A alienação fiduciária em garantia é um instituto relativamente recente do direito brasileiro — foi positivada, pela primeira vez, pela Lei nº 4.728 de 14 de julho de 1965. Veio com o objetivo de fomentar o crédito diretamente ao consumidor para aquisição de bens móveis e, em contrapartida, conferir mecanismos que atendessem as necessidades de garantia do mercado financeiro.
A necessidade de aperfeiçoar as regras da execução da garantia advinda da alienação fiduciária deu azo ao Decreto-Lei nº 911/69, que introduziu modificações tanto no campo material quanto no campo processual, notadamente a ação de busca e apreensão, com rito sumaríssimo e defesa limitada.
E foi somente em 1997, por meio da Lei Federal nº 9.514/97, que foi instituída a alienação fiduciária de coisa imóvel. O tema é abordado a partir do artigo 22 da lei, Capítulo II “Da Alienação Fiduciária de Coisa Imóvel“.
A aplicabilidade do instituto da alienação fiduciária em garantia aos bens imóveis teve por principal finalidade estimular o mercado imobiliário através do oferecimento ao credor de garantia mais eficaz que as existentes até então, em especial pela possibilidade de satisfação do crédito sem a necessidade de se socorrer do Poder Judiciário, por vezes — ou quase sempre — moroso, burocrático e já tão abarrotado de demandas e problemas internos de ordem sistêmica e organizacional.
Alteração
Alterado recentemente pela Lei nº 14.711/23, denominada de “Marco Legal das Garantias”, o artigo 22 da Lei nº 9.514/97 conceitua o instituto como sendo “o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel”.
A recente alteração legislativa suprimiu do artigo 22 o termo “devedor” como único habilitado a ofertar tal modalidade de garantia, de modo a permitir ao fiduciante garantir a consecução de obrigação própria ou de terceiro, através da transmissão da propriedade resolúvel de bem imóvel próprio.
Muito embora isso já ocorresse na prática, a alteração legislativa serviu para deixar claro a possibilidade de não só o “devedor” fiduciante lançar mão da garantia fiduciária de bem próprio, mas a qualquer um que se revista da condição de fiduciante poder, com o oferecimento de bens próprios, garantir obrigação — geralmente o pagamento do preço — de terceiros “devedores”.
Mas o instituto da alienação fiduciária vai além da garantia de bens imóveis. A cessão fiduciária de direitos creditórios (ordinariamente denominados como recebíveis) e de títulos de créditos é modalidade utilizada em larga escala pelas instituições financeiras, precisamente em razão da liquidez e sua rápida e eficaz execução pelo credor fiduciário.
O Código Civil prevê, na parte especial “Do Direito das Obrigações”, Título II “Da Transmissão das Obrigações”, Capítulo I “Da Cessão de Crédito” (artigos 286 a 298), a operação que permite a transferência dos direitos de crédito do credor original para um terceiro, servindo de alicerce, em conjunto com os dispositivos da comentada Lei nº 4.728/65, ao instituto da alienação fiduciária de recebíveis no âmbito do mercado financeiro e de capitais.
Aqui vale a pena trazer a precisa consideração feita por Melhim Namen Chalhub (in “Negócio Fiduciário”. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 322-323) acerca da semelhança entre “alienação fiduciária em garantia” e “cessão fiduciária em garantia”:
“A cessão fiduciária e a alienação fiduciária são institutos similares, exercendo a mesma função de garantia do crédito e alicerçando-se nos mesmos fundamentos; enquanto na alienação, o objeto do contrato é um bem (móvel ou imóvel), na cessão o objeto é um direito creditório; em ambas, a transmissão do domínio fiduciário ou da titularidade fiduciária subsiste enquanto perdurar a dívida garantida, razão pela qual o tratamento legal da cessão fiduciária de recebíveis em garantia de empréstimos e financiamentos bancários deve seguir e orientar-se pelos princípios do negócio fiduciário em garantia de bens móveis e imóveis, aplicando-se-lhe as Leis nºs 4.728, de 1965, com a redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004; 4.864, de 1965, e 9.514, de 1997, além do Decreto-Lei nº 911, de 1969.”
Alienação
No caso da alienação fiduciária em garantia de recebíveis e de títulos de crédito, a transferência desses “direitos creditórios” se dá por meio da “cessão fiduciária de direitos creditórios”, que é o negócio jurídico por meio do qual o cedente fiduciante cede ao cessionário fiduciário, como garantia ao cumprimento de obrigações, geralmente as de mutuário (contrato de empréstimo a título oneroso), títulos de crédito e/ou recebíveis (impressos das maquininhas de débito/crédito) obtidos de seus clientes (consumidores finais).
Aqui vale considerar que os títulos de crédito têm sua importância no que concerne à possibilidade do seu portador, por meio de simples negociação, efetuar (=descontar) de imediato o seu valor, servindo-se para transações atuais a prestação prometida pelo seu devedor. Logo, dão margem à negociação e à circulação do direito creditório. Já os recebíveis, por sua vez, são “direitos de crédito” (valores a receber); crédito que tem sua origem no faturamento de bens e serviços vendidos e, usualmente, entregues a seus clientes.
