A Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/98) completou 26 anos de existência. Nesse intervalo, houve reformas significativas nos dispositivos legais, em especial por meio da Lei 12.683/2012, que revogou o rol taxativo de crimes antecedentes (lei de segunda geração), escolhidos a partir de critérios de danosidade social pelo legislador, e estabeleceu que toda e qualquer infração penal pode dar origem à lavagem de capitais (lei de terceira geração).
A mudança da lei brasileira não é um fato isolado. Trata-se de política criminal expansionista sobre a lavagem de ativos que ocorre ao redor de todo o mundo [1], com verdadeira fúria legislativa na busca de se evitar lacunas de punibilidade, muitas vezes em detrimento à dogmática penal. O fenômeno também ocorre para atender à pressão internacional do Gafi (Grupo de Atuação Financeira), principal órgão intergovernamental que desenvolve políticas internacionais de prevenção e repressão à lavagem de dinheiro [2], com significativa influência na imagem do país no âmbito mundial a depender da adoção ou não de suas conhecidas recomendações.
Nesse contexto, a crítica que se faz aqui não é verdadeiramente nova, mas ganha novos contornos diante de recentes fatos ocorridos no país. Isso porque, desde a profunda mudança ocorrida no ano de 2012, destacados autores advertiram sobre a falta de proporcionalidade entre determinadas infrações penais antecedentes e subsequentes. Por exemplo, Heloísa Estellita e Pierpaolo Bottini censuram a ampliação do rol de crimes antecedentes na forma preconizada pelo legislador, eis que a nova lei “inclui as contravenções penais e as infrações de menor potencial ofensivo, cujas penas são menos severas justamente em razão da menor lesividade das condutas assim classificadas pelo legislador” [3].
Diante disso, infrações penais que anteriormente eram consideradas de menor relevância no âmbito jurídico-penal têm ganhado nova importância e aplicação prática, ainda que em um primeiro olhar e de forma isolada, autorizassem institutos da justiça penal negociada, como transação penal, suspensão condicional do processo, acordo de não persecução penal. Isso se deve, em grande parte, à ligação com o crime de lavagem de dinheiro, que permite a persecução penal de atos posteriores, como a reciclagem de ativos, por um prazo de até 16 anos (prazo prescricional da lavagem).
Ampliação de aplicação da lei de lavagem de ativos
Trata-se, portanto, de uma decisão legislativa clara que amplia consideravelmente o âmbito de aplicação da lei de lavagem de ativos, tanto no campo material quanto no processual. Essa conexão acaba na prática, ainda que de forma indireta, ampliando o período prescricional para a apuração de delitos e o nível de intervenção estatal.
Verifica-se que a simples menção ao crime de lavagem de dinheiro em uma investigação preliminar possibilita ao Estado o uso de ferramentas investigativas rigorosas como aquelas previstas na Lei de Organização Criminosa (Lei 12.850/13), muitas vezes implicando na limitação de direitos fundamentais do investigado.
Do ponto de vista processual, Pierpaolo Cruz Bottini constata risco de retrocesso na política de desencarceramento implementada com a Lei 12.403/2011, a qual vedou a prisão preventiva para crimes dolosos punidos com pena máxima inferior ou igual a quatro anos. Ocorre que com a possibilidade da imputação da infração antecedente em concurso com a lavagem de dinheiro “será cabível a prisão preventiva, pois a pena resultante da acumulação material será maior do que os 04 anos indicados na lei de cautelares” [4].
Outros aspectos podem ser elencados, como a possibilidade de alienação antecipada de bens sob constrição em valor mínimo de 75% ao da avaliação (artigo 4º, §3º, Lei 9.613/1998), quando o Código de Processo Penal prevê, para as infrações penais em geral, o mínimo de 80% do valor da avaliação (artigo 144-A, §2º), a indicar que o indivíduo submetido a um processo criminal que apura lavagem de dinheiro sofrerá intervenção mais intensa não apenas em sua liberdade, mas também em seu patrimônio.
Hipertrofia do direito penal
O próprio tipo penal de organização criminosa, que possui uma trava limitadora exigindo que a infração penal pretendida tenha pena máxima superior quatro anos ou possua caráter transnacional, pode incidir com a configuração da lavagem de dinheiro. Em outras palavras, a lavagem detém uma inegável capacidade de hipertrofiar o direito penal e os instrumentos de persecução penal.
Essa constatação tem se apresentado de forma recorrente, especialmente a partir de novas práticas da contravenção penal de jogo de azar (artigo 50 a 58, da Lei de Contravenção Penal [5]). Por muito tempo, os dispositivos associados estiverem atrelados ao chamado “jogo do bicho”, modalidade tradicional de loteria proibida, mas amplamente difundida no país. Embora não se possa ignorar sua danosidade, é bem verdade que a contravenção penal conta com certa leniência até mesmo pela sua aceitação social.
Nesse contexto, chama atenção a recente mudança de paradigma ao se deparar com diversas operações policiais referentes aos sorteios ou rifas digitais [6], jogos de apostas e cassinos online (Jogo do Tigrinho, por exemplo [7]), nos quais inúmeras pessoas foram investigadas e acusadas de contravenção penal e lavagem de ativos.
O fenômeno é importante porque mostra o reaparecimento de infrações penais de baixa significação penal, como era o caso das contravenções penais, sob a veste da lavagem de capitais, que permite ao Estado o uso de todo o seu aparelhamento invasivo de restrição aos direitos fundamentais, conforme exemplificado acima. Além disso, revela a nova dinâmica de atuação, visto que, ao menos em tese, toda e qualquer infração penal que gera ativos autoriza a persecução penal da lavagem de capitais, permitindo aos agentes estatais uma nova abertura no campo material e processual quanto à sua atuação.
