O marco legal da IA, aprovado no Senado, impõe desafios a desenvolvedores com exigências de identificação e remuneração de conteúdos protegidos, podendo impactar a inovação

O Senado Federal aprovou no dia 10/12/24 o marco legal da IA (PL 2.338/23). Antes de eventual sanção presidencial, o projeto será discutido na Câmara dos Deputados. Apesar da pressão que existe hoje para que o projeto seja aprovado o quanto antes, especialmente por parte dos titulares de direitos autorais, o texto ainda gera discussões sobre restrições consideradas excessivamente onerosas aos desenvolvedores de inteligência artificial (“IA”), sendo de difícil cumprimento.

De início, o projeto prevê que o desenvolvedor1 e o aplicador2 da inteligência artificial deverão informar quais conteúdos protegidos por direitos autorais foram utilizados nos processos de treinamento. Essa previsão é desafiadora por si só, na medida em que o treinamento muitas vezes é feito a partir de conteúdo disponível por fontes diversas na internet. De acordo com especialistas no assunto, o projeto parece transferir aos desenvolvedores a missão de filtrar uma infinidade de conteúdos que, apesar de protegidos, são de acesso público.

Ainda, o PL 2338/23 dispõe que, nas hipóteses em que houver finalidade comercial, os titulares dos direitos autorais e conexos – ou seja, não necessariamente os autores e artistas – deverão ser remunerados. Dentre os critérios a serem considerados no cálculo da remuneração, o projeto cria os conceitos de poder econômico do agente3, o grau de utilização dos conteúdos e os efeitos concorrenciais dos resultados em relação aos conteúdos originais utilizados. Chama a atenção a generalidade desses critérios e sua inovação legislativa, uma vez que não constam na lei de direitos autorias (lei 9610/98). Como resultado, além de nova camada de proteção por direitos autorias, ressalta-se o desafio executório.

A exceção às regras de identificação e remuneração se limita ao uso para fins de pesquisa ou por organizações e instituições de pesquisa, jornalismo, museus, arquivos, bibliotecas e educacionais. Ocorre que, mesmo para essas organizações e instituições, há uma série de requisitos, destacando-se que (i) são vedadas as finalidades comerciais; (ii) a atividade não pode ter como objetivo principal a reprodução, exibição ou disseminação da obra original em si; e (iii) o uso deve ser feito apenas na medida necessária para o objetivo a ser alcançado. Se o uso dos conteúdos não se encaixar nessa exceção, o titular dos direitos autorais e conexos poderá proibir a utilização dos conteúdos de sua titularidade no desenvolvimento de sistemas de IA.

Muito se tem questionado quem, de fato, é beneficiado pelo projeto. A um só tempo, o legislador estabelece uma nova modalidade de uso de obras protegidas por direitos autorais e concede o direito de explorar economicamente essa modalidade aos titulares, apesar do disposto no inciso V do art. 49 da lei de direitos autorais4. Percebe-se pela versão atual do PL 2338/23 que o Senado Federal fez a escolha legislativa de privilegiar titulares de direitos autorais, sem necessariamente contemplar os interesses de autores e intérpretes. Além disso, o texto tem o potencial de tornar o Brasil um dos mercados mais restritivos ao desenvolvimento de tecnologias relacionadas a inteligência artificial.

Portanto, o modelo legislativo adotado pode trazer desafios econômicos para o desenvolvimento de tecnologia relacionada a IA no Brasil, sob o risco de estagnação ou mesmo retrocesso em relação aos demais países. Afinal, para a iniciativa privada, será mais caro e desafiador do ponto de vista prático o uso de conteúdo brasileiro para treinar suas capacidades de modelos de IA, como LLM – modelos de linguagem grande, modelos multimodais (Texto + Imagem) e modelos de CV – visão computacional.

Na Europa5, por exemplo, em busca de equilibro legislativo, autoriza-se que obras disponíveis publicamente sejam utilizadas para viabilizar o treinamento de sistemas de IA, como forma de incentivo à inovação. Ainda assim, é garantido aos titulares exercer uma espécie de negativa (opt-out), por meio de ferramentas técnicas, sinalizando a proibição do uso de suas obras com essa finalidade.

O Brasil, com a redação atual do PL 2338/23, poderá caminhar para ter uma das legislações mais proibitivas do mundo.

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1 Conforme definido pelo PL nº 2338/2023: “pessoa natural ou jurídica, de natureza pública ou privada, que desenvolva um sistema de inteligência artificial, diretamente ou por encomenda, com vistas a sua colocação no mercado ou a sua aplicação em serviço por ela fornecido, sob seu próprio nome ou marca, a título oneroso ou gratuito”.

2 Conforme definido pelo PL nº 2338/2023: “pessoa natural ou jurídica, de natureza pública ou privada, que empregue ou utilize, em seu nome ou benefício, sistema de inteligência artificial, inclusive configurando, gerenciando, mantendo ou apoiando com o fornecimento de dados para sua operação e monitoramento”.

3 Conforme definido pelo PL nº 2338/2023: “desenvolvedores, fornecedores e aplicadores que atuem na cadeia de valor e na governança interna de sistemas de inteligência artificial, nos termos definidos por regulamento”.

4 “Art. 49. Os direitos de autor poderão ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, por ele ou por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, por meio de licenciamento, concessão, cessão ou por outros meios admitidos em Direito, obedecidas as seguintes limitações:

(…) V – a cessão só se operará para modalidades de utilização já existentes à data do contrato.”

5 Notadamente, o Artificial Intelligence Act (AI Act) e a Directive on Copyright and Related Rights in the Digital Single Market (CDSM ou Diretiva EU 2019/790).

Fonte: Migalhas

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