Os embargos de divergência possuem a importante função de uniformizar a jurisprudência de nossas Cortes Superiores. De fato, o artigo 926 do CPC prevê que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência mantê-la estável, integra e coerente. Portanto, quanto maior a abrangência do cabimento de tal recurso, melhor para o sistema processual1.
Desse modo, foi aplaudida a redação do § 1º do artigo 1043 do CPC ao prever que “Poderão ser confrontadas teses jurídicas contidas em julgamentos de recursos e de ações de competência originária”. Com tal redação o Código procurou superar o entendimento então vigente, sob a égide do CPC/1973, de que não serviriam para demonstração do dissídio pretoriano os arestos proferidos em ações originárias ou em espécies recursais diversas dos recursos especiais e extraordinários, tais como Conflito de Competência, Recurso Ordinário, Mandado de Segurança, Ação Rescisória2.
Esse é o entendimento de Cássio Scarpinella Bueno: “O acórdão paradigmático, ou seja, o acórdão utilizado para demonstrar a dissonância do entendimento jurisprudencial e que enseja a sua uniformização mediante o emprego desse recurso, por sua vez, pode decorrer de julgamentos de recursos e de outros processos de competência originária, tais como mandados de segurança, ações rescisórias e reclamações, no que é expresso o § 1º do art. 1.043.”3
Portanto, causou surpresa o recente julgamento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça não aceitando como paradigma julgamento de Mandado de Segurança impetrado originariamente no STJ:
“AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PARADIGMA EM SEDE DE AÇÃO CONSTITUCIONAL. NÃO CABIMENTO. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. Os embargos de divergência têm por finalidade pacificar a jurisprudência no âmbito do Tribunal quanto à interpretação da legislação federal examinada na via do recurso especial.
2. Não servem como paradigmas, para fins de comprovação de dissídio jurisprudencial em embargos de divergência, acórdãos proferidos em sede de ação constitucional, notadamente porque diverso o grau de cognição com relação ao recurso especial.
3. Agravo interno não provido.”
(AgInt nos EAREsp n. 2.143.376/SP, relator Ministro Raul Araújo, relatora para acórdão Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Corte Especial, julgado em 6/11/2024, DJe de 23/12/2024.)
Do voto vencedor faz-se importante a transcrição do seguinte trecho:
“Com efeito, o CPC/2015, a princípio, possibilitou a interposição de embargos de divergência contra acórdão proferido em processo de competência originária (inciso IV do art. 1.043), porém, esse dispositivo foi revogado pela Lei nº 13.256/2016. Logo, o recurso uniformizador ficou restrito à hipótese de julgamento em sede de apelo especial.
Nesse cenário, tem-se que a função de uniformizar a interpretação da legislação federal se dá na via do recurso especial. E, para tanto, é conveniente que o aresto paradigma tenha sido proferido em julgamento com mesmo grau de cognição.”
O inciso IV revogado previa que é embargável o acórdão de órgão fracionário que “nos processos de competência originária, divergir do julgamento de qualquer outro órgão do mesmo tribunal”. Assim, a previsão revogada previa que o acórdão de julgado de competência originária poderia ensejar a oposição de Embargos de Divergência. Já o § 1º prevê que o acórdão das ações originárias poderia servir de paradigma para possibilitar o cabimento dos Embargos de Divergência. Portanto, salvo melhor juízo, o CPC/15 não permite o cabimento de embargos de divergência em face de acórdão que julgou ação originária, mas estes podem servir de paradigma para confrontar julgamentos proferidos por em recursos Extraordinário e Especial.
Nesse sentido é o entendimento expresso no muito bem fundamentado voto vencido da lavra do Min. Raul de Araújo:
“(…) seria, logicamente, perfeitamente possível aceitar-se, em embargos de divergência, que a impugnação de acórdão proferido tanto na própria ação rescisória ou em recurso ordinário em mandado de segurança não fora a revogação expressa do inciso IV do art. 1.043 do Novo CPC pela Lei 13.256/2016. Contudo, como houve a revogação, somente é possível utilizar-se o acórdão em ação originária ou em recurso como paradigma, e não como paragonado (CPC, art. 1.043, § 1º).”
Em outro trecho assim previu o voto vencido:
“Destarte, o regramento do § 1º do art. 1.043 do CPC foi repetido no referido art. 266, § 1º, do RISTJ, reforçando a convicção de que não mais deveria prevalecer a jurisprudência de outrora, de feição mais restritiva, no sentido de que os paradigmas devem se limitar aos acórdãos proferidos em recursos especiais e em seus consectários.
Portanto, o legislador ordinário, nos embargos de divergência em recurso especial ou recurso extraordinário, expressamente ampliou as hipóteses de cabimento e afastou aquela interpretação restritiva antes adotada na vigência do CPC de 1973, para claramente admitir que o aresto paradigma possa ser exarado em qualquer ação originária ou recurso julgado por órgão do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal (art. 1.043, § 1º).”
Assim sendo, o entendimento presente no voto vencido parece se coadunar melhor com a expressa previsão legal e com a intenção do legislador. Tendo sido um julgamento com um placar um tanto apertado (8X5) talvez a matéria volte a ser julgada novamente no futuro, mas enquanto isso não ocorrer, paradigmas de ações originárias constitucionais não devem ser utilizados para a demonstração da divergência.
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1 Nesse sentido é o entendimento da professora Teresa Arruda Alvim: “Os embargos de divergência foram bastante alterados, principalmente, quanto à sua hipótese de cabimento. Procurou-se dar aos embargos de divergência bastante rendimento, de molde a que cumpram com eficiência a sua função que é, em última análise, a de desestimular recursos para o STJ ou STF. Isso porque o fato de haver tese jurídica sobre a qual haja divergência interna corporis, no Tribunal Superior, é elemento que, obviamente, estimula recursos. O objetivo dos embargos de divergência é exata e precisamente o de uniformizar a jurisprudência dos Tribunais Superiores, internamente. Portanto, quanto mais larga ou abrangente for a hipótese de cabimento dos embargos de divergência, a tendência é a de que menor seja o número de recursos interpostos. Os incisos têm como marca visível a intenção do legislador no sentido de “desmanchar” a jurisprudência que, equivocadamente, restringe indevidamente o cabimento deste recurso, à luz do CPC de 1973.” (Comenta´rios ao Co´digo de Processo Civil / organizadores Lenio Luiz Streck, Dierle Nunes, Leonardo Carneiro da Cunha; coordenador executivo Alexandre Freire. – 2. ed. – São Paulo : Saraiva, 2017, p. 1441).
2 EREsp 50.458/SP, CORTE ESPECIAL, Rel. Min. Demócrito Ribeiro, DJ de 07/08/1995; AgRg nos EREsp 103.701/SP, PRIMEIRA SEÇÃO, Rel. Min. José Delgado, DJe de 06/11/2006; AgRg nos EREsp 190.998/AM, SEGUNDA SEÇÃO, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ de 13/10/2005; AgRg nos EREsp 793.405/RJ, TERCEIRA SEÇÃO, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 09/05/2011.
3 Curso Sistematizado de Direito Processual Civil, v. 2, 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019, p. 757. Esse também é o entendimento de Luiz Dellore: “5. Embargos de divergência no caso de ação originária e outros recursos (§ 1.º). Por ausência de previsão no Código anterior, muito se debateu acerca da possibilidade de apontar a divergência entre um REsp ou RE e uma ação de competência originária do tribunal superior (como ação rescisória, mandado de segurança ou conflito de competência). 5.1. O Código buscou deixar de lado esse debate, ao expressamente afirmar ser isso possível. 5.2. Da mesma forma, o parágrafo aponta o confronto de teses contidos em recursos, o que leva à conclusão de que não somente REsp e RE (mencionados nos incisos), mas também outros recursos (como o ROC) podem ser utilizados como base para o acórdão paradigma. 5.3. Portanto, pela letra da lei, cabe divergência para discutir teses firmadas entre dois recursos, duas ações de competência originária ou entre recurso e ação de competência originária. 5.4. Esta alteração legislativa prestigia a tese decidida, e não o meio processual em que se discutiu a tese. O que é absolutamente lógico, pois o objetivo dos embargos de divergência é afastar a divergência quanto a um determinado entendimento jurisprudencial. 5.5. Contudo, a jurisprudência do STJ não vem admitindo que a divergência decorra de outro recurso que não o próprio REsp (vide jurisprudência selecionada), mantendo o entendimento firmado à luz do Código anterior. Além do viés restritivo, um argumento para isso é a revogação do inciso IV (…)” (Comentários ao código de processo civil / Fernando da Fonseca Gajardoni … [et al.]. – 5. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 1630).
Fonte: Migalhas
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