Continuação da parte 1
Na primeira parte I das reflexões sobre o arbitramento de alugueres na hipótese de resolução de compromisso de compra e venda de imóvel (CCV) [1], foi analisado o seu cabimento nos casos em que o promissário comprador é imitido na posse do bem e, com a resolução, deve restituí-lo ao vendedor. Nesta parte 2, discorre-se sobre a reparação dos danos eventualmente suportados pelo promissário comprador, diante do inadimplemento do promitente vendedor da obrigação de entrega do imóvel.
Como anteriormente mencionado, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça não é pacífica sobre o tema. Há entendimento de que tais valores constituiriam lucros cessantes presumidos, independentemente de o imóvel ser edificado [2] e, em sentido oposto, julgados que afirmam não ser possível presumir lucros cessantes nos casos de imóveis não edificados [3].
No presente estudo, busca-se analisar criticamente a categorização jurídica do montante arbitrado, normalmente sob a rubrica de “alugueres”, como “lucros cessantes presumidos”, bem como se a figura do “dano da privação de uso” também permitiria a automática conclusão de que a não entrega ou atraso da entrega do imóvel ocasiona necessários danos ao promissário comprador e se tais danos poderiam ser classificados como alugueres.
Dano da privação de uso
Tem-se defendido a utilização da figura do dano da privação de uso [4], embora a discussão ainda seja incipiente na doutrina brasileira, para resolver os casos em que o promissário comprador se vê privado do uso do bem contratado [5].
Inicialmente, em que pese à existência de opinião em sentido contrário [6], é de se destacar que o “dano da privação de uso” constitui um dano patrimonial, corporificado no prejuízo resultante da falta de utilização de um bem que integra o patrimônio [7]. Como bem anota Paulo Eduardo Campanella, não se nega que, em determinadas hipóteses, a privação do uso possa acarretar danos extrapatrimoniais, como no caso da privação do uso do vestido da noiva, mas se trata, em essência de um dano patrimonial [8].
No entanto, a privação do uso não constitui um dano em si, mas sua possível fonte [9]. Paulo Mota Pinto defende, neste sentido, que a mera perturbação abstrata de uso da coisa constitui ato violador do direito (ato ilícito), exigindo-se, para que se configure o dano, a frustração do gozo das concretas vantagens do bem. Assim, entende-se ser necessária a comprovação do prejuízo decorrente da privação do uso, não se podendo afirmar que a mera privação do bem ocasiona, necessariamente, o dever de indenizar.
A faculdade abstrata da utilização do bem não acarreta, caso tal utilização seja impedida, o necessário dever de reparar, “ignorando-se a concreta vontade ou possibilidade de utilização da coisa, por si próprio ou por interposta pessoal” [10]. Para ser indenizada, a privação do uso precisa ter repercussão nas efetivas vantagens que o bem poderia proporcionar ao lesado. Deve-se averiguar, caso a caso, segundo os critérios traçados por Paulo Eduardo Campanella, se havia intenção e possibilidade efetiva do uso do bem, assim como se a sua utilização não seria abusiva [11].
Não basta o simples inadimplemento do promitente vendedor de sua obrigação de entrega do imóvel para responsabilizá-lo pelo pagamento de alugueres correspondentes ao tempo em que o comprador foi privado do bem. Se, por exemplo, houver elementos que indiquem que o promissário comprador sequer poderia utilizá-lo ou locá-lo, não há prejuízo a ser indenizado.
É de se ressaltar ainda que a privação do uso pode configurar tanto lucros cessantes quanto danos emergentes. O promissário comprador que, em razão do atraso do imóvel, continua pagando alugueres, sofre danos emergentes consistentes nos gastos decorrentes da continuidade de seu contrato de locação. Por sua vez, o promissário comprador que, sabidamente, locaria o imóvel a terceiros, tem seus ganhos frustrados (lucros cessantes) em razão do inadimplemento da obrigação de entrega do bem.
Por tal razão, não parece ser possível sustentar que o prejuízo sofrido pela privação de uso do imóvel sempre corresponderá ao valor de alugueres pelo período da não utilização [12]. A aferição de tais danos também depende da verificação, em concreto, de qual era o interesse do promissário comprador na utilização do imóvel e qual foi a efetiva consequência da privação de seu uso. A título de exemplo, se o imóvel seria empregado para a realização de shows e o promissário comprador deixa de ganhar o lucro correspondente, a privação do uso ocasionará lucros cessantes consistentes no que se esperava auferir com tais shows, e não o valor de locação do imóvel.
Lucros cessantes presumidos
Pode-se concluir, nesta toada, que os danos decorrentes da não utilização do imóvel não constituem, necessariamente, lucros cessantes, não se mostrando acertada a presunção de sua existência, como decidiu recentemente o STJ [13]. Os lucros cessantes são definidos pelo artigo 402 do Código Civil como aquilo que o lesado “razoavelmente deixou de lucrar”, em contraposição aos danos emergentes, que constituem aquilo que o credor “efetivamente perdeu”.
