Por muito tempo, o Direito foi tratado como um instrumento limitador das liberdades individuais, um mecanismo de coerção que, ao lado das regras morais e de trato social, funcionaria como ultima ratio na promoção do controle social. Tal perspectiva não se restringe a modelos teóricos, mas se estende à prática jurídica através de culturas e métodos adotados pelos aplicadores do Direito nos mais diversos papéis e níveis institucionais.

 

É certo que o advento do Estado de bem-estar social já começou a pôr em xeque tal realidade, ao introduzir nos textos normativos compromissos gerais da sociedade e do Estado para com os cidadãos, sob a forma de prestações cujas materialidade e simbologia sintetizam os objetivos mais elevados da comunidade política e colaboram não apenas na manutenção do status quo, mas especialmente na organização de uma atuação coletiva voltada para o futuro [1].

 

A transição de um Direito limitador para um Direito estruturante da dinâmica social se completa mesmo, porém, na sociedade da informação, pós-industrial. Aqui, as demandas decorrentes das infinitas possibilidades de comunicação dão as bases para propostas descritivas como a de Niklas Luhmann, segundo a qual o Direito é um grande instrumento redutor de complexidade social, cuja função reside na institucionalização e na manutenção de expectativas (normativas), enquanto formas de comunicação voltadas para o futuro. Como se vê e o próprio Luhmann o enfatiza, a função do Direito detém um componente temporal premente, com um viés que é prospectivo e estruturante da vida em sociedade [2].

 

A rigor não se pode falar, contudo, em uma transição efetiva, na medida em que, no livre mercado das ideias e na heterogeneidade da vida social, as diversas perspectivas do papel ou da função do Direito continuam convivendo entre si, sendo mais ou menos predominantes conforme o contexto institucional ou material de que se trata. E aqui surge a oportunidade para as reflexões do presente texto.

 

Processo de inovação

Poucas searas são mais demandantes de ações complexas, estruturadas e voltadas para o futuro como o processo de inovação, entendido este como o fluxo criativo que, gerando novos produtos, serviços e processos produtivos, impacta o mercado e a sociedade. O processo de assenhorar-se do desconhecido, gerando conhecimento que irá colaborar na superação de desafios técnicos das mais diversas naturezas, exige o engajamento de múltiplos atores, cada qual imbuído de interesses, valores e culturas institucionais próprias.

 

Modelos teóricos como da inovação aberta e da hélice tripla souberam enfatizar o locus social e sistêmico do fenômeno da inovação, a partir do reconhecimento de que o processo inventivo se dá num contexto em que os diversos atores, da academia, do mercado e do governo, relacionam-se de forma complexa, pautados por padrões de interação moldados institucionalmente e em constante evolução.

 

Dinâmicas recentes desencadeadas por grandes desafios colocados aos sistemas econômicos, políticos e sociais, bem como à própria sobrevivência da espécie humana, só reiteraram a centralidade de uma infraestrutura institucional para a inovação dotada de capacidade de interação e coordenação.

 

Fenômenos extremos de natureza geopolítica, climática e de saúde, a exemplo da proliferação de conflitos armados, o aumento da temperatura do planeta e o surgimento de epidemias globais, exigem da sociedade e do Estado novos métodos de atuação, baseados em missões que impõem a mobilização e o direcionamento dos recursos institucionais e financeiros, públicos e privados, para, imbuídos de propósito e urgência, promover o endereçamento de problemas transversais via atingimento de objetivos estratégicos específicos.

 

Papel do Direito

Os grandes empreendimentos criativos da espécie humana, na forma como hodiernamente se concretizam, são impensáveis sem a atuação do Direito, que aí desenvolve papel central. Não se trata, porém, daquele Direito tradicional, voltado para a inibição de comportamentos via mecanismos sancionatórios, senão do Direito da sociedade complexa, voltado sobretudo para a estruturação de novos campos de ação via instrumentos simbólicos, de coordenação e indução.

 

Ao institucionalizar e assegurar expectativas ao longo do tempo, o Direito organiza a vida social estabelecendo previsibilidade em meio ao caos; ao distribuir incentivos e alocar custos na cadeia de valor, o Direito sinaliza as oportunidades aos agentes econômicos, arbitra interesses contrapostos e articula a atuação dos diversos atores em prol de um objetivo determinado, ao tempo em que preserva as preferências valorativas abraçadas pela sociedade e consolidadas nos princípios abrigados nas mais altas hierarquias do sistema jurídico.

 

É assim que o Direito estrutura o processo de inovação como fluxo criativo decorrente da interação complexa entre atores pautados por vieses econômicos, jurídicos, políticos e institucionais distintos.

 

Consórcio Covax Facility

Um exemplo que demonstra as demandas de coordenação colocadas por projetos complexos — e como o Direito assume aí uma função estruturante — é o da iniciativa do consórcio Covax Facility (Covid-19 Vaccines Global Access Facility). Trata-se de mecanismo multilateral e internacional, envolvendo instituições públicas e privadas, voltado para assegurar o acesso a vacinas contra a pandemia do coronavírus de forma equitativa em todos os países do mundo, com o objetivo de assegurar a imunização de no mínimo 20% da população dos países participantes.

