A necessidade de autorização do Congresso para a venda de terras a estrangeiros protege soberania nacional e evita o canibalismo do território — uma preocupação mundial, em tempos de hipervalorização da produção de alimentos, exploração de minérios e até turismo.

 

A proteção do mercado e a imposição de restrições a empresas de outros países virou pauta obrigatória num movimento em que a globalização cede espaço à proteção da segurança nacional. É o que afirmam especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

 

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) enviou ofícios em 29 de dezembro à Junta Comercial do Estado de São Paulo (Jucesp) e à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para evitar a concretização da venda da Eldorado Brasil Celulose para a Paper Excellence.

 

A medida decorre de um procedimento administrativo que determinou que a Paper Excellence deveria ter obtido autorização prévia do Congresso Nacional, por meio do Incra, para formalizar o contrato de aquisição da Eldorado em 2017. A conclusão é baseada na análise das leis brasileiras sobre compra e arrendamento de terras por estrangeiros.

 

O negócio, segundo o Incra, representa a aquisição da Eldorado, empresa nacional com propriedade e arrendamento de imóveis rurais, pela CA Investment Brasil, uma companhia brasileira equiparada a estrangeira, uma vez que tem como acionistas a holandesa Paper Excellence e a malaia Fortune Everrich. Por isso, a transação exige aval parlamentar, avaliou o instituto.

 

A aquisição de terras por estrangeiros no Brasil é regulada pela Lei 5.709/1971, que impede a compra ou o arrendamento de áreas com mais que 50 módulos fiscais por não brasileiros. Um município não pode ter mais do que 25% de seu território sob controle de pessoas físicas ou jurídicas de outros países. Cidadãos e empresas de uma determinada nação não podem ser proprietários de mais do que 10% da área de uma cidade.

 

O artigo 23, parágrafo 2º, da Lei 8.629/1993, estabelece que compete ao Congresso Nacional autorizar tanto a aquisição ou o arrendamento além dos limites de área e percentual fixados na Lei 5.709/1971, por pessoa jurídica estrangeira ou equiparada, de área superior a 100 módulos de exploração indefinida (MEI). Em relação ao caso concreto, o Incra afirma que os imóveis localizados em Mato Grosso do Sul equivalem a 995,503 MEI, acrescentando que “o números [sic] de MEI será maior caso seja computado a área da matricula n 27043 do SRI da Comarca de Andradina – SP e os imóveis arrendados pela empresa Eldorado Brasil Celulose S.A”.

 

A exigência de aval do parlamento também consta de normas do Incra, como o Manual de Orientação para Aquisição e Arrendamento de Imóvel Rural por Estrangeiro e a Instrução Normativa 88/2017. Por sua vez, o artigo 15 da Lei 5.709/1971 prevê expressamente que a aquisição ou arrendamento “que viole as prescrições desta Lei, é nula de pleno direito”.

 

O parecer da Advocacia-Geral da União lançado no mesmo processo administrativo e aprovado pela Subprocuradora-Chefe da Procuradoria Federal Especializada reforça que, uma vez verificado que o negócio foi realizado em desacordo com a legislação vigente, a consequência é a nulidade prevista em lei.

Apesar dessa determinação expressa, o Incra abriu a possibilidade de uma solução negociada entre J&F — controladora da Eldorado — e Paper Excellence, orientando sobre a possibilidade de as empresas desfazerem o negócio voluntariamente.

 

Defesa da soberania

 

Especialistas ouvidos pela ConJur afirmam que a limitação da compra de terras por estrangeiros é uma medida importante para manter a soberania do território nacional. Especialmente porque, com o real desvalorizado perante o dólar, o euro e outras moedas, brasileiros ficariam em desvantagem perante a estrangeiros no mercado nacional, especialmente na agropecuária.

 

O jurista Lenio Streck avalia que a decisão do Incra está correta. Ele diz que as ações em tramitação no Supremo Tribunal Federal que visam à declaração de inconstitucionalidade da Lei 5.709/1971 partem de uma premissa equivocada, pois a Constituição de 1988 não apenas recepciona a norma como reforça sua constitucionalidade.

 

“Explico: uma vez que a soberania é condição de existência do próprio Estado, da dignidade humana e de diversos direitos sociais, também deve ser resguardada da falta de proteção estatal. A soberania deve ser protegida. E, ao mesmo tempo, protege. Se o artigo 190 determina que a lei limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por estrangeiro, a norma restaria carente da regulamentação constitucionalmente exigida se uma empresa estrangeira pudesse simplesmente evitar as exigências legais”, explica o professor.