Notadamente, o termo “deixou de lucrar” poderia fazer concluir erroneamente que os lucros cessantes devessem, necessariamente, ter sido “interrompidos” e, portanto, consistir em um ganho que já vinha ocorrendo ao lesado. No entanto, Francisco Marino esclarece que “a existência de lucros pretéritos não é, em absoluto, pressuposto para a configuração da indenização por lucros cessantes”, sugerindo a expressão “lucro frustrado” [14]. No mesmo sentido, Gisela Sampaio da Cruz reputa que outros termos como “benefícios frustrados” ou “vantagens frustradas” poderiam traduzir melhor a expressão “lucros cessantes” [15].
Igualmente tormentosa é, ainda, a determinação do que o credor “razoavelmente deixou de lucrar”. A expressão caracteriza os lucros cessantes como um “impedimento de elevação do patrimônio” [16] razão pela qual, em contraposição à avaliação dos danos emergentes, a apreciação dos lucros cessantes não exige o mesmo grau de certeza, mas deriva de um juízo de probabilidade [17]. Trata-se de aferir a verossimilhança considerável no sentido de que o ganho alegado pelo lesado se teria efetivamente verificado, isto é, de um prognóstico de probabilidade [18] de vantagens que seriam auferidas e que foram frustradas [19].
É nesse ponto que reside o equívoco da presunção de lucros cessantes nas hipóteses de privação de uso do bem. Tem-se defendido a existência de lucros cessantes presumidos como consequência necessária da não utilização, pelo promissário comprador, do imóvel objeto do contrato [20]. O raciocínio desconsidera o juízo de probabilidade que deveria ser realizado em cada situação, possibilitando a condenação pelos lucros cessantes em casos de mera possibilidade de utilização do bem.
Contudo, apesar de os lucros cessantes não dependerem, para sua configuração, do estabelecimento de um juízo de “certeza”, que é exigível em relação aos danos emergentes, a mera possibilidade de sua existência não é bastante para ensejar o dever de indenizar. Por meio da presunção de lucros cessantes, tem-se arbitrado alugueres mesmo em situações em que o imóvel, não entregue ou entregue com atraso pelo promissário comprador, sequer poderia ser utilizado, como nos casos de embargo ou impossibilidade de reforma, durante certo período.
É precisa, nesse sentido, a afirmação de Gisela Sampaio que “toda vez que o julgador ou as partes trabalham com presunções, com o objetivo de extrair de um fato conhecido outro desconhecido — embora provável — ‘as possibilidades de erro se multiplicam’” [21], o que parece ocorrer em relação à jurisprudência do STJ a respeito do arbitramento de alugueres ao promissário comprador pela não utilização do imóvel. Como mencionado, o próprio STJ possui entendimentos contraditórios em relação ao tema: ora presumem-se os lucros cessantes para qualquer hipótese de privação do uso do imóvel, ora diferencia-se a possibilidade de tal presunção a depender do caráter do imóvel, realizando, nesse último caso, a necessário análise da probabilidade dos lucros cessantes [22].
Conclusões
Conclui-se que o arbitramento de alugueres na hipótese de resolução do compromisso de compra e venda deve ser analisado considerando-se as circunstâncias do caso específico. A mera privação de uso do imóvel não gera, automaticamente, o dever de indenizar, sendo imprescindível verificar se houve dano ao promissário comprador.
A presunção da existência de lucros cessantes pode levar a decisões equivocadas, carecendo de um juízo de probabilidade fundado em elementos concretos. Assim, a reparação de eventuais danos, sejam emergentes ou lucros cessantes, depende da efetiva comprovação de sua ocorrência, não se podendo ainda afirmar que a indenização deve corresponder, necessariamente, ao valor do aluguer.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).
[1] Cf. em: https://www.conjur.com.br/2024-dez-02/e-cabivel-arbitramento-de-aluguel-na-resolucao-do-compromisso-de-compra-e-venda/.
[2] AgInt no REsp. n. 1.818.212/SP, 3ª Turma, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 22/03/2021; AgInt no REsp. 1.839.851-SP, 3ª Turma, rel. Min. Moura Ribeiro, j. 12/12/2022.
[3] AgInt no REsp. n. 2.015.374-SP, 4ª Turma, rel. Min. Marco Buzzi, j. 02/04/2024.
[4] Em perspectiva comparada, constata-se as legislações europeias, exceto na Grécia e na Áustria, admitem a ideia de que a privação de uso de um determinado bem tem um valor de mercado. Contudo, à perda do uso deve-se seguir um dano patrimonial, não se podendo presumir o dano sob o argumento de uma violação da propriedade per se (BAR, von Christian. Gemeineuropäisches Deliktsrecht. München: Beck, 1999, v. 2, p. 15-18).
