O acervo virtual de cada cidadão pode ter natureza existencial ou econômica. Às vezes se confundem. Como no caso da celebridade morta, cujos vídeos, fotos e mensagens postadas no Face, no Insta, no WhatsApp ou no YouTube podem valer muito dinheiro. Na era da internet as pessoas não mais se identificam por sua assinatura de próprio punho. Prevalecem os seus tokens, chaves, logins, senhas, IDs, certificações digitais e reconhecimentos faciais. Cada cidadão manifesta nas redes seus interesses, emoções e transações patrimoniais que geram um acervo manejado pelas big techs através de algoritmos que lhes rendem bilhões. As fotografias, mensagens, vídeos e áudios de natureza privada e informações privilegiadas integram o patrimônio virtual do internauta.
 
Daí surgem questões que começam a ser discutidas pelos operadores do Direito. Qual a natureza desse patrimônio virtual? Deve haver diferença de tratamento entre os ativos digitais diretamente econômicos (e.g., milhas de fidelidade, bitcoins, livros e-book, músicas do iTunes ou Spotify) e os existenciais-personalíssimos (perfis de redes sociais, e-mails e mensagens de WhatsApp)? Que destino deve ter esse acervo virtual ou e-personality de cada um de nós após a morte? Ninguém desconhece que o conteúdo que cada um de nós deposita nas redes é monetizado pelas plataformas. Esse conteúdo pertence ao internauta porque foi por ele gerado. Mas é explorado pelos modelos de negócios dos aplicativos e plataformas de compartilhamento. Modelos que nem sempre são perceptíveis à primeira vista. Então, o debate sobre o destino do patrimônio virtual do falecido envolve uma questão fundamental: com quem ficarão os valiosos dados que espalhou pelas redes ao longo da vida? As plataformas podem proibir a transmissão dos bens digitais no processo sucessório? Chegou a hora de fazermos nosso testamento digital para manifestarmo-nos sobre o destino dos nossos conteúdos digitais após a morte?
 
O Direito ainda não tem respostas consolidadas. Duas teses se antagonizam. A primeira é a de que as plataformas não poderiam liberar esses conteúdos para os sucessores do falecido. Para preservar-lhe imagem, intimidade, honra e memória, direitos de natureza personalíssima. A segunda é a de que tanto os conteúdos existenciais quanto os econômicos devem ser transmitidos aos sucessores porque integram o conjunto da herança. Uma solução intermediária tem sido aventada pela jurisprudência. A de que somente o patrimônio virtual de natureza econômica teria que ser liberado e transmitido aos herdeiros. Os de natureza existencial ou afetiva, por respeito à intimidade do de cujus, ficariam retidos pelas plataformas. O problema é que nem sempre é possível fazer a distinção, como no caso da celebridade.
 
Ainda não temos lei específica regulando a herança digital. No Congresso, alguns projetos foram arquivados (PL 4099/2021 e PL 4847/2012) e atualmente tramitam os PLs 1331/2015 e 8562/2017. Nem o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) nem a LGPD (Lei nº 13.709/2018) disciplinaram o tema. Para solucionar demandas, temos que combinar princípios constitucionais vigentes com as normas do Direito das Sucessões. Pois se trata de transmissão aos sucessores do patrimônio virtual, personalíssimo ou econômico, de cada cidadão. O assunto está começando a chegar ao Judiciário. Algumas ações têm sido ajuizadas em face de provedores de contas e perfis na internet por familiares de pessoas mortas visando, p. ex., o acesso à conta do parente morto. Em julgamento recente, o TJ de SP procedeu à separação entre os dados de natureza econômica e aqueles ditos personalíssimos (AC: SP 1119688-66.2019.8.26.0100, Relator Francisco Casconi, 31ª CD Privado, publicado em 11/03/2021). E proibiu a família de ter acesso aos dados da parente falecida, ao permitir que o Facebook excluísse o perfil da filha morta sob o argumento de que esses seriam direitos personalíssimos da falecida. Ocorre que, ao vedar acesso ao perfil virtual de uma pessoa, a plataforma não deixou de utilizar esse acervo em seus algoritmos e de com ele gerar receita. Por tudo isso, o destino dos nossos ativos digitais não pode ficar ao arbítrio do modelo de negócios das plataformas. Hoje, à falta de lei, elas impõem, nos termos de uso, algumas cláusulas de adesão. O Facebook admite que os usuários, antes de morrer, expressem a opção pela exclusão da conta ou pela transformação em conta-memorial com herdeiro-administrador previamente designado. O Instagram transforma a conta do falecido em conta-memorial congelada, sem administrador que a ela tenha acesso.
 
Estão em jogo direitos personalíssimos e econômicos de cada um de nós que precisam estar protegidos por regras legais claras. Como faz com os demais bens que integram nosso patrimônio, o Direito precisa disciplinar e proteger a transferência dos nossos ativos digitais após a morte.