No último dia 6 de julho, o “Fantástico”, da TV Globo, divulgou matéria sobre empresas que utilizam inteligência artificial para criar “clones digitais” de pessoas mortas, permitindo que familiares continuem interagindo com versões artificiais dos entes queridos, em um novo setor que vem se firmando no mercado de tecnologia, chamado de “grief tech” (tecnologia do luto).

Para explicar melhor como funciona, a empresa oferece um serviço por aplicativo, no qual o usuário, após o cadastro, alimentará a IA com informações sobre a pessoa falecida, com dados, fotos, áudios de voz, vídeos, etc., e então, a IA, baseada nas informações fornecidas, cria um “clone” em vídeo do ente que se foi.

Nessa mesma perspectiva, a série Black Mirror, no episódio Be Right Back (2017) da 2ª temporada, mostra uma mulher (Martha) que, após perder o companheiro (Ash), utiliza um serviço de IA que recria sua presença com base em dados online, chegando à criação de um androide. A trama evidencia os impactos emocionais e éticos do uso de dados de falecidos.

Não entrando no mérito psicológico de forma profunda, tanto o episódio fictício da série americana, quanto as novas tecnologias exploradas pelo mercado de IA na vida real, como mostrou a matéria do Fantástico, trazem à tona os mesmos questionamentos: após a morte, como devem ser tratados os dados pessoais da pessoa que morreu? Será que uma pessoa em luto teria o direito de “trazer de volta” a pessoa falecida?

Patrimônio transferido aos herdeiros

No direito sucessório brasileiro, todo o patrimônio do falecido é automaticamente transferido aos herdeiros com sua morte, conforme o Princípio de Saisine. Contudo, apenas as relações jurídicas de natureza patrimonial são transmissíveis, já que, como destacam Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2022, p. 1350), “somente elas admitem a substituição do sujeito da relação jurídica após o óbito”.

Dentro dessa premissa, entende-se que, naturalmente, as relações jurídicas personalíssimas seriam extintas junto ao seu titular, tendo em vista seu caráter intuitu personae, estando dentro dessas relações o direito à imagem, ao nome, da vida privada, sendo esta a regra do direito civil brasileiro. Há exceções? Sim, os casos de morte do titular de um direito autoral (Lei 9.610/98, artigo 41), de um usufruto, uso ou habitação (CC, artigo 1.410,1) e, ainda, de falecimento do titular de uma enfíteuse (CC/16, artigo 692, III).

Transmissão de direitos autorais

Note-se, nas exceções, ao tratar de direito autoral, o entendimento, de forma breve e pragmática. Direitos autorais são prerrogativas exclusivas do criador sobre sua obra intelectual, conforme a Constituição. Dentro disso, quando a obra é uma música, personagem, atuação, etc., trazemos à tona os direitos conexos, que diferentemente dos direitos autorais, garantem que àqueles que executam, interpretam, produzem ou transmitem essas criações também sejam reconhecidos e recompensados por seu trabalho.

Perceptível que a transmissão causa mortis de direitos autorais ou conexos não se relacionam com os direitos da vida privada, são considerados direitos patrimoniais porque permitem a exploração econômica da obra. E neste ponto, mais uma vez a mídia levantando questões: em 2023, a Volkswagen lançou um comercial simulando um dueto entre Elis Regina e Maria Rita, usando IA.

Esse comercial foi alvo de críticas, segundo até mesmo a sofrer uma tentativa de arquivamento no Conar por violação ética. Após deliberações, o conselho emitiu decisão unânime “de que não houve desrespeito à figura de Elis, pois os herdeiros consentiram o uso da imagem da cantora, que apareceu na propaganda cantando, que era algo que fazia em vida”.

Quando se fala de direitos autorais, obras e pessoas públicas, o assunto não parece ser tão problemático, como vemos no caso de Elis Regina, Ayrton Senna, entre outros. O desafio é maior quando se trata de pessoas anônimas e seus direitos à imagem, privacidade e dados… Seria possível fazer um clone para “reviver” a pessoa falecida para que quem está em sofrimento alivie seu luto?

Direitos da personalidade

Os direitos da personalidade, no direito civil brasileiro, são interpretados sob uma perspectiva neoconstitucionalista, que reconhece a existência de interesses patrimoniais associados à tutela da pessoa humana. Essa leitura decorre do movimento de “repersonalização e despatrimonialização do direito civil”, que propõe valorizar os bens e interesses ligados à dignidade da pessoa, sem ignorar seus reflexos econômicos (Farias; Rosenvald, 2022, p. 164).

Nas democracias modernas, principalmente as baseadas na doutrina alemã pós segunda guerra mundial sobre dignidade da pessoa humana e direitos da personalidade, têm enfrentado atualmente como cerne de discussão o bem jurídico da “liberdade de escolhas existenciais fundamentais” (Farias; Rosenvald, 2022, p. 166), que afirma que, nessas sociedades, prevalece, ou ao menos assim deve ser, o direito de escolha de cada pessoa sobre seu próprio destino. E o mesmo deve ocorrer no mundo digital.

