A importância social da regularização fundiária e as recorrentes ocupações de imóveis públicos trazem necessidade de compreensão acerca do processo de desafetação do bem público
 
A regularização fundiária no Brasil consiste em tema recorrente, especialmente quando o assunto se volta as políticas públicas que têm por escopo as ocupações irregulares urbanas ou rurais. Tais ocupações ou assentamentos, advêm de uma condição que se origina, sistematicamente, da segregação e da desigualdade social, responsáveis pela formação das aglomerações, originando de núcleos informais e irregulares.
 
A regularização fundiária ocorre mediante individualização das matrículas de lotes ou áreas públicas ou privadas, sejam estas urbanas ou rurais, que são resultantes de projetos de regularização aprovados, e que levam posteriormente ao registro de direitos reais em favor dos ocupantes, o que vai ao encontro dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição, bem como de melhorias e readequações urbanísticas, ambientais e sociais.
 
A Regularização Fundiária de bens públicos se investe do princípio constitucional que tem por escopo a função social da propriedade, seja privada ou pública. Não obstante, não há consolidação do referido princípio, considerando que a obtenção de renda se sobressai ao direito fundamental à moradia, bem como aos demais direitos envolvidos, tais como direito à cidade, trabalho e meio ambiente saudável.
 
Entretanto, diante da necessidade do Poder Público em regularizar os assentamentos informais, a lei 13.465/17, passou a dispor sobre a regularização fundiária de áreas urbanas e rurais, visando beneficiar milhões de moradores em áreas irregulares e informais, com a possibilidade de se garantir direito real aos ocupantes, trazendo consigo vários outros benefícios como a valorização do imóvel, garantia de sucessão, empréstimos bancários para reforma do imóvel, além da organização urbanística, que possibilita a preservação do meio ambiente.
 
Da importância social da regularização fundiária e as recorrentes ocupações de imóveis públicos, surge a necessidade de compreensão acerca do processo de desafetação do bem público, consubstanciado em ato estatal que leva ao seu desligamento da estrutura institucional e organizacional do Estado.
 
Hipótese essa em que o bem continua sendo público, mas deixa de ser destinado à satisfação das necessidades coletivas e estatais, alterando o seu regime jurídico, inclusive acerca da sua alienabilidade, permitindo ao ente público conceder a titularidade do bem aos ocupantes.
 
A afetação ou a desafetação ocorrem tanto por ato administrativo quanto por lei, ou seja, de acordo com a sua origem, respectivamente, pela forma adequada, desde que inexista vedação constitucional, qualquer bem poderá ser convertido em dominial e alienado. A afetação ou a desafetação podem ser ainda de forma tácita ou fática, estas duas últimas pouco aceitas pela doutrina.
 
A lei 13.465/17 prevê a concessão de direitos reais de imóveis públicos para seus respectivos ocupantes, dispensando a necessidade de avaliação prévia do valor desses bens, conforme determina a legislação. A nova Lei de Licitações no mesmo sentido em seu art. 76. também prevê tal flexibilização sobre as áreas rurais, desde que cumprida a função social pelos ocupantes:
 

“§ 3º A Administração poderá conceder título de propriedade ou de direito real de uso de imóvel, admitida a dispensa de licitação, quando o uso destinar-se a:
 
II – pessoa natural que, nos termos de lei, regulamento ou ato normativo do órgão competente, haja implementado os requisitos mínimos de cultura, de ocupação mansa e pacífica e de exploração direta sobre área rural, observado o limite de que trata o § 1º do art. 6º da Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009.”

 
Estabeleceu-se diferenças com a Lei Fundiária entre os processos para regularização de áreas públicas e privadas. A lei, em alternativa à impossibilidade de usucapião de área pública dominical, ampliou a concessão de uso especial para fins de moradia, para áreas ocupadas até dezembro de 2016.
 
Além disso, a lei 13.465/17, traz o instituto da “legitimação fundiária”, que autoriza o ente federativo a conceder a titularidade do imóvel público ou privado em situação irregular ao ocupante do “núcleo urbano informal consolidado” já existente na data de 22/12/16, data da edição da MPV 759/16, desconsiderando o período anterior da posse.
 

“Art. 11. Para fins desta Lei, consideram-se:
 
VII – legitimação fundiária: mecanismo de reconhecimento da aquisição originária do direito real de propriedade sobre unidade imobiliária objeto da Reurb;
 
 Art. 9º Ficam instituídas no território nacional normas gerais e procedimentos aplicáveis à Regularização Fundiária Urbana (Reurb), a qual abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes.
 
§ 2º A Reurb promovida mediante legitimação fundiária somente poderá ser aplicada para os núcleos urbanos informais comprovadamente existentes, na forma desta Lei, até 22 de dezembro de 2016.” 

 
Por sua vez, a CF/88, em seu art. 20, definiu quais são os bens imóveis da União. Esse artigo revela um leque de razões que justificam o domínio do poder central sobre a terra. São elas a defesa da soberania nacional; a conservação do meio ambiente; a proteção aos povos indígenas, habitantes e “proprietários” originais do território brasileiro; o controle sobre a exploração dos recursos naturais e a garantia da propriedade sobre os imóveis adquiridos pela União.
 
Todavia, historicamente, a lógica da supremacia dos interesses do proprietário na utilização da propriedade produziu nas cidades e no campo a consolidação e o agravamento do processo de exclusão socio territorial de um contingente crescente de pessoas. Impedidas, no campo, de permanecer trabalhando na terra, nas cidades a dificuldade está em ocupar legalmente o território – adquirir um lote, construir sua moradia.
 
Assim, a partir da intensificação das lutas rurais e urbanas pela inclusão social e territorial, iniciou-se a construção de um novo paradigma, segundo o qual a terra, pública ou privada, deve cumprir uma função social, que prevalecerá sobre o direito individual à propriedade.
 
O art. 5° da CF/88 traz, logo após a garantia do direito de propriedade, um inciso que impõe uma limitação a esse direito:
 

“XXIII – a propriedade atenderá a sua função social”

 
Em 1988, os constituintes, em sintonia com as lutas sociais e com as tendências internacionais, contemplaram novas razões na definição do patrimônio imobiliário da União, com especial destaque à proteção ambiental. São da União: as águas e as praias fluviais situadas em territórios de seu domínio, as que cortam mais de um Estado e as que se situam na fronteira; o mar territorial e a plataforma continental; os terrenos de marinha, situados na costa marítima; as ilhas oceânicas; as cavernas; entre outros.
 
No entanto, a Constituição veda a usucapião de bens públicos, trazendo consigo, portanto, a ideia de imprescritibilidade dos bens públicos:
 
Os bens públicos não podem ser usucapidos. A CF/88 textualmente proíbe a aquisição de imóveis públicos urbanos (art. 183, § 3º) e rurais (art. 191, § 3º) por usucapião.
 
Em tais hipóteses, a Legislação Fundiária atribui ao ente titular do bem público, a decisão com base em sua legislação própria, acerca da regularização do núcleo, o título a ser concedido ao ocupante, e a natureza onerosa ou gratuita da cessão.
 
O CC/02 dispõe que bens públicos afetados são inalienáveis, não sendo sujeitos à transferência de domínio para terceiros. Porém, a exceção se mostra no mesmo dispositivo, quando este dispõe a condicionante “enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar”, ou seja, para os bens públicos dominicais, quando não são destinados para uso público específico, autoriza-se a venda, doação e a concessão de uso real.
 

“Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar.”

 
Por sua vez, a Legislação Fundiária dispensa, dos entes públicos as determinações de autorização legislativa, avaliação prévia e desafetação dos bens ocupados, dando permissivos para que a regularização ocorra a despeito de autorização legal.
 
A desafetação tácita ou fática e consequente concessão de titularidade, advém da necessidade de regularização dos núcleos informais, assim, cada vez mais o legislador vem se atentando ao direito à moradia, além de buscar garantir o direito de propriedade e sua função social, posto que, tais direitos estão previstos na CF/88, com o desígnio em desenvolver a função social da propriedade e com o propósito de atingir o bem estar de seus ocupantes.
 
Por conseguinte, a formalidade pela qual se processa a desafetação do bem público quanto ao seu fim, mostra-se mitigada quando, de outro lado, verifica-se a necessidade em atribuir utilidade ao bem como prevalência da supremacia do interesse público.
 
Nesse sentido, se há um bem afetado, todavia, inutilizado, ou que não se preste à coletividade, evidencia-se adequado o bem à desafetação e posterior concessão de sua titularidade ao ocupante do núcleo urbano consolidado, prevalecendo como premissa maior no caso, o interesse público envolvido.
 
Assim, quando o ordenamento jurídico dispõe que determinados bens públicos são inalienáveis, vale considerar que tal mandamento somente se aplica enquanto os bens forem destinados ao uso comum do povo ou a fins administrativos especiais, isto é, enquanto tiverem destinação pública específica. Uma vez desafetados os bens, seja mediante lei, fato ou ato administrativo, poderão estes serem alienados, convertendo-se em bens dominicais.
 
Portanto, na situação fática de uma ocupação por particular de um bem público, é acertada e notória a flexibilização legislativa acerca da possibilidade de prescrição aquisitiva de patrimônio público, decorrente da ponderação histórica dos interesses e princípios envolvidos como a dignidade da pessoa humana, o direito de propriedade, o direito fundamental à moradia e o interesse econômico do Estado, que é interesse público secundário (bem dominical).