, especialmente em decisões tomadas sob pressão ou com informações limitadas, o que pode levar a escolhas subótimas e vulneráveis a vieses cognitivos.

Ora, a conduta esperada a partir da prática do crédito responsável integra também este cuidado e esta noção da racionalidade limitada dos agentes. Este é um conhecimento acessível tecnicamente aos fornecedores de crédito. É razoável, portanto, exigir este dever de cuidado, este dever de evitar a ruína do consumidor de crédito bancário. Na prática, no entanto, não é isso que se observa.

O crédito predatório e sua cara metade, a litigância predatória

É neste contexto que surge a noção do crédito predatório16. Como já dito, este se encontra uma oitava acima do crédito irresponsável. Ou, dito de outra forma, é como um crédito irresponsável qualificado.

Para que se possa compreender o conceito, é a hora de invocar a noção do que se entende por litigância predatória, ou abusiva, a fim de apropriar elementos deste fenômeno na empreitada a que este texto está dedicado, qual seja, a caracterização do crédito predatório.

A litigância predatória vem merecendo especial atenção do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, e vem sendo veementemente combatida pelos ditos grandes litigantes, dentre eles as principais instituições financeiras de nosso país.

Trata-se de prática adotada por maus profissionais, muitas vezes se valendo das facilidades do avanço da tecnologia, notadamente do processo eletrônico, que possibilita o exercício da advocacia, potencialmente, em todas as comarcas do país. Em apertada síntese, se faz um uso indevido do processo judicial, com o objetivo de obter vantagem ilícita.

Do ponto de vista dogmático, a litigância predatória é uma manifestação do abuso de direito, que por sua vez está inserido no título dos Atos Ilícitos da Parte Geral do CC. Este, o abuso de direito, se caracteriza como o exercício de um direito de maneira excessiva e desviada de sua finalidade, seja econômica ou social, bem como excedendo os limites da boa-fé (objetiva)17. Ao exercer um direito de forma abusiva, o agente busca obter vantagem ilícita e causar prejuízo a outrem.

Flávio Tartuce ensina que o abuso de direito está inserido como um dos alicerces da responsabilidade extracontratual, ao lado dos atos ilícitos18. Ressalta, no entanto, que o abuso de direito também atinge a responsabilidade contratual.

O professor ainda ensina que o conceito de abuso de direito “também interage com o princípio da eticidade, eis que o atual Código Civil prevê as consequências do ato ilícito para a pessoa que age em desrespeito à boa-fé, aqui prevista a boa-fé de natureza objetiva, relacionada com a conduta leal, proba e integradora das relações negociais. O art. 187 do CC/2002 consagra a ‘função de controle’ exercida pela boa-fé objetiva, fazendo com que o abuso de direito esteja presente na esfera contratual, ou seja, da autonomia privada”19.

Neste passo, saltam aos olhos dois pontos que interessam ao presente estudo: o primeiro é que a prática do abuso de direito se relaciona com a não observância da boa-fé objetiva, princípio estruturante do direito contratual, e que está intimamente ligado à prática do crédito responsável.

O segundo é que o abuso de direito está inserido na disciplina da responsabilidade civil. Cabe ter presente o enunciado 37 da I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal:

“Art. 187. A responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.”

Este elemento será essencial para fundamentar a necessidade de indenização, seja de natureza material, seja moral, daquele que pratica o abuso de direito por meio do crédito predatório.

Pois bem, retornando ao exame da litigância predatória, que como já dito é uma manifestação do abuso de direito:

A recomendação CNJ 127, de 15/2/22, que “Recomenda aos tribunais a adoção de cautelas visando a coibir a judicialização predatória que possa acarretar o cerceamento de defesa e a limitação da liberdade de expressão”, define, em seu art. 2º, a judicialização predatória:

“Art. 2o Para os fins desta recomendação, entende-se por judicialização predatória o ajuizamento em massa em território nacional de ações com pedido e causa de pedir semelhantes em face de uma pessoa ou de um grupo específico de pessoas, a fim de inibir a plena liberdade de expressão.”

Referida recomendação foi motivada pelo uso indevido do sistema judicial contra jornalistas. Se identificou a distribuição de ações idênticas ou muito semelhantes em diversas comarcas pelo país, contra a mesma pessoa ou empresa. O objetivo era inviabilizar, ou dificultar, o exercício da defesa, e com isso, além de causar prejuízos econômicos, impedir, de forma antijurídica, o livre exercício da profissão.