 

A proteção estatal não pode ser exagerada, aponta Lenio. Por exemplo, o poder público não poderia vedar a compra de terras por estrangeiros em qualquer circunstância. No entanto, ressalta, o Estado jamais poderia proteger de forma deficiente as áreas nacionais, permitindo que pessoas e empresas de outros países as comprassem irrestritamente. Caso isso ocorresse, “o Estado brasileiro estaria protegendo insuficientemente a soberania, incidindo, portanto, em uma inconstitucionalidade”, diz o colunista da ConJur.

 

Porém, declara, esse exame de proporcionalidade nem é necessário nas ações que correm no STF. “Isso porque a Constituição já estabelece que a soberania tem precedência em face dos demais direitos fundamentais colidentes quando se tratar de aquisição de propriedades rurais por estrangeiros. É uma exigência constitucional: o Estado jamais poderia deixar de proteger a soberania nacional. Soberania quer dizer: aqui tem lei que protege as terras brasileiras. Simples assim.”

 

O STF julga ações (ADPF 342 e ACO 2.463) que visam derrubar a limitação à compra de terras por estrangeiros. Os autores argumentam que a restrição viola os preceitos fundamentais da livre iniciativa, do desenvolvimento nacional, da igualdade, de propriedade e de livre associação. Sustentam que, ao limitar as aquisições de terras por empresas nacionais com capital estrangeiro, a lei dificulta o financiamento da atividade agropecuária e diminui a liquidez dos ativos imobiliários, com perda para as empresas agrárias.

 

As limitações legais à aquisição de terras por estrangeiros são uma escolha legítima dos representantes do povo — que é soberano na democracia — para a proteção do território brasileiro, destaca o advogado Walfrido Warde.

 

“É uma forma de evitar o direito de propriedade seja distorcido e usado para permitir a ocupação estrangeira do país, ou seja, a compra de grandes extensões de terra por estrangeiros. Todos os países que compreendem que a defesa da soberania é indispensável para a competitividade perante outras nações têm medidas protetivas de seus interesses”, afirma.

 

Warde aponta que o sistema de Justiça desses países — que engloba não só o Judiciário, mas também o exercício do poder sancionatório e regulador de órgãos da administração pública — atua deliberadamente para proteger os interesses nacionais aos estrangeiros.

 

No Brasil, isso não significa uma afronta aos direitos dos estrangeiros, regulamentados pela Lei de Migração (Lei 13.445/2017), e sim que eles devem se submeter aos interesses nacionais, aos objetivos da nação, analisa o advogado.

 

Projeto de lei

 

O Senado aprovou, em dezembro de 2020, o Projeto de Lei 2.963/2019, que facilita a aquisição de propriedades rurais no Brasil por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras. A proposta está em tramitação na Câmara dos Deputados.

 

O PL revoga a 5.709/1971 e dispensa a necessidade de autorização ou licença para compra e posse por estrangeiros quando se tratar de imóveis rurais com áreas não superiores a 15 módulos fiscais (no Brasil, o valor do módulo fiscal é fixado pelo Incra e varia de 5 a 110 hectares, dependendo do município).

 

O Ministério Público Federal emitiu nota técnica contra o projeto. O órgão destaca que a proposta contraria o parecer da Advocacia-Geral da União, de 2010, que concluiu que a Lei 5.709/1971 havia sido recepcionada pela Constituição de 1988, “especialmente pela sua compatibilidade com a garantia constitucional do desenvolvimento nacional e com os princípios da soberania, da independência nacional e da isonomia entre brasileiros e estrangeiros”.

 

No entendimento do MPF, o PL retira as restrições que recaem sobre as aquisições dos imóveis rurais por empresas brasileiras, ainda que sejam controladas por estrangeiros, flexibilizando exageradamente as regras atuais. “A prevalecer o projeto, bastaria a criação formal de pessoa jurídica brasileira por estrangeiro em território nacional para possibilitar a aquisição de terras por estrangeiros”, afirma o órgão.

 

A procuradoria destaca ainda que a medida vai na contramão da tendência internacional. Como exemplo, cita que, em países com grandes dimensões de terras, como Estados Unidos e Canadá, é possível que os entes públicos imponham suas próprias restrições sobre o domínio de áreas por estrangeiros.

 

Para o MPF, a soberania deve ser compreendida não só quanto às fronteiras, mas também nos campos alimentar e econômico, fundamentais para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil.

 

“A flexibilização exagerada das regras para aquisição por pessoas jurídicas estrangeiras não se coaduna com os ditames constitucionais da dignidade da pessoa humana, da erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, isonomia, função social da propriedade, justiça social, desenvolvimento sustentável, segurança jurídica e reforma agrária”, opina o MPF.

 

Fonte: Conjur

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