Introdução

 

O direito de resolução do contrato por inadimplemento é modalidade de extinção que deve ser reservada à situação de descumprimento do dever de prestar, imputável ao devedor, que afete a função concreta do negócio celebrado[1].  Nesse sentido, se houve inadimplemento definitivo – modalidade de descumprimento que colmata o interesse útil do credor na prestação -, há espaço para o remédio da resolução por inadimplemento.

 

Sabe-se que o direito de resolução pode ser legal[2] ou convencional[3].  A regra geral de resolução por inadimplemento definitivo pode ainda ser facilitada em regimes jurídicos específicos, em que já se identifica hipótese de descumprimento capaz de dar apoio ao direito de resolução.

 

Essa última modalidade é exemplificada na Lei 4.591/64, que regula a incorporação imobiliária.  O artigo 43-A do referido diploma, incorporado pela Lei 13.786/18, postula que o atraso, pelo incorporador, de até cento e oitenta dias corridos da data estipulada para a conclusão do empreendimento “não dará causa à resolução do contrato por parte do adquirente”[4].

 

O artigo supracitado cuida da hipótese de inadimplemento do incorporador, ante ao seu fracasso no cumprimento da obrigação de entregar o empreendimento ao adquirente no tempo e modo avençados.  Pela literalidade do texto normativo, o referido descumprimento não dará espaço à resolução do contrato caso o atraso na entrega não extrapole o prazo de cento e oitenta dias.

 

Ante à relevância da hipótese extintiva para a prática do direito imobiliário brasileiro, tenta-se contribuir, ainda que brevemente, com a construção do modelo hermenêutico do artigo 43-A da Lei 4.591/64.  A exposição divide-se na busca (i) dos requisitos de aplicação da modalidade extintiva; (ii) do modo de operação do direito de resolução pelo adquirente; e (iii) dos efeitos da resolução.

 

Requisito de aplicação

 

Em manifestação clara do princípio do favor negotii, o nosso sistema dá preferência a remédios que não promovem o rompimento do vínculo contratual. A própria regra do direito legal de resolução por inadimplemento afirma que a busca pela resolução acontecerá se a parte lesada pelo descumprimento “não preferir exigir o cumprimento”[5].

 

Esta característica extrema do direito de resolução dá a pauta principal para o regramento em torno dos seus pressupostos de aplicação: o seu âmbito de atuação encontra-se inexoravelmente associado ao descumprimento essencial de obrigações contratuais.

 

No que se refere à modalidade extintiva prevista no artigo 43-A da Lei 4.591/64, há previsão específica do legislador no sentido de qualificar o inadimplemento do incorporador que atrasa a entrega do empreendimento.

 

O dispositivo normativo esvazia as consequências do atraso imputável ao incorporador inferior a cento e oitenta dias.  O adquirente, ainda que lesado por este descompasso com o avençado, não poderá requisitar indenização por perdas e danos ou manejar a resolução do contrato.

 

Na eventualidade do atraso do incorporador superar cento e oitenta dias, haverá o surgimento do direito potestativo da resolução em favor do adquirente, bem como a irradiação de efeitos restitutórios e indenizatórios próprios do inadimplemento definitivo.

 

A especificidade da norma facilita a superação do requisito geral de aplicação da resolução por inadimplemento: a classificação do descumprimento como definitivo.  Pelo artigo 43-A, que um atraso superior a cento e oitenta dias é, indiscutivelmente, apto a prejudicar peremptoriamente o interesse útil do credor na prestação, autorizando o manejo da resolução.  Da mesma forma, inadimplemento inferior a este termo carece de definitividade apta à extinção prematura da avença.

 

Vale prestar nota ao intérprete de que o contrato de compra e venda disciplinado pela Lei 4.591/64 admite outras modalidades de descumprimento por parte do incorporador.  O descumprimento de quaisquer outros deveres de prestar por sua parte, distintos da hipótese específica de atraso na entrega do empreendimento, devem seguir a regra prevista no artigo 475 do Código Civil, atinente ao direito legal de resolução por inadimplemento definitivo – não irradiando sobre elas a tolerância de cento e oitenta dias do artigo 43-A.  Nessas circunstâncias, o intérprete precisará averiguar se o referido descumprimento prejudica ou não o interesse útil do credor.  Se há, ou não, rompimento grave nos interesses que gravitam em torno da prestação.

 

Modo de operação

 

É de se observar uma tendência, estimulada pela experiência de países de common law[6] e vista nas tentativas de unificação e harmonização do direito privado[7], de consolidar a possibilidade de se exercer o direito de resolução pela via extrajudicial[8].

 

No direito brasileiro, a regra geral do exercício do direito legal de resolução por inadimplemento, estabelecida no artigo 474 do Código Civil, é comumente interpretada no sentido de se exigir que o exercício do direito potestativo resolutório se dê pela via judicial, extraindo-se efeitos da resolução apenas na circunstância de uma sentença que julgue procedente o pedido do autor[9].  É importante registrar que esta posição, atualmente, é questionada em publicação recente e especializada sobre o tema[10].