Mais recentemente, a recomendação 159, de 23/10/24, que “Recomenda medidas para identificação, tratamento e prevenção da litigância abusiva”, tratou de descrever em maiores detalhes o fenômeno, bem como estabeleceu medidas pragmáticas para combatê-lo.

Diz o art. 1º desta recomendação:

Art. 1º Recomendar aos(às) juízes(as) e tribunais que adotem medidas para identificar, tratar e sobretudo prevenir a litigância abusiva, entendida como o desvio ou manifesto excesso dos limites impostos pela finalidade social, jurídica, política e/ou econômica do direito de acesso ao Poder Judiciário, inclusive no polo passivo, comprometendo a capacidade de prestação jurisdicional e o acesso à Justiça.

Parágrafo único. Para a caracterização do gênero “litigância abusiva”, devem ser consideradas como espécies as condutas ou demandas sem lastro, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas, fraudulentas, desnecessariamente fracionadas, configuradoras de assédio processual ou violadoras do dever de mitigação de prejuízos, entre outras, as quais, conforme sua extensão e impactos, podem constituir litigância predatória20.

O assunto inclusive já produziu um precedente qualificado no âmbito do STJ, materializado no tema 1198:

Possibilidade de o juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, exigir que a parte autora emende a petição inicial com apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo, como procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias do contrato e dos extratos bancários.

A iniciativa, tanto do Poder Judiciário, capitaneado pelo CNJ, quanto das instituições que são vítimas desta prática, é de todo legítima, e merece o integral apoio dos profissionais comprometidos com o exercício da advocacia alinhado com os ditames da ética, da excelência profissional e da promoção da cidadania.

A litigância predatória, ou abusiva, merece ser combatida com todas as forças, pois, em última análise, reverte em prejuízo para o jurisdicionado, destinatário principal do sistema jurídico.

O que este artigo procura evidenciar, no entanto, é que o crédito predatório é tão ou mais prejudicial do que a litigância predatória. No entanto, não se tem notícia de iniciativa sequer aproximada a toda a mobilização institucional, toda a indignação e revolta manifestadas pelas instituições financeiras contra a litigância predatória.

Neste contexto é que se insere a citação de Bertold Brecht, que consta da epígrafe:

“Chamam violenta a torrente impetuosa do rio.

Mas não chamam violentas as margens que o reprimem.”

O crédito predatório como uma prática desleal

É por isso que precisamos falar sobre o crédito predatório. Neste está cristalizada a intenção deliberada de maximizar resultados a qualquer custo, principalmente à custa do prejuízo causado aos consumidores de serviços de crédito, presas dos predadores/abusadores.

O principal objetivo do crédito predatório é, sem dúvida, a maximização ilegal de resultados, garantindo o batimento de metas e a remuneração dos acionistas a qualquer custo.

Para que este objetivo se concretize, os fornecedores de crédito adotam uma postura desleal, afastada dos ditames da boa-fé objetiva, que como já dito é um dos princípios basilares do direito contratual, e que é fundamento de diversas normas de direito consumerista, com especial destaque para aquelas voltadas à prevenção do superendividamento e para a prática do crédito responsável.

Os praticantes do crédito predatório fazem pouco caso de todo o arcabouço legal voltado não só para a proteção dos interesses dos consumidores de crédito, mas principalmente para a manutenção de um mercado de crédito saudável.

Esta postura desleal se desdobra em uma série de práticas bem conhecidas a todos quantos militam nesta área. Dentre estas, destacam-se:

Atividade de “venda” de crédito e outros produtos financeiros: O crédito é concebido como uma mercadoria, um produto a ser vendido. E como tal, submete-se às estratégias convencionais de venda, que têm o foco em convencer o comprador das qualidades do produto, em “empurrar” algo que muitas vezes a pessoa sequer necessita.

Os representantes das instituições financeiras, sejam seus funcionários diretos, sejam os correspondentes bancários, trabalham sob a pressão de metas extremamente desafiadoras. A Justiça do Trabalho conhece de forma recorrente reclamações relacionadas a assédio moral e a adoecimento dos funcionários, causados pela pressão das metas21

Indução a escolhas ruins: Uma vez que o foco está no interesse do fornecedor do crédito, e não do consumidor tomador do crédito, os representantes dos bancos manipulam informações, traem a confiança de seus clientes, e os convencem a tomar decisões prejudiciais, tais como contratar seguros desnecessários, “aplicar” em títulos de capitalização, e refinanciar operações em grande número de parcelas (o que aumenta o custo financeiro, na medida em que os juros são uma função do tempo).

Esta situação se agrava – e aqui há um exemplo do conflito de agência – quando se sabe que a remuneração variável dos operadores do sistema se dá muitas vezes “na cabeça” como se diz no jargão da área. Ou seja, a remuneração pela originação de uma operação (a “venda”) se dá já quando do desembolso. Logo, não importa se o cliente vai ter que pagar por 120 meses, a remuneração do “vendedor” vem já no mês 1.

O incentivo é para “vender”, “empurrar”, convencer o cliente de qualquer maneira a tomar aquele crédito, sem observar, por exemplo, a obrigação de informar e esclarecer adequadamente o consumidor sobre todos os custos incidentes e sobre as consequências genéricas e específicas do inadimplemento – Art. 54-D inciso I do CDC – ou de avaliar, de forma responsável, as condições de crédito do consumidor – inciso II.

Um exemplo singular desta situação é uma discussão judicial em que representamos um cliente no escritório, que teve aprovada uma operação de crédito em que o valor da parcela equivale a aproximadamente 100% do valor de seus vencimentos! Obviamente, a operação foi viabilizada com a agregação de uma garantia real, um imóvel em alienação fiduciária.

Ou seja, o fornecedor do crédito tem todos os elementos para identificar a incapacidade de pagamento neste caso concreto. Aliás, o exemplo é tão gritante que sequer é necessário ser um profissional do mercado financeiro para identificar isso.

Mas como a operação tem uma garantia real, a situação é cômoda para a instituição financeira: caracterizado o inadimplemento, basta executar a garantia. E mais uma família é expropriada de seu bem de família, induzida que foi a ofertá-lo como garantia da operação.

Indução ao superendividamento: consequência lógica das práticas acima descritas é que os clientes, muitas vezes confiando na orientação do seu gerente22, acabam assumindo compromissos muito acima de sua capacidade de pagamento. Ao invés de receberem orientação para organizar suas finanças, para planejar seus gastos, o incentivo é sempre no sentido de tomar mais crédito.

Primeiro, se esgota a margem consignável, aquela porção dos vencimentos que é diretamente descontada da folha de pagamento, no caso de servidores públicos, assalariados do setor privado e beneficiários do INSS. Uma vez esgotada a margem consignável, se passa a efetuar descontos direto na conta corrente do cliente. Caso não haja saldo se adentra no limite do cheque especial. E quando até mesmo este se esgota… se propõe um reparcelamento!

No reparcelamento, o banco faz o “favor” de unificar as diferentes operações em aberto – geralmente empréstimo pessoal, cartão de crédito e cheque especial – dá uma carência, ou seja, mais prazo, porém com juros sendo computados, e ainda oferece o famoso “troco”, um dinheiro a mais. Tanto a carência como o “troco” funcionam como formas de quebrar eventual objeção. São incentivos que atendem à lógica da racionalidade limitada e dos vieses comportamentais, acima referidos.

E para completar, o representante do banco informa que o “comitê” aprovou a operação, porém é necessário dar uma garantia. E não raro as pessoas dão em garantia a própria casa em que moram, abrindo mão da proteção legal da impenhorabilidade!

Esta é uma descrição simplificada daquilo que popularmente se chama bola de neve, um acúmulo inexorável dos compromissos financeiros que vai escravizando e submetendo o devedor bancário. Converte-o ao fim e ao cabo, em um pagador permanente de juros para o banco. Simples assim.

O crédito predatório frequentemente explora vieses comportamentais do consumidor, como a aversão à perda e o excesso de confiança. Ao oferecer condições aparentemente vantajosas ou impor prazos irreais para decisão, os fornecedores de crédito predatório induzem escolhas que inevitavelmente levam ao superendividamento.

Se o crédito responsável é uma ponte para a cidadania, o crédito predatório é a armadilha que transforma essa ponte em um caminho de ruína. Em vez de viabilizar projetos e sonhos, ele transforma o consumidor em um devedor perpétuo, subvertendo a função constitucional do sistema financeiro de promover o desenvolvimento harmônico.