 

Para a concretização desse arranjo institucional foi implementado todo um ecossistema contratual e de governança, responsável por estruturar os esforços de desenvolvimento, aquisição e distribuição das vacinas, traduzindo-os em expectativas normativas institucionalizadas em nível global.

 

Nessa complexa teia normativa em expansão, podemos identificar, dentre outros, alguns elementos que colaboraram na institucionalização do projeto:

 

1) mecanismos de governança do Covax Facility, com a composição, função e competência dos seus comitês, subcomitês e grupos de trabalho, bem como da participação das instituições líderes do consórcio, com destaque para a fundação Gavi Alliance;

2) atos de adesão dos países ao Covax Facility, via acordos de compromisso de compra firmados entre os Estados aderentes e a Gavi Alliance;

3) compromissos antecipados de compra (advanced purchase agreements), firmados entre a Gavi Alliance e os fabricantes das vacinas, que asseguraram, antes mesmo do desenvolvimento final das vacinas, demanda mínima para a tecnologia a ser gerada, reduzindo assim os riscos da produção em escala ao tempo em que foram garantidos cerca de dois bilhões de doses do imunizante aos países participantes;

4) compromissos antecipados de mercado (advanced market commitments), firmados entre a Gavi Alliance e financiadores (países desenvolvidos, fundações privadas e doadores individuais), visando subsidiar a aquisição das vacinas para países de baixos níveis de renda, assegurando a remuneração dos fabricantes, ao tempo em que permitiram a universalização do acesso à vacina da Covid-19;

5) arcabouço regulatório visando determinar a alocação das doses fornecidas ao Covax Facility entre os diversos países participantes;

6) estrutura jurídico-institucional interna dos países participantes, responsável pela gestão operacional da administração das vacinas.

 

O resultado de todo este arcabouço jurídico-institucional se concretizou sob a forma da elaboração e da aquisição de cerca de 1,2 bilhão de doses de imunizantes, sua distribuição e aplicação em 144 países, o que, se não eliminou o problema da pandemia do coronavírus, serve para demonstrar a funcionalidade do Direito em operação, alavancando capacidades institucionais via programas de ação estruturados, em grande escala e complexidade.

 

Observe-se que, para induzir o processo de inovação, com a complexidade inerente a tais fluxos interinstitucionais de conhecimento, o Direito recruta institutos e instrumentos de diversos ramos normativos, a exemplo do Direito Contratual, do Direito de Propriedade Intelectual, do Direito Administrativo, do Direito Tributário e mesmo do Direito Constitucional.

 

Não se trata, porém, de submeter o fenômeno inventivo à lógica particular desses sub-ramos do Direito, i.e., à formalidade inerente à dinâmica da administração pública ou mesmo à finalidade arrecadatória das normas tributárias, mas sim de colocar suas regras a serviço do propósito de induzir a geração de tecnologia e inovação, acoplando-se ao processo inventivo de forma compatível com a racionalidade que lhe é própria.

 

Direito da Inovação

É aí que se descortina o que denominamos Direito da Inovação, como unidade da diferença formada pelos diversos substratos normativos que cumprem o propósito de promover o desenvolvimento tecnológico e a inovação. Essa pluralidade de mundos, constituídos por realidades dogmáticas segmentadas em ramos do Direito tradicional e originariamente diversos, integram-se a partir de um propósito comum, que é promover a inovação na economia e na sociedade [3].

 

Este Direito da Inovação é regido por valores próprios, dentre os quais:

 

(1) equidade, assegurando, tanto quanto possível, o alinhamento entre riscos tomados e ganhos auferidos;

(2) função social da inovação (incentivada), sob a qual a tecnologia e a inovação, uma vez desenvolvidas e especialmente aquelas decorrentes de fomento público, devam estar comprometidas não apenas com os retornos individuais do agente econômico privado, mas também com os ganhos sociais delas decorrentes;

(3) resiliência, internalizando as incertezas, riscos e a iminência do fracasso como fenômenos inerentes ao seu objeto;

(4) cooperação, reconhecendo a necessidade de se estimular a articulação entre entes, tanto públicos e privados, no desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação (inovação aberta);

(5) prevalência da função sobre a forma, do que decorre que a observância do Direito está assegurada não apenas pelo cumprimento das formalidades prescritas na norma, mas igualmente pelo atingimento do objetivo por ela almejado;

(6) instrumentalidade, sob a forma da premissa de que os mecanismos normativos que têm como objeto a pesquisa científica, o desenvolvimento tecnológico e a inovação não consubstanciam um fim em si mesmo, senão um meio para levar a economia e a sociedade à autonomia tecnológica nacional, à soberania econômica e a níveis superiores de renda e bem-estar.

 

No núcleo deste Direito da Inovação, atuam (1) mecanismos de fomento, dentre os quais se destacam o regime de patentes, os regimes de incentivo financeiro e tributário, bem como (2) os mecanismos de articulação, por meio das normas de direito público e privado que dão forma a uma infraestrutura institucional para a geração de tecnologia e inovação.

 

Neste Direito da Inovação, por fim, os juristas não são meros guardiões (gatekeepers) da legalidade, mas sim engenheiros da institucionalidade normativa, operando para estruturar novas possibilidades de interação e assim, arbitrando interesses, coordenando as ações e expectativas dos diversos atores, públicos e privados, instrumentalizar o atingimento dos objetivos de desenvