No complexo universo do direito sucessório, uma das situações mais recorrentes e delicadas envolve a discrepância entre a vontade afetiva de uma pessoa e as disposições formais da lei. Não são raras as circunstâncias em que um indivíduo manifesta o desejo (inclusive por mais de uma vez) de deixar seus bens para um cuidador, amigo ou parente específico. Contudo, quando essa intenção não é formalizada por um instrumento jurídico adequado, a partilha seguirá um caminho estritamente legal (“sucessão legítima”), que ignora os desejos do falecido e pode gerar grande frustração, inclusive beneficiando herdeiros legais que tinham pouco ou nenhum contato com a pessoa falecida, infelizmente.
É fundamental compreender que uma promessa verbal, mesmo que reiterada, não possui eficácia jurídica para transferir bens após a morte. O ordenamento brasileiro é rigoroso e exige formalidades específicas. A doação de imóveis, por exemplo, só é válida por ESCRITURA PÚBLICA (Art. 108 do Código Civil). Portanto, a mera intenção declarada, mesmo que reiterada, é insuficiente para se sobrepor às regras de herança, não criando qualquer direito real sobre o patrimônio para o beneficiário pretendido. A única forma de garantir que a vontade prevaleça é por meio de um testamento ou de uma doação em vida.
Quando uma pessoa falece sem testamento, ocorre a “sucessão legítima”. A lei estabelece uma ordem de preferência para os herdeiros, conhecida como “ordem da vocação hereditária” (Art. 1.829 do atual Código Civil). A herança é deferida, primeiramente, aos herdeiros necessários: descendentes (filhos/netos etc), em concorrência com o cônjuge; na falta deles, os ascendentes (pais/avós etc), também em concorrência com o cônjuge. Apenas na ausência de ambos, a totalidade dos bens é destinada ao cônjuge sobrevivente.
A questão se torna particularmente sensível quando a herança se destina aos herdeiros colaterais (irmãos, sobrinhos, tios), o que ocorre somente na ausência de todos os herdeiros necessários. A lei é objetiva: os mais próximos excluem os mais remotos, e todos os herdeiros da mesma classe possuem direitos idênticos, independentemente do grau de afeto ou cuidado que dedicaram ao falecido. Assim, a vontade manifestada em vida, se não formalizada, é juridicamente irrelevante.
Este cenário pode ser evitado com o auxílio de um Advogado Especialista em Planejamento Sucessório. A principal ferramenta para isso é o testamento. Embora a lei permita a forma particular, a modalidade pública, feita em cartório, é a que recomendamos por diversos motivos, principalmente a Fé Pública do Tabelião, incensada sobre o ato. Para garantir a formalização da vontade, é crucial não procrastinar. O agravamento de um estado de saúde pode, infelizmente, inviabilizar a realização do ato, impedindo a pessoa de expressar seu discernimento perante o tabelião.
A boa notícia é que a tecnologia e a flexibilidade dos serviços notariais facilitam enormemente este processo. Caso o testador tenha dificuldades de locomoção, é possível solicitar que o escrevente do cartório se desloque até sua residência, hospital ou casa de repouso para a lavratura do testamento público. Além disso, tanto o testamento quanto uma escritura de doação podem ser realizados por videoconferência através da plataforma e-Notariado, conferindo validade e segurança ao ato sem a necessidade de presença física. O que não se pode é deixar de agir a tempo.
Para aqueles que já se deparam com a situação onde a vontade do falecido não foi formalizada, a orientação de um Advogado Especialista em Inventários e Sucessões é crucial. Embora não seja possível validar promessas verbais, a atuação técnica deste profissional é indispensável para conduzir o inventário, assegurar que a partilha ocorra nos termos da lei e proteger os direitos de todos os herdeiros. A intervenção qualificada minimiza conflitos e garante a correta transmissão do patrimônio em um momento de grande vulnerabilidade.
Fonte: Julio Martins


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