Acerca do tema, o disposto no artigo 66-B, §3º, da Lei nº 4.728/65:
“É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada.”
Portanto, uma vez admitida como forma de garantia, a cessão fiduciária de títulos de crédito e recebíveis resguarda o credor fiduciário dos riscos de insolvência do fiduciante. Isso porque o cessionário fiduciário (credor) titula a propriedade (ou titularidade) fiduciária dos recebíveis, de modo que o inadimplemento da obrigação garantida importa a consolidação deles em seu patrimônio.
Cessão
Na cessão fiduciária de títulos de crédito, o cessionário fiduciário tem também as posses direta e indireta do documento representativo dos recebíveis. O cessionário fiduciário (credor fiduciário), destaca-se, é titular do direito de crédito cedido pelo fiduciante. Não se trata, portanto, de uma simples “caução” de títulos de crédito, mas de verdadeira transferência do direto ao credor.
O direito ao crédito cedido passa, em outros termos, a integrar o patrimônio do credor como objeto de propriedade resolúvel. Nesse contexto, sendo o contrato omisso, é o credor fiduciário quem faz a cobrança do crédito e se apropria da quantia recebida até o limite do seu crédito, entregando o saldo ao cedente fiduciante, se houver.
Assim, se ocorrer o adimplemento da obrigação garantida pela cessão fiduciária, essa propriedade se resolve e o direito objeto da cessão fiduciária deixa de integrar o patrimônio do credor para retornar ao do fiduciante.
Mas se não ocorrer o adimplemento da obrigação, ou seja, se ocorrer o inadimplemento da obrigação, a propriedade se consolida e o mesmo direito que integrava condicionalmente ao patrimônio do credor passa a integrá-lo incondicionalmente. Isto é, consolida-se a propriedade sobre ele.
No mais, o bem dado em garantia fiduciária é de e já está em propriedade/titularidade do credor. Não há, portanto, perda automática do bem do fiduciante se ele deixar de pagar (convenção comissória vedada por nosso ordenamento jurídico — ex vi do disposto no artigo 1.428 do Código Civil Brasileiro), permanecendo, em tese, a posse do bem dado em garantia fiduciária com o fiduciante (a propriedade resolúvel é do credor).
Contudo, no caso dos recebíveis, a propriedade e a posse (resolúveis) ficam com a cessionária, é dizer, com a credora fiduciária. Se o cedente fiduciante pagar a obrigação, a propriedade resolúvel, que era da cessionária e credora fiduciária, se desfaz, passando a sê-la novamente do cedente fiduciante, seja ele devedor ou mero garantidor da obrigação de terceiro.
Consequentemente, há o ajuste de contas/monitoramento de fluxo/mês a mês. Se o cedente fiduciante inadimplir a obrigação, a propriedade resolúvel dos recebíveis se consolida em favor da cessionária e credora fiduciária, que poderá, ela mesma e diretamente, “receber os recebíveis”.
Destaca-se que, por força da vedação imposta pelo artigo 1.428 do Código Civil, o credor não pode se apropriar do bem (tornar-se proprietário) do devedor sem, antes, proceder à execução judicial do débito. Isso porque a lei visa proteger o devedor fraco da exploração gananciosa do credor e evitar que o bem dado em garantia seja apropriado sem correspondência com seu valor de mercado.
De fato, a vedação do pacto comissório tem por escopo a proteção da parte economicamente mais fraca da relação jurídica contratual, que, premida por necessidades imperiosas da vida cotidiana, concorda com a celebração de negócio jurídico voltado à garantia real da obrigação originariamente ou verdadeiramente estipulada.
Nas palavras de Clóvis Bevilaqua, amparado em uma vedação de cunho moral, “o direito protege o fraco contra o forte, impede que a pressão da necessidade leve o devedor a convencionar o abandono do bem ao credor por quantia irrisória”.
No entanto, pode o credor reter esse bem, aliená-lo a um terceiro e usar os valores recebidos para amortizar a dívida enquanto o bem segue pertencendo oficialmente ao devedor. Essa é precisa e essencialmente a função da garantia.
Vale considerar que a proibição relacionada à cláusula comissória atinge todas as hipóteses em que, para garantir o pagamento de mútuo, se convencione que o credor deva ficar com bem de propriedade do devedor (ou do garantidor).
Contudo, no caso da alienação fiduciária, o bem já é (propriedade) do credor, afastando-se, assim, a vedação “moral” invocada por Clóvis Beviláqua. Afinal, pode-se vedar o “vir a ser” proprietário do bem dado em garantia pelo devedor, mas não “o já ser” proprietário do bem (que é o caso do credor fiduciário), que, afinal, “já é” de propriedade do credor.