O mesmo fenômeno se identifica quanto aos pequenos negócios. Normalmente seus titulares têm pouco conhecimento de gestão financeira, e tendem, também, a confiar nas orientações do representante do banco. A mesma lógica se aplica aqui.

Veja-se o caso do capital de giro. Jamais se esclarece ao cliente que o custo financeiro das operações geralmente engole integralmente a sua margem de lucro. O custo financeiro médio de uma operação de capital de giro é em torno de 20% ao ano. Poucos negócios conseguem manter uma margem de lucro líquido neste patamar.

O financiamento do capital de giro, em abstrato, é uma operação viável e em muitos casos promove o crescimento da atividade empresarial. Porém, o seu custo precisa ser considerado no modelo de negócio. Esta preocupação, ou esta orientação, deveria estar presente nos fornecedores de crédito. Seu foco, no entanto, é apenas na estrutura de garantias, ou seja, não importa como, o que importa é que o crédito seja “vendido” e depois seja recuperado. Mesmo que isso signifique o fechamento do negócio e consequente perda de empregos.

Outra prática preocupante, e que também é um desdobramento da postura desleal que caracteriza o crédito predatório, é a ocorrência de fraudes.

O tema das fraudes merece um texto inteiro a ele dedicado. Para os limites deste artigo, basta dizer que há pelo menos dois grandes grupos de fraudes. Aquelas praticadas por criminosos de fora do sistema financeiro – estelionatários e outros mais – e aquelas praticadas por integrantes do próprio sistema.

Isso se dá, muitas das vezes, como forma de garantir o atingimento de metas. Assim, são gerados empréstimos sem o conhecimento dos clientes. São contratados produtos, como seguros, títulos de capitalização e consórcios, sem o conhecimento dos clientes.

Obviamente, estas operações não ocorrem por determinação direta das instituições financeiras. Estas têm todo um sistema de compliance e mecanismos de prevenção e detecção de fraudes. Além disso, são amplamente auditadas em três esferas: auditoria do Banco Central, auditoria interna e auditoria externa, sendo que as duas últimas constituem obrigação regulatória.

Todo este aparato, no entanto, não impede que viceje uma verdadeira indústria de fraudes. E apesar de muitos casos serem combatidos e revertidos, inclusive judicialmente, no frigir dos ovos este movimento acaba também revertendo em resultados positivos para os bancos. Obviamente, à custa do prejuízo daqueles que não tem condições, seja econômicas, seja de informação, para combater tais abusos.

É chegada a hora de combater o crédito predatório

Os elementos até aqui trabalhados demonstram o desrespeito, por parte dos fornecedores de crédito, das funções que este deve exercer na sociedade, como motor do desenvolvimento e do bem-estar social.

Demonstram o desrespeito tanto ao enquadramento constitucional, voltado a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade, quanto ao enquadramento institucional e regulatório previsto na lei 4.595/64, que atribui ao Conselho Monetário Nacional a promoção do desenvolvimento harmônico da economia nacional, bem como o desrespeito das normas protetivas do consumidor voltadas a prevenir o superendividamento e a promover o crédito responsável.

Há uma dimensão cruel neste desrespeito, materializada na quebra da confiança depositada pelos consumidores no sistema bancário. Estes nutrem uma legítima expectativa de verem suas necessidades creditícias atendidas de forma adequada, mas o que efetivamente recebem é um tratamento pernicioso, ardiloso, que os encaminha à ruína.

A professora Cláudia Lima Marques, já em 2004, antevia que a virtualização das relações consumeristas imporia desafios significativos ao paradigma da confiança e da boa-fé objetiva. Ensinava ela que “o Direito encontra legitimidade justamente no proteger das expectativas legítimas e da confiança dos indivíduos.”23

A professora alertava, com o pioneirismo que lhe é peculiar, para a necessidade de ressignificação do paradigma da confiança como um dos elementos centrais da boa-fé objetiva em um mundo que progressivamente se desmaterializa. Hoje, passados 20 anos da obra referida, a constatação da prática disseminada do crédito predatório é evidência de que ainda há muito por fazer.

A esta altura espera-se já estar bem caracterizado o fenômeno do crédito predatório, bem como que este é uma manifestação do abuso de direito. Este, o abuso do direito, insere-se no campo da responsabilidade civil, de natureza objetiva. Sendo assim, uma vez constatada a sua prática, abre-se a possibilidade para a condenação do abusador a indenizar pelos danos de natureza material e moral que causou.

