Nem todo falecimento importa na necessidade da realização de um Inventário mas é quase certo que todo Inventário (e toda sucessão) pode trazer consigo a possibilidade de um grande embate em família que pode exigir um processo judicial para solução. A mistura de bens, interesses patrimoniais e vínculos familiares complicados são ingredientes perfeitos para um enredo de discórdias que pode servir como roteiro perfeito para um longo e litigioso inventário judicial. Some-se a isso tudo regras complexas postas por um Código Civil que tramitou por mais de 1/4 de século no Congresso Nacional e já não retratava, quando da sua promulgação em 2002, as ideias que deram origem à sua reforma, datada do final da década de 60. Para nossa sorte, atualmente o mesmo Código Civil já tem um Projeto de Lei (PL 4/2025) que busca resolver muitas questões, dentre elas a polêmica ordem de vocação hereditária, atualmente insculpida no seu art. 1.829.

Quando o autor da herança falece sem deixar filhos comuns com o(a) viúvo(a), mas deixa filhos de relações anteriores, a divisão da herança pode gerar dúvidas sobre os direitos do(a) viúvo(a) sobrevivente e dos seus descendentes (filhos do falecido). O Código Civil brasileiro estabelece regras complexas para essas situações, que buscam garantir que tanto o(a) viúvo(a) quanto os filhos do falecido tenham seus direitos hereditários respeitados.

De acordo com o Código Civil, o(a) viúvo(a) é considerado(a) herdeiro(a) necessário(a) (art. 1.845) e pode ter direito a uma parte da herança, mesmo que não tenha filhos com o falecido (a chamada “legítima”, conforme art. 1.846 do mesmo Código). A divisão dos bens dependerá do regime de bens adotado no casamento. Se o casamento foi sob o regime de comunhão parcial de bens, a viúva tem direito à meação, ou seja, à metade dos bens adquiridos durante o casamento, observadas as ressalvas do Código (art. 1.659). A outra metade, que constitui a herança, será dividida entre a viúva e os filhos do falecido, conforme o caso. Não podemos nos esquecer, principalmente na hora da divisão dos bens que MEAÇÃO não se confunde com HERANÇA e o(a) viúvo(a) pode ser contemplado tanto com MEAÇÃO quanto com HERANÇA na mesma sucessão (confira-se, por exemplo, o julgado do Agravo de Instrumento TJES nº. 5003511-24.2020.8.08.0000), observando-se com toda atenção que a meação repousará sobre os bens comuns e a herança (por concorrência) sobre os bens particulares, a depender do regime de bens.

No caso de comunhão universal de bens, todos os bens são considerados comuns, respeitadas as ressalvas do art. 1.668, e a viúva também tem direito à meação. A herança neste caso, que é a outra metade dos bens, deve ser dividida somente entre os filhos do falecido (já que onde houver meação não deverá haver herança para a viúva meeira). Aqui também comungamos da tese de que sobre os bens particulares (também possíveis na Comunhão Universal de Bens) a viúva deverá ser contemplada com a herança concorrentemente. Se o regime de bens for o da separação total, a viúva não deverá ter direito à meação, sendo neste caso herdeira nos bens particulares do falecido, concorrendo com os filhos (aqui vale a importante observação de que separação convencional de bens não é separação legal de bens).

A jurisprudência tem reforçado o direito da viúva de concorrer com os filhos do falecido na herança. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu que a viúva tem direito a uma parte da herança, mesmo que não tenha filhos com o falecido, garantindo sua proteção e sustento. Essa interpretação busca equilibrar os direitos dos herdeiros e proteger a viúva, que pode ter contribuído para a formação do patrimônio durante o casamento. Confira-se:

“STJ. REsp 1368123/SP. J. em: 22/04/2015. RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE SOBREVIVENTE . REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. HERDEIRO NECESSÁRIO. EXISTÊNCIA DE DESCENDENTES DO CÔNJUGE FALECIDO. CONCORRÊNCIA . ACERVO HEREDITÁRIO. EXISTÊNCIA DE BENS PARTICULARES DO DE CUJUS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1 .829, I, DO CÓDIGO CIVIL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA . (…) 2. Nos termos do art. 1.829, I, do Código Civil de 2002, o cônjuge sobrevivente, casado no regime de comunhão parcial de bens, concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido SOMENTE quando este tiver deixado BENS PARTICULARES. 3. A referida concorrência dar-se-á exclusivamente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditário do de cujus. 4. Recurso especial provido”.
Nesse sentido inclusive o Enunciado 270 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, de irretocável didática:

“O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aqüestos, o falecido possuísse BENS PARTICULARES, hipóteses em que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os BENS COMUNS (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes”.
Outro aspecto importante, (e que não é raro em casos complexos de Inventários, já na tentativa de prevenir conflitos familiares) é considerar a existência de eventuais TESTAMENTOS. Se o falecido deixou um testamento, a divisão dos bens deve respeitar as disposições testamentárias, desde que não prejudiquem os direitos dos herdeiros necessários, como a viúva e os filhos. O testamento pode estabelecer legados ou disposições específicas, mas não pode excluir a viúva de sua parte legítima na herança (art. 1.845 e 1.846 c/c par. único do art. 1.857).

Vale lembrar que tanto em Uniões Estáveis quanto em Casamento as premissas acima devem ser observadas, já que inadmitido pelo ordenamento jurídico a distinção para fins de direitos sucessórios nos casos de União Estável e Casamento (Temas 498 e 809 do STF): em casos de união estável, a(o) companheira(o) supérstite tem direitos sucessórios semelhantes aos conferidos às (aos) viúvas(os) no casamento. Sem prejuízo de tudo que foi dito, cabe recordar que pode ainda o(a) viúvo(a), se preenchidos os requisitos legais, ser ainda contemplado com o DIREITO REAL DE HABITAÇÃO (art. 1.831), vitalício e personalíssimo.

Em resumo, quando o marido falece sem deixar filhos comuns com a viúva, deixando apenas filhos exclusivos seus, oriundos de relações anteriores, a divisão da herança deve respeitar os direitos da viúva e dos filhos, conforme o regime de bens e a legislação vigente ao tempo do falecimento. Na atualidade confira-se principalmente o art. 1.832. A depender do regime de bens a viúva poderá ser contemplada tanto com meação quanto com herança, concorrendo com os filhos exclusivos do falecido nos bens onde não tiver meação. Consultar um Advogado Especializado em direito sucessório é essencial – especialmente nesses casos – para ajudar a esclarecer dúvidas e garantir que a divisão dos bens seja feita de forma justa e legal, na via adequada.

Fonte: Julio Martins

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