Ou seja, uma simples contravenção penal, desde que acompanhada de uma suposta lavagem de ativos, dá ao Estado motivação para se socorrer do seu instrumental mais gravoso, invertendo-se a lógica pela qual o subsequente passa a ter preponderância em relação ao antecedente. Vale dizer, o acessório e/ou parasitário, porque depende de uma figura penal anterior, é mais grave que o principal.
Supercrime
Sem entrar no mérito da lavagem de dinheiro e o bem jurídico protegido (administração pública, ordem econômica, pluriofensivo etc), não se pode admitir que referido tipo penal se torne um supercrime, destinado a alcançar algum tipo de punição estatal ante uma presunção equivocada de insuficiência quanto às infrações penais antecedentes.
Esse tema foi alvo de relevante reflexão de Fabio Roberto D’Avila ao abordar o fenômeno da dispersão em direito penal, consistente no interesse exacerbado do legislador nos momentos que antecedem e sucedem a prática do crime, acarretando a perda do referencial do ilícito-típico ante o deslocamento do eixo desvalor da ação/resultado. Isso ocorre porque aquilo que é periférico (lavagem de dinheiro) eclipsa o principal (contravenção), daí derivando um cenário preocupante quanto aos rumos do direito penal, seja pela hipertrofia desse poderoso instrumento estatal ou pelo seu mau uso pelos operadores do direito [8].
A inquietação quanto à abertura do tipo penal de lavagem não é nova para o autor, que em texto escrito em coautoria com Emília Merlini Giuliani, reconheceu que a abolição do rol de crimes antecedentes e a insuficiência de limites formais ou materiais para a configurar o delito ocasionaria “um post factum punível muitíssimo mais grave do que o delito principal que lhe dá origem, em uma manifesta subversão da ordem e do equilíbrio que devem informar o direito penal” [9].
Diante disso, o mais adequado seria retomar a legislação de segunda geração, restringindo a lavagem aos crimes de maior gravidade, em consonância com os princípios penais. Da mesma forma, é essencial adotar o critério da proporcionalidade, evitando que infrações penais de menor relevância sirvam como fundamento para acusações de lavagem de ativos. Tais reflexões são importantes e merecem atenção da comunidade jurídica, sob pena de se ter na prática e num futuro não distante, uma união obrigatória em todo processo penal, no qual a regra será a acusação da infração penal antecedente e o automatismo da inserção da lavagem de dinheiro.
[1] Segundo Jesús-María Silva Sánchez, a lavagem de dinheiro seria “uma das manifestações paradigmáticas da expansão do direito penal”. Expansão do Direito Penal e lavagem de capitais. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance. vol. 8. ano 2. p. 13-23, fevereiro 2021. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 21.
[2] Grupo de Ação Financeira (Gafi/FATF). Disponível em: https://www.gov.br/coaf/pt-br/assuntos/o-sistema-de-prevencao-a-lavagem-de-dinheiro/sistema-internacional-de-prevencao-e-combate-a-lavagem-de-dinheiro/o-coaf-a-unidade-de-inteligencia-financeira-brasileira. Acesso em: 05 jan. 2024.
[3] ESTELLITA, Heloísa; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Alterações na legislação de combate à lavagem: primeiras impressões. Boletim do IBCCRIM, ano 20, nº. 237, ago. 2012, p. 02. Uma perspectiva crítica quanto à insegurança jurídica e violação à taxatividade da lei penal derivada da abertura do rol dos crimes antecedentes, ante a dificuldade de se definir o que pode ser considerado lavagem de dinheiro pode ser vista em cf. ROCHA NETO, Tapir. Lavagem de dinheiro: a tutela penal sobre a transparência da ordem econômica. Revista Brasileira de Ciências Criminais. v. 115, p. 393-411, jul-ago/2015, São Paulo: Revista dos Tribunais.
[4] Dos tipos penais: In: BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 96.
[5] Há, inclusive, defesa de que o art. 50 da Lei de Contravenção Penal teria sido revogado pela Lei de Apostas Esportivas. CALLEGARI, André; FONTENELE, Marília. Abolitio criminis de apostas de quota-fixa e a adequação social dos sorteios. Conjur. https://www.conjur.com.br/2024-dez-17/abolitio-criminis-de-apostas-de-quota-fixa-e-a-adequacao-social-dos-sorteios/. Acesso em: 05 jan. 2024.
[6] CALLEGARI, André; FONTENELLE, Marília. Sorteios na mídia digital: crime ou adequação social? Conjur. https://www.conjur.com.br/2024-ago-15/sorteios-na-midia-digital-crime-ou-adequacao-social/. Acesso em 07 jan.2024.
[7] Jogo do Tigrinho. Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Jogo_do_Tigrinho. Acesso em: 05 jan. 2024.
[8] D’AVILA, Fabio Roberto. Resultado e dispersão em direito penal. Reflexões iniciais à luz da praxis penal brasileira. Escrito em homenagem ao Prof. Doutor José de Faria Costa. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre, v. 19, n. 79, p. 131-149, 2020.
[9] D´AVILA, Fabio Roberto; GIULIANI, Emília Merlini. O problema da autonomia na lavagem de dinheiro. Breves notas sobre os limites materiais do ilícito-típico à luz da legislação brasileira. In: Faria Costa, José de; Rodrigues, Anabela Miranda; Antunes, Maria João; Moniz, Helena; Brandão, Nuno; Fidalgo, Sónia. (Org.). Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2017, v. 1, p. 432.
Fonte: Conjur
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