Por sinal, a base legal que fundamenta este dever de indenizar está na parte final do parágrafo único do art. 54-D do CDC:

O descumprimento de qualquer dos deveres previstos no caput deste artigo e nos arts. 52 e 54-C deste Código poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor. (grifou-se)

O dispositivo remete a todos aqueles deveres que configuram a prática do crédito responsável. Ora, o crédito predatório é uma forma qualificada, ampliada, do crédito irresponsável. Logo, uma vez demonstrada e reconhecida judicialmente sua prática, a condenação a indenizar é medida que se impõe.

Aqui, mais uma vez se invocam as lições da análise econômica do Direito, e a noção da lógica de incentivos. Na medida em que a prática do crédito predatório passa a ser punida com sanções financeiras, passa a ser menos interessante, e é razoável esperar ajustes por parte dos fornecedores de crédito, para buscar a manutenção de sua rentabilidade em práticas mais alinhadas com o ordenamento jurídico, e que, ao invés de deteriorar o mercado de crédito, promova a sua expansão.24

Esta realidade depende do empenho dos operadores do direito. Incumbe à advocacia, enquanto atividade indispensável à administração da Justiça, conforme previsto no art. 133 da CF/88, e como profissão historicamente dedicada à promoção da cidadania, exercer seu múnus público para combater práticas abusivas como o crédito predatório. Mais do que representar interesses individuais, os advogados são agentes de promoção da cidadania e de defesa da ordem econômica e social. Exercem, portanto, papel indispensável na proteção do consumidor e na construção de um mercado de crédito mais ético e equilibrado.

Entusiasta que sou das práticas autocompositivas e dos meios adequados de solução de conflitos, encerro este texto com um chamamento aos integrantes do sistema financeiro, para que considerem dedicar esforços equivalentes, tanto ao combate da litigância predatória, como ao crédito predatório. E que considerem formas de manter sua lucratividade que não dependam da expoliação do consumidor bancário.

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1 A dogmática jurídica é o ramo da ciência jurídica que se dedica ao estudo, sistematização e interpretação do direito positivo (as normas jurídicas vigentes em um determinado ordenamento jurídico – norma entendida no sentido mais amplo: lei ordinária, jurisprudência, doutrina e costumes), com o objetivo de torná-lo compreensível, aplicável e coerente. Ela busca construir um sistema lógico e ordenado a partir das normas e princípios jurídicos, fornecendo ferramentas para sua aplicação prática.

2 Categoria jurídica é uma construção teórica que organiza conceitos fundamentais do direito, permitindo a análise, interpretação e aplicação de normas jurídicas. Essas categorias são utilizadas para estruturar a compreensão sistemática do ordenamento jurídico, fornecendo os instrumentos conceituais necessários para classificar, distinguir e relacionar os fenômenos jurídicos. Podem derivar diretamente de normas em sentido estrito ou ser construídas pela doutrina para explicar e complementar o ordenamento jurídico.

3 Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

XI – a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas; (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021).

4 MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 9ª. ed. Rio de Janeiro. Forense, 2024, página 775.

5 ‘Art. 54-B. No fornecimento de crédito e na venda a prazo, além das informações obrigatórias previstas no art. 52 deste Código e na legislação aplicável à matéria, o fornecedor ou o intermediário deverá informar o consumidor, prévia e adequadamente, no momento da oferta, sobre:

I – o custo efetivo total e a descrição dos elementos que o compõem;

II – a taxa efetiva mensal de juros, bem como a taxa dos juros de mora e o total de encargos, de qualquer natureza, previstos para o atraso no pagamento;

III – o montante das prestações e o prazo de validade da oferta, que deve ser, no mínimo, de 2 (dois) dias;

IV – o nome e o endereço, inclusive o eletrônico, do fornecedor;

V – o direito do consumidor à liquidação antecipada e não onerosa do débito, nos termos do § 2º do art. 52 deste Código e da regulamentação em vigor.

§ 1º As informações referidas no art. 52 deste Código e no caput deste artigo devem constar de forma clara e resumida do próprio contrato, da fatura ou de instrumento apartado, de fácil acesso ao consumidor.

§ 2º Para efeitos deste Código, o custo efetivo total da operação de crédito ao consumidor consistirá em taxa percentual anual e compreenderá todos os valores cobrados do consumidor, sem prejuízo do cálculo padronizado pela autoridade reguladora do sistema financeiro.