 

Alguns regimes jurídicos especiais afastaram expressamente essa exigência de manejo judicial da resolução.  Exemplo importante encontra-se no regime especial da compra e venda internacional de mercadorias, estabelecido pela Convenção de Viena sobre o tema (CISG).  O artigo 49, (1) “a” da CISG foge da regra geral da interpelação judicial do Código Civil ao prever que, nos contratos sob seu regime jurídico, o comprador poderá declarar o contrato resolvido nas hipóteses de descumprimento essencial[11].  A mesma regra é fornecida ao vendedor no artigo 64, (1) “a” da Convenção[12].  Ambas as regras são unificadas pela literalidade do artigo 26 da CISG[13], que classifica a “declaração” de resolução como manifestação receptícia de vontade[14].

 

A Lei 4.591/64, diferentemente da CISG, não atribui expressamente uma exceção à regra de operatividade do artigo 474 do Código Civil, recaindo sobre a hipótese específica o mesmo debate que existe sobre a regra geral.  A despeito da existência recente de posicionamento no sentido de se permitir exercício extrajudicial do direito potestativo, a posição predominante na literatura brasileira segue sustentando a necessidade de se manejar judicialmente o direito legal de resolução.

 

A maneira mais conveniente para assegurar a possibilidade de exercício extrajudicial dá-se pela elaboração de cláusula resolutiva expressa, que muito bem pode reproduzir a hipótese de inadimplemento definitivo prevista na Lei 4.591/64.  Dessa forma, prescinde-se de sentença para que a resolução se configure, embora não se exclua a opção de obter-se sentença declaratória – e não constitutiva negativa – de resolução[15].  O exercício dependerá de uma manifestação receptícia de vontade do adquirente, direcionada ao incorporador.

 

Efeitos

 

O termo inicial da irradiação dos efeitos da resolução segue de perto a modalidade operativa. Na hipótese em que a resolução caminha pelo exercício judicial, os seus efeitos são produzidos apenas com o trânsito em julgado da sentença constitutiva negativa de resolução.  Caso o exercício seja promovido por manifestação receptícia de vontade, a irradiação de efeitos se dá a partir da chegada da mensagem ao destinatário – ou de quando ele já tinha condições de conhecê-la.

 

De maneira sintética, pode-se reconhecer três efeitos possíveis à resolução: liberatórios, restitutórios e indenizatórios.

 

O efeito liberatório destina-se a dissolver a relação jurídica contratual entre as partes, libertando-as do vínculo que antes as unia.  Assim como a perfeita entrega do empreendimento pelo incorporador e o pagamento integral do preço pelo adquirente dá fim ao vínculo contratual, a resolução também libera as partes contratantes de prosseguir com cartilha contratual anteriormente avençada.

 

O efeito restitutório destina-se a reposicionar as partes nas circunstâncias anteriores ao descumprimento.  No caso da Lei 4.591/64, o artigo 43-A, §1º destaca que o incorporador deve restituir todos os valores que tiver até então recebido do adquirente, corrigidos na forma da própria lei.

 

O efeito indenizatório, que não se confunde com o restitutório, destina-se a reparar danos sofridos pela parte inocente ante a ocorrência do inadimplemento.  Sua quantificação deve seguir o prisma da extensão integral do dano, conforme o artigo 944 do Código Civil.  O artigo 43-A, §1º da Lei 4.591/64, após fazer referência à eficácia restitutória da resolução, afirma a possibilidade de trazê-la junto com uma “multa estabelecida”.

 

O texto normativo parte do pressuposto de que o contrato entre incorporador e adquirente possui cláusula penal específica para a hipótese de atraso do incorporador, responsável por predeterminar o valor pecuniário da pretensão de perdas e danos em favor do adquirente.

 

Admitindo-se que o ambiente de contratação não impõe qualquer limitação à liberdade de contratar, é perfeitamente cabível que adquirente e incorporador avencem os limites dos efeitos indenizatórios do descumprimento.

 

Se, entretanto, o contrato é silente sobre o tema – ou se o dispositivo que aborda o assunto no contrato carece de validade – é de se reconhecer a possibilidade do adquirente formular pedido de satisfação de sua pretensão de perdas e danos.  Nessa hipótese, deverá o adquirente provar o prejuízo que justifique a indenização, que por sua vez será quantificada nos limites do artigo 944 do Código Civil – e a latere da pretensão restitutória.

 

Ainda quanto aos efeitos, a legislação impõe um importante fator de eficácia para que o adquirente possa resgatar seus valores restitutórios e indenizatórios.  Determina o artigo 43-A, §1º da lei 4.591/64 que, após a ocorrência da resolução – momento em que passa a irradiar o efeito liberatório -, o incorporador terá sessenta dias corridos para organizar-se financeiramente e satisfazer os efeitos restitutórios e indenizatórios.  Apenas após a superação deste termo essas pretensões são exigíveis pelo adquirente, que poderá enfim cobrá-las judicial ou extrajudicialmente.

 

Fonte: Migalhas

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