[5] Sobe o caso específico da indenização pelo atraso da entrega de imóvel não edificado, assevera Renata Steiner ser “evidente que a parte lesada não teria a oportunidade de alugar o imóvel, conquanto se mostre bastante duvidosa a negativa de indenização. Em verdade, a natureza jurídica da mesma rubrica pode ser diversa, confundindo-se nesses casos ou com uma ‘perda de uma chance’ ou com um ‘dano de privação de uso’” (STEINER, Renata C. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 398).
[6] Sustentando tratar-se de danos extrapatrimoniais, cf. Tribunal de Justiça de São Paulo. 4ª Câmara de Direito Privado. Apelação 9134696-78.2008.8.26.0000. Rel. Des. Francisco Loureiro, j. 30.10.2008.
[7] Paulo Mota Pinto defende se tratar de dano patrimonial, que, em virtude de suas peculiaridades, desafia a aplicação tradicional da teoria da diferença (MOTA PINTO, Paulo. Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, v. 1, p. 582-583).
[8] EUGÊNIO, Eduardo Campanella. O dano da privação do uso e sua configuração no Direito Nacional (parte 2). Revista Eletrônica Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-ago-21/direito-civil-atual-dano-privacao-uso-configuracao-direito-nacional-2/. Acesso em: 15 dez. 2024.
[9] LANGE, Hermann; SCHIEMANN, Gottfried. Schadensersatz. 3. ed. Tübingen: Mohr Siebeck, 2003, p. 285.
[10] MOTA PINTO, Paulo. Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo…, cit., p. 586-591.
[11] EUGÊNIO, Eduardo Campanella. O dano da privação do uso…, cit.
[12] “E, evidentemente, tal conclusão deve também ter os seus reflexos na determinação do quantum da indenização devida – que não deve ser nivelada aos custos de aluguer, embora estes possam ser um ponto de partida para sua fixação” (MOTA PINTO, Paulo. Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo…, cit., p. 586-592, nota 1699). Em sentido contrário, a tese n. 5, aprovado pelo TJSP, em 31/08/2017, indica que o atraso da prestação da entrega do imóvel objeto de compromisso de compra e venda gera obrigação de indenizar, sendo o uso obtido economicamente pela medida de um aluguel.
[13] “No caso de descumprimento contratual decorrente do atraso na entrega de imóvel, os lucros cessantes não são presumíveis, pois dependem da finalidade do negócio, destinação ou qualidade do bem (edificado ou não), bem como da demonstração do prejuízo direto do adquirente” (AgInt no REsp. n. 2.015.374-SP, 4ª Turma, rel. Min. Marco Buzzi, j. 02/04/2024).
[14] MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Perdas e danos. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore. Obrigações. São Paulo: Atlas, 2011, p. 671.
[15] GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: RT, 2011, p. 74.
[16] PONTES DE MIRANDA, F.C. Tratado de direito privado. 3. ed. São Paulo: RT, 1984, t. 22, p. 213.
[17] O BGB, por outro lado, assinala, em seu § 252, que são considerados lucros cessantes aqueles que, no curso normal dos eventos, ou em circunstâncias especiais, particularmente em razão das medidas e precauções adotadas, poderiam ser provavelmente obtidos.
[18] Pontes de Miranda defende não bastar a mera possibilidade, exigindo “a grande probabilidade” (PONTES DE MIRANDA, F.C. Tratado de direito privado…, cit., p. 214). No direito alemão, diz-se que a lei não foi precisa em determinar a medida da probabilidade, não se exigindo um elevado grau de probabilidade, sendo suficiente ser a obtenção do ganho mais provável do que a sua não configuração (OETKER, Hartmut. § 252. In: Münchener Kommentar: Band 2: Schuldrecht – Allgemeiner Teil. 8. ed. München: C.H. Beck, 2019, p. 571).
[19] GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros cessantes…, cit., pp. 92-93.
[20] A jurisprudência da Segunda Seção do STJ, firmada na sistemática dos recursos repetitivos, é no sentido de que, “no caso de descumprimento do prazo para a entrega do imóvel, incluído o período de tolerância, o prejuízo do comprador é presumido, consistente na injusta privação do uso do bem, a ensejar o pagamento de indenização, na forma de aluguel mensal, com base no valor locatício de imóvel assemelhado, com termo final na data da disponibilização da posse direta ao adquirente da unidade autônoma” (STJ, REsp n. 1.729.593/SP, 2ª Seção, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 25/09/2019).
[21] A autora defende que o atraso na entrega de imóveis comprados na planta, “além de gerar danos emergentes, enseja também lucros cessantes, a serem arbitrados com base no valor aproximado do aluguel que poderia o imóvel ter rendido se tivesse sido entregue na data contratada” (GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros cessantes…, cit, pp. 72-73).
[22] AgInt no REsp. n. 2.015.374-SP, 4ª Turma, rel. Min. Marco Buzzi, j. 02/04/2024. O STJ afastou os lucros cessantes nesse caso pois não haveria certeza do ganho perdido, mas mera “cogitação de ganho futuro” (“expectativa de especulação imobiliária”).
Fonte: Conjur
Deixe um comentário