§ 3º Sem prejuízo do disposto no art. 37 deste Código, a oferta de crédito ao consumidor e a oferta de venda a prazo, ou a fatura mensal, conforme o caso, devem indicar, no mínimo, o custo efetivo total, o agente financiador e a soma total a pagar, com e sem financiamento.’

6’Art. 54-C. É vedado, expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não:

II – indicar que a operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor; III – ocultar ou dificultar a compreensão sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo;

IV – assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio;

V – condicionar o atendimento de pretensões do consumidor ou o início de tratativas à renúncia ou à desistência de demandas judiciais, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos judiciais.

Parágrafo único. (VETADO).’

‘Art. 54-D. Na oferta de crédito, previamente à contratação, o fornecedor ou o intermediário deverá, entre outras condutas:

I – informar e esclarecer adequadamente o consumidor, considerada sua idade, sobre a natureza e a modalidade do crédito oferecido, sobre todos os custos incidentes, observado o disposto nos arts. 52 e 54-B deste Código, e sobre as consequências genéricas e específicas do inadimplemento;

II – avaliar, de forma responsável, as condições de crédito do consumidor, mediante análise das informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito, observado o disposto neste Código e na legislação sobre proteção de dados;

III – informar a identidade do agente financiador e entregar ao consumidor, ao garante e a outros coobrigados cópia do contrato de crédito.

Parágrafo único. O descumprimento de qualquer dos deveres previstos no caput deste artigo e nos arts. 52 e 54-C deste Código poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.’

7 “Essa foi a cultura jurídica iniciada a partir do Código de Defesa do Consumidor (…) para reconhecer que, nas relações horizontais entre pessoas naturais e mercado, as diferenciações técnicas, cognitivas, sociais e econômicas deveriam ser imunizadas pela igualdade substancial na promoção dos vulneráveis. (…) essa disparidade não se dava apenas no momento da compra de produtos ou negociação de serviços, mas em todas as fases contratuais, já que tano nas tratativas (análise de crédito) quanto na pós-contratualização o tratamento da “condição humana do consumidor” estava na órbita do dever de lealdade, desdobramento da boa-fé objetiva.” MARQUES, Cláudia Lima, MARTINS, Fernando Rodrigues. A proteção dos dados pessoais, o mundo digital e o pioneirismo do Código de Defesa do Consumidor: Uma homenagem a Danilo Doneda. In 5 anos de LGPD: estudos em homenagem a Danilo Doneda. Coordenação Cláudia Lima Marques… et al.. São Paulo; Thomson Reuters, 2023, página 61.

8 A Análise Econômica do Direito (AED) é uma abordagem interdisciplinar que utiliza os princípios da economia, especialmente da microeconomia, para entender, interpretar e avaliar as normas jurídicas, decisões judiciais e instituições legais. Seu objetivo principal é analisar como as leis influenciam o comportamento dos indivíduos e promovem eficiência na alocação de recursos na sociedade.

Na prática, a AED busca mensurar os custos e benefícios das normas jurídicas, propondo alternativas que maximizem o bem-estar social. Essa perspectiva adota como premissas a racionalidade dos agentes econômicos (que buscam maximizar seus interesses) e a capacidade das regras de influenciar incentivos e decisões.

Por exemplo, no contexto do crédito, a AED ajuda a compreender como práticas irresponsáveis podem gerar externalidades negativas, como o superendividamento, e a justificar a necessidade de regulação para mitigar tais efeitos.

A bibliografia sobre o tema é vastíssima. Para uma aproximação inicial, indica-se a obra coordenada pelo Professor Luciano Timm: Direito e Economia no Brasil. Coordenação Luciano Benetti Timm, organizador. 2a. edição. São Paulo: Atlas, 2014. A obra que é considerada o principal marco na Análise Econômica do Direito é o artigo de Ronald Coase, O Problema do Custo Social, originalmente publicado no Journal of Law and Economics: COASE, Ronald H. The Problem of Social Cost. Journal of Law and Economics, v. 3, p. 1-44, 1960. Para o texto em português, ver COASE, Ronald H. O Problema do Custo Social. In: COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito e Economia. Tradução de Ana F. F. Souza. 6ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 95-133.

9 Severe informational asymmetries occur when one party to a transaction knows significantly more about the subject matter than the other party. This imbalance of information can impede exchange by creating uncertainty or mistrust. For instance, sellers often know more about the quality of their goods than buyers, leading to potential exploitation unless mechanisms such as warranties or regulatory intervention are implemented to correct the imbalance. COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and Economics. 6th edition. Boston: Addison-Wesley, 2012. p. 42.