Stefano Rodotá, professor titular de Direito Civil da Universidade La Sapienza, em Roma, Itália, cunhou a expressão “Direito à autodeterminação informativa”, sustentando que os indíviduos devem manter o controle as próprias informações, de modo a modular a construção da própria esfera privada, estabelecendo princípios e regras sobre o tratamento de dados, se concretizando em intervenções de tutela (Rodotá, apud Farias; Rosenvald, 2022, p. 166).

Seguindo essa tendência, em 2014, o Brasil editou o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), composto por normas fundamentalmente (não exclusivamente) principiológicas. E o artigo 8º, parágrafo único, I, da referida lei, consolida que são nulas as cláusulas que impliquem ofensa à inviolabilidade e ao sigilo das comunicações privadas na internet.

Limites da morte

Inegável que vivemos a era da mitigação das limitações físicas, visto que a internet faz com que essa distância literal seja mitigada pelo poder das conexões possíveis, velozes e ilimitadas. Mas será que poderíamos ultrapassar os limites da morte?

Luís Roberto Barroso lembra que a “conjugação da tecnologia da informação, da inteligência artificial e da biotecnologia produzirá impacto cada vez maior sobre os comportamentos individuais, os relacionamento humanos e o mercado de trabalho, desafiando soluções em múltiplas dimensões” (p. 70, 2020). Verificamos o que disse o ministro do STF na vivência cotidiana no ambiente virtual, que há muito não é mais uma exceção, mas parte fundamental das relações sociais, afetivas e profissionais.

Com o avanço das tecnologias e a consolidação de plataformas de interação remota — especialmente impulsionadas durante a pandemia —, o conceito tradicional de “presença” foi profundamente transformado. Hoje, estar presente não exige mais o encontro físico: é possível participar de reuniões, audiências, aulas e momentos familiares por meio de imagens, voz e mensagens transmitidas digitalmente.

Esse novo significado jurídico e social da presença foi reconhecido, inclusive, em dispositivos normativos como a Lei nº 14.010/2020, que, embora temporária, refletiu uma mudança estrutural: a presença digital é, também, juridicamente válida.

Vida digital após a morte

No contexto das relações familiares, essa transformação permitiu que o direito à convivência — especialmente entre pais e filhos separados geograficamente — fosse mantido através de chamadas de vídeo e aplicativos de comunicação. Mas essa mesma lógica, que rompe a ideia de presença física como única forma de vínculo, vem sendo utilizada também para manter relações com quem já partiu.

A chamada “vida digital após a morte”, viabilizada por tecnologias de IA que simulam fala, gestos e memórias de falecidos, desafia o conceito tradicional de presença. Se é possível interações digitais em vida, também é viável simular essas conexões após a morte, o que traz relevantes implicações jurídicas e éticas, especialmente quanto à personalidade post mortem e à titularidade dos dados envolvidos.

A personalidade, inegavelmente, no Brasil, finda com a morte (artigo 6º, Código Civil Brasileiro). Essa extinção, contudo, não significa o completo apagamento jurídico da figura do falecido. Ainda que os direitos da personalidade sejam, em regra, intransmissíveis e cessáveis com a morte, há resquícios jurídicos relevantes que subsistem e merecem proteção, notadamente no que tange à memória, imagem e honra daquele que já partiu.

É nesse ponto que o avanço tecnológico desafia o direito civil contemporâneo: se o falecido já não possui personalidade jurídica, como lidar com os dados e elementos de sua identidade digital que permanecem acessíveis? Estariam sob tutela dos herdeiros, poderiam ser dispostos em testamento ou exigiriam proteção absoluta como projeção da dignidade humana?

Inviolabilidade da intimidade e da vida privada

O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), em seu artigo 7º, garante a inviolabilidade da intimidade e da vida privada no ambiente digital, mas não aborda expressamente a proteção post mortem nem define se dados digitais integram o acervo hereditário. Diante desse vácuo legal, surgem interpretações divergentes: uns entendem que os dados se extinguem com a personalidade; outros defendem que certos conteúdos, inclusive não patrimoniais, devem ser protegidos e geridos pelos herdeiros.

Primeiramente, deve-se conceituar o que são bens digitais. Para Bruno Zampier, são “aqueles bens incorpóreos, os quais são progressivamente inseridos na Internet por um usuário, constituindo em informações de caráter pessoal que trazem alguma utilidade àquele, tenha ou não conteúdo econômico” (p. 63 e 64, 2021). Verifica-se que o autor afirma que bens digitais não são aqueles somente dotados de caráter patrimonial, mas também de cunho existencial ou mistos. O autor é acompanhado por outros nomes da moderna doutrina civilista, como Cíntia Burille e Gabriel Honorato.