A outra questão moral igualmente invocada por Beviláqua — eventual desproporção entre o valor do direito transferido em garantia e o valor do empréstimo garantido a acarretar enriquecimento ilícito pelo credor — também está superada no caso da alienação fiduciária de recebíveis.
Isso porque, na cessão fiduciária de títulos de crédito e recebíveis o próprio bem é dado em garantia fiduciária e, após a consolidação da propriedade do bem ao credor fiduciário, há a venda do bem, com a satisfação do débito (=pagamento) e a devolução do crédito excedente ao devedor e/ou garantidor (ao contrário do pacto comissório em que o credor adquire o bem sem qualquer procedimento, avaliação, indenização ou anuência do devedor, bastando a mora deste).
Nesse sentido, a concludente observação feita por Bruno Cezar Toledo de Conti, in “Garantias Fiduciárias”, São Paulo, Almedina, 2022, pág. 201:
“Ao proibir o fiduciário de ficar com o bem quando do inadimplemento da dívida, obrigando-o a vendê-lo, impede-se que um dos credores desfalque o patrimônio do devedor em valor maior do que teria direito (em caso de valor do bem maior que o valor da dívida), já que o excedente da venda deve ser devolvido ao devedor, em benefício dos demais credores.”
É, portanto, uma forma também de proteger o interesse de terceiros, preservando o tratamento igualitário dado aos credores em eventual rateio.
Na alienação fiduciária, não há intuito de prejudicar terceiros ou infringir preceito de lei (simulação). Fosse assim, seria de per si nula e abusiva qualquer garantia fiduciária concedida (o instituto da alienação fiduciária seria nulo de per si).
Além disso, a Lei nº 9.514/97 prevê em seu artigo 19, § 1º, que “as importâncias recebidas na forma do inciso IV deste artigo [‘receber diretamente dos devedores os créditos cedidos fiduciariamente’], depois de deduzidas as despesas de cobrança e de administração, serão creditadas ao devedor cedente, na operação objeto da cessão fiduciária, até final liquidação da dívida e encargos, responsabilizando-se o credor fiduciário perante o cedente, como depositário, pelo que receber além do que este lhe devia”.
Deixa-se claro, assim, que na cessão fiduciária de direitos creditórios o credor fiduciário se utilizará dos valores provenientes dos créditos recebidos fiduciariamente até o limite da dívida, sem possibilidade de apropriação dos próprios créditos e do produto deles no que a exceder, sobejar.
Lembrando que para que o credor fiduciário “fique” em definitivo com imóvel dado em garantia nos termos da Lei nº 9.514/97, ele precisa realizar dois leilões extrajudiciais para a venda do bem e ambos devem ter seus resultados frustrados (artigo 27, §§ 5º e 6º).
Não há, portanto, aqui qualquer resquício de abusividade ou mesmo nulidade, ou mesmo invocação a eventual cláusula de pacto comissório. Até porque, a vedação ao pacto comissório visa proteger o devedor e eventuais terceiros, sem considerar, ainda, que essa “incorporação” do bem do fiduciante pelo credor, em definitivo, pode, inclusive, ser “prejudicial” ao próprio credor fiduciário.
Afinal, se no segundo leilão não se atingir o valor mínimo proposto — ao menos igual ao valor da dívida (Lei nº 9.514/97, artigo 27, § 2º) —, considerar-se-á que o valor de mercado do bem é menor do que o valor da dívida, sendo o credor fiduciário o único prejudicado com a incorporação do bem que possui valor “menor” que o da dívida contraída.
Por derradeiro, recentemente — e até de forma surpreendente para quem desconhecia existir discussão sobre o tema —, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento plenário sobre o tema nos autos do Recurso Extraordinário nº 860.631 (Tema 982 submetido ao procedimento da denominada “Lei dos Recursos Repetitivos”, nos termos e para os fins do instituto da repercussão geral), finalizado em 25/10/2023 e ainda sem publicação e disponibilização da íntegra do acórdão, validou, por maioria de votos, dispositivos da Lei nº 9.514/97 — após, portanto, 26 anos de sua promulgação —, ratificando a permissão legal conferida a instituições financeiras de retomarem um imóvel, em caso de não pagamento das parcelas da dívida, sem a necessidade de acionamento do Poder Judiciário.
A tese de repercussão geral fixada considerou ser “constitucional o procedimento da Lei nº 9.514/1997 para a execução extrajudicial da cláusula de alienação fiduciária em garantia, haja vista sua compatibilidade com as garantias processuais previstas na Constituição”.
Conclui-se, pois, que o entendimento acima, embora não se ignore o exagerado lapso de tempo entre a promulgação da Lei nº 9.514/97 e a tese recentemente fixada nos termos e para os fins do instituto da repercussão geral por nossa Suprema Corte, apenas corroborou o êxito do instituto da alienação fiduciária, que, para além do desenvolvimento do setor imobiliário, preencheu lacunas deixadas pelo incompleto arcabouço legal de garantias, sem ferir preceitos e princípios constitucionais.
Fonte: ConJur
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