10 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

11 The problem of the separation of ownership from control in the modern corporation has a general analytical form. Owners often placed their assets under the control of someone else. In these circumstances, economists describe the owner as the ‘principal’ and the controller as the ‘agent.’ The principal-agent problem is to write a contract that gives the agent incentives to manage the asset in the best way for the principal. COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and Economics. 6th edition. Boston: Addison-Wesley, 2012. p. 139.

12 A noção de que os pactos devem ser cumpridos (pacta sunt servanda) tem suas raízes no campo da ética, na ideia da palavra empenhada, na ideia de preservar a honra, e tem sua conformação inicial já no direito romano. Nos tempos modernos, foi um dos fundamentos do Estado Liberal, alinhado com a ideia de uma manifestação de vontade tida como livre e em um ambiente igualitário. Todavia, nos dias atuais, esta abordagem em muitas situações revela a tentativa de mascarar desigualdades estruturais sob o véu de uma suposta igualdade formal. A idealização ignora o contexto real em que se estabelecem as relações contratuais, sobretudo no mercado de crédito, e reforça uma visão ultrapassada que privilegia a forma em detrimento da substância, a aparência em detrimento da realidade. Para um aprofundamento do tema, ver VIEIRA, Márcio dos Santos. A TÉCNICA E A TEORIA CONTRATUAL CONTEMPORÂNEA. Estudo sobre a construção do direito contratual contemporâneo por meio da superação da técnica moderna. Dissertação de Mestrado. Unisinos. São Leopoldo, 2006.

13 Economia Comportamental é o campo interdisciplinar da ciência econômica que estuda como fatores psicológicos, emocionais, cognitivos e sociais afetam a tomada de decisão econômica de indivíduos e instituições. Diferentemente da abordagem da economia neoclássica, que pressupõe agentes racionais maximizadores de utilidade, a economia comportamental parte do reconhecimento da racionalidade limitada, destacando como os indivíduos tomam decisões com base em informações incompletas, heurísticas e vieses cognitivos. Esse campo combina evidências empíricas da psicologia e da economia para compreender comportamentos frequentemente sistemáticos e previsíveis que desviam dos modelos tradicionais de racionalidade econômica.

14 KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. 1ª. ed. Rio de Janeiro. Objetiva, 2012.

15 Heurística é um mecanismo cognitivo pelo qual o cérebro utiliza atalhos mentais para tomar decisões ou resolver problemas de forma rápida e eficiente, dispensando uma análise detalhada de todas as informações disponíveis. Esse recurso é particularmente útil em situações de incerteza ou quando há necessidade de decisões imediatas, permitindo economizar tempo e esforço. No entanto, por sua simplicidade, as heurísticas frequentemente levam a distorções ou erros sistemáticos no julgamento, conhecidos como vieses cognitivos.

16 Vale, neste passo, invocar a lição da etimologia: A palavra “predatório” tem origem no latim “praedatorius”, derivado de “praedator”, que significa “saqueador” ou “aquele que pilha”. Este, por sua vez, provém de “praeda”, que significa “presa”, “despojo” ou “aquilo que é tomado de outra pessoa”. O termo originalmente remetia à ação de tomar algo à força ou de se beneficiar às custas de outra pessoa, frequentemente associado ao comportamento de animais que caçam e capturam presas para sobrevivência.

17 Código Civil Brasileiro, Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

18 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume único. 5ª. edição, revista, atualizada e ampliada. São Paulo. Método, 2015, p. 447.

19 Op. Cit., p. 451.

20 O anexo A da Recomendação lista exemplos de práticas abusivas, dentre as quais se menciona:

– Desistência de ações ou manifestação de renúncia a direitos após o indeferimento de medidas liminares, ou quando notificada a parte autora para comprovação dos fatos alegados na petição inicial, para regularização da representação processual, ou, ainda, quando a defesa da parte ré vem acompanhada de documentos que comprovam a existência ou validade da relação jurídica controvertida.

– Distribuição de ações judiciais semelhantes, com petições iniciais que apresentam informações genéricas e causas de pedir idênticas, frequentemente diferenciadas apenas pelos dados pessoais das partes envolvidas, sem a devida particularização dos fatos do caso concreto.

– Distribuição de ações sem documentos essenciais para comprovar minimamente a relação jurídica alegada ou com apresentação de documentos sem relação com a causa de pedir.

– Propositura de ações com finalidade de exercer pressão para obter benefício extraprocessual, a exemplo da celebração de acordo para satisfação de crédito, frequentemente com tentativa de não pagamento de custas processuais.

– Ajuizamento de ações com o objetivo de dificultar o exercício de direitos, notadamente de direitos fundamentais, pela parte contrária (assédio processual).

21 O Banco Santander, por exemplo, foi condenado ao pagamento de R$ 275 milhões por danos morais coletivos devido à prática de metas abusivas e assédio moral, que resultaram em elevados índices de adoecimento mental entre seus funcionários. A Justiça do Trabalho concluiu que as metas extremamente elevadas, combinadas com cobranças excessivas e ameaças de demissão, criaram um ambiente de trabalho tóxico. Investigações do Ministério Público do Trabalho revelaram que, em apenas uma agência, 43% dos empregados relataram ter pensado em suicídio, enquanto outros 86% relataram dificuldades de concentração e insônia. O banco aumentava metas em mais de 300% em um único mês e aplicava “produtividade negativa” a gerentes quando clientes faziam saques de suas contas. Funcionários que não cumpriam as metas eram frequentemente ameaçados de demissão?. Depoimentos de funcionários revelaram práticas de humilhação pública, reuniões com cobranças truculentas e exposição vexatória. A sistemática organizacional do banco foi apontada como um gatilho para transtornos mentais, incluindo estresse, síndrome do pânico e depressão. Vide https://www.prt24.mpt.mp.br/2-uncategorised/1645-santander-e-condenado-em-r-275-milhoes-por-metas-abusivas-assedio-moral-e-adoecimentos-mentais, acessado em 23/12/2024.

22 Um dos tantos bordões que compartilho com meus alunos nas aulas é de que “o gerente do banco não é seu amigo, ele é amigo das metas que ele tem que bater.”

23 MARQUES, Cláudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor: (um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico). São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2004, página 31.

24 O trabalho de Ronald Coase, em “The Problem of Social Cost”, é particularmente relevante para entender essa dinâmica. Coase argumenta que, quando existem externalidades negativas – como os danos causados pelo crédito predatório -, as partes podem ser incentivadas a internalizar esses custos, ajustando seu comportamento para minimizar prejuízos. No caso do crédito predatório, a imposição de indenizações judiciais funciona como um mecanismo para transferir os custos da prática abusiva para o fornecedor de crédito. Isso cria um incentivo econômico para que as instituições financeiras desenvolvam mecanismos preventivos mais eficazes, como políticas internas de compliance e treinamento de colaboradores.

25 COASE, Ronald H. The Problem of Social Cost. Journal of Law and Economics, v. 3, p. 1-44, 1960.

26 COASE, Ronald H. O Problema do Custo Social. In: COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito e Economia. Tradução de Ana F. F. Souza. 6ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 95-133.

27 COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and Economics. 6th edition. Boston: Addison-Wesley, 2012.

28 KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. 1ª. ed. Rio de Janeiro. Objetiva, 2012.

29 MARQUES, Cláudia Lima, MARTINS, Fernando Rodrigues. A proteção dos dados pessoais, o mundo digital e o pioneirismo do Código de Defesa do Consumidor: Uma homenagem a Danilo Doneda. In 5 anos de LGPD: estudos em homenagem a Danilo Doneda. Coordenação Cláudia Lima Marques… et al.. São Paulo; Thomson Reuters, 2023

30 MARQUES, Cláudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor: (um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico). São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2004.

31 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

32 MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 9ª. ed. Rio de Janeiro. Forense, 2024.

33 TIMM, Luciano Benneti. Direito e Economia no Brasil. Coordenação Luciano Benetti Timm, organizador. 2a. edição. São Paulo: Atlas, 2014.

34 VIEIRA, Márcio dos Santos. A TÉCNICA E A TEORIA CONTRATUAL CONTEMPORÂNEA. Estudo sobre a construção do direito contratual contemporâneo por meio da superação da técnica moderna. Dissertação de Mestrado. Unisinos. São Leopoldo, 2006.

35 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume único. 5ª. edição, revista, atualizada e ampliada. São Paulo. Método, 2015.

Fonte: Migalhas

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