Para os autores, temos que:

“Nesse sentido, os bens digitais patrimoniais se apresentam como aqueles cuja natureza é meramente econômica, a exemplo das moedas virtuais, milhas aéreas, créditos e avatares em jogos virtuais, itens pagos em plataformas digitais, entre outros; já os bens digitais existenciais (ou bens sensíveis) possuem natureza personalíssima, podendo ser exemplificados através dos perfis de redes sociais, blogs pessoais, correio eletrônico, mensagens privadas em aplicativos como o WhatsApp, Telegram, Messenger, e outros; e, por último, os bens de caráter híbrido, chamados de bens digitais patrimoniais-existenciais (ou patrimoniais-personalíssimos), perfazem um misto de economicidade e privacidade, como ocorre nos perfis de influenciadores digitais em redes sociais como Instagram e TikTok, nos quais há exploração econômica, mas que também apresentam conteúdo de cunho personalíssimo, ou seja, aspectos relacionados aos direitos da personalidade, além de conterem mensagens privadas, protegidas por sigilo.”

Definido os bens digitais, podemos então questionar se os direitos de personalidade, bens digitais de cunho existencial, estariam submetidos às regras de sucessão. Não há discussão que, por força do Princípio de Saisine, os bens digitais de caráter essencialmente patrimoniais se transferem de forma automática aos herdeiros do de cujus.

A moderna doutrina civilista se divide em três correntes quanto à (in)transmissibilidade dos bens digitais de cunho existencial:

  1. a majoritária entende que a transmissão aos herdeiros só é possível se houver consentimento do falecido e se tal uso não violar sua intimidade, exigindo a presença concomitante desses requisitos;
  2. a segunda, defendida por Laura Mendes e Karina Fritz, com base no leading case do Bundesgerichtshof (BGH, 2018), sustenta a transmissibilidade plena desses dados, salvo manifestação expressa em contrário do falecido;
  3. por fim, a terceira corrente, inspirada nas políticas das plataformas digitais, nega a transmissibilidade, alegando que os contratos são personalíssimos e intransmissíveis, tratando-se apenas de concessão de uso ao usuário.

A reportagem do “Fantástico” e o episódio Be Right Back, da série Black Mirror, ilustram, respectivamente na realidade e na ficção, os dilemas éticos e jurídicos da chamada grief tech — tecnologias que simulam a presença de falecidos. Ambas evidenciam a questão central: é legítimo reutilizar dados, imagem e voz de quem já partiu, mesmo com seu consentimento prévio?

Uso de dados existenciais do falecido

Adotando a corrente que reconhece a legitimidade do uso de dados existenciais do falecido mediante consentimento expresso, entende-se que a autodeterminação informativa, como expressão da dignidade humana, deve prevalecer. Diante do avanço das tecnologias de simulação — cada vez mais realistas e emocionalmente reconfortantes para os vivos — o consentimento livre e informado, dado em vida, basta para legitimar esse uso, mesmo que envolva aspectos sensíveis da trajetória do falecido.

O que deve ser resguardado, nesses casos, é a autenticidade e integridade do consentimento prestado, não havendo razão jurídica para impedir a continuidade da presença digital — especialmente quando isso serve como ferramenta de elaboração do luto, preservação da memória e continuidade simbólica das relações afetivas.

A autodeterminação informativa, princípio consagrado por Rodotá e incorporado pelo Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), deve ser a pedra angular da regulação do pós-morte digital. Se a pessoa escolhe, em vida, permitir o uso de sua imagem, voz ou dados para determinada finalidade — inclusive para conforto dos entes queridos ou preservação da memória —, essa manifestação deve ser respeitada, ainda que sua concretização envolva a simulação de presença, como nas ferramentas de IA atuais.

Assim, reconhece-se que a herança digital, em sua vertente existencial, exige uma abordagem jurídica que equilibre a proteção da dignidade do falecido com o respeito à sua autonomia, e que seja capaz de lidar com os impactos afetivos e sociais que emergem da continuidade simbólica da presença de quem já partiu. O direito não pode ignorar a transformação das relações humanas mediadas por tecnologias: deve, sim, acompanhá-las com sensibilidade, técnica e abertura interpretativa.

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Bibliografia

BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia. 1ª ed. Rio de Janeiro: História Real, 2020.

FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de direito civil: volume único. 7. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: JusPodivm, 2022.

ZAMPIER, Bruno. Bens digitais: cybercultura, redes sociais, e-mails, músicas, livros, milhas aéreas, moedas virtuais. 2. ed. São Paulo: Foco, 2021

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BE RIGHT BACK. Black Mirror – Reino Unido: Endemol UK / Netflix, 2013. Episódio 1, temporada 2. 48 min. Direção: Owen Harris.

Fonte: Conjur

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