O projeto de lei permite que mulheres em situação de violência doméstica acessem valores de conta conjunta, independentemente do regime de bens
1. Introdução
O PL 1.608/24, de autoria da deputada Federal Laura Carneiro, propõe alterações no CC e na lei Maria da Penha, permitindo que mulheres em situação de violência doméstica tenham acesso a valores de contas conjuntas para sua reacomodação, independentemente do regime de bens do casal. Embora tenha como pano de fundo a proteção à mulher em situação de vulnerabilidade, o projeto traz implicações práticas e jurídicas preocupantes. A proposta abre margem para abusos e viola garantias fundamentais, além de ignorar aspectos elementares do Direito Patrimonial e Processual. Este ensaio crítico analisa os principais riscos da proposição legislativa e as consequências práticas de sua eventual aprovação.
2. Expressão vaga e conceito aberto: “situação de violência doméstica”
A redação do projeto utiliza a expressão genérica “mulher em situação de violência doméstica” sem apresentar qualquer critério objetivo de caracterização. Na prática, essa definição tem sido interpretada como qualquer mulher que obtenha medida protetiva com base em relato unilateral. A ausência de exigência de provas mínimas para deferimento das medidas, aliada à amplitude do termo, cria um campo fértil para o uso indevido da norma, inclusive como instrumento de disputa patrimonial ou vingança pessoal.
3. Medida baseada em cognição sumária e decisão precária
A proposta autoriza o acesso imediato a valores de conta conjunta com base em decisões proferidas em caráter sumário, no âmbito de processos cautelares. Isso viola o devido processo legal e compromete o contraditório, pois a parte apontada como autora da violência doméstica não é sequer ouvida antes da efetivação da medida. Permitir efeitos patrimoniais irreversíveis com base em decisão precária agride princípios elementares do processo civil e penal.
4. Irreversibilidade e impacto financeiro
Caso a suposta violência não seja confirmada posteriormente, é quase certo que os valores retirados da conta conjunta não serão restituídos. A proposta ignora completamente a possibilidade de danos irreversíveis ao patrimônio da pessoa apontada como autora dos fatos, que poderá ser privado de recursos essenciais à sua subsistência ou defesa, com prejuízo real e imediato.
5. Violação ao regime de bens e autonomia privada
O projeto desconsidera o regime de bens livremente escolhido pelas partes no casamento ou união estável. Mesmo em regimes de separação total, os valores da conta conjunta poderiam ser utilizados unilateralmente. Isso representa uma violação direta à autonomia privada e aos pactos patrimoniais livremente firmados entre os cônjuges, além de subverter a lógica do Direito Civil ao tornar ineficazes as escolhas patrimoniais dos casais.
6. Insegurança jurídica e potencial de abuso
A proposta ignora um dos princípios mais relevantes do direito contemporâneo: a segurança jurídica. Ao permitir que a mera declaração de uma das partes justifique a apropriação de valores conjuntos, abre-se perigoso precedente. Sem mecanismos de controle, fiscalização ou limite de valor, o projeto institucionaliza o risco de abusos e estimula o uso estratégico da violência doméstica como ferramenta de obtenção de vantagens econômicas indevidas.
7. Desvio de finalidade das medidas protetivas
Outro ponto crítico é a utilização das medidas protetivas como substituto de ações típicas do Direito de Família. O acesso a patrimônio deve ser regulado por ações de alimentos, partilha ou indenização, não por medidas emergenciais baseadas em cognição limitada. A proposta acaba por distorcer a natureza cautelar das medidas protetivas, convertendo-as em meio de resolução patrimonial sumária.
Neste projeto, valores em contas bancárias estariam sujeitos à liberação imediata sem qualquer filtro objetivo. Isso cria uma assimetria entre o rigor do controle estatal em programas sociais e a permissividade na esfera patrimonial privada.
8. Conclusão
A intenção de proteger mulheres em situação de vulnerabilidade é legítima e necessária. No entanto, o PL 1.608/24 falha gravemente ao atropelar garantias constitucionais, subverter o Direito Patrimonial e gerar instabilidade jurídica. A ausência de critérios objetivos, a desconsideração do regime de bens e o risco de irreversibilidade patrimonial revelam uma proposta que carece de técnica legislativa e equilíbrio. A proteção de grupos em estado de vulnerabilidade não pode se dar às custas da violação de direitos fundamentais de terceiros, sob pena de comprometermos a credibilidade e legitimidade do sistema de justiça.
Fonte: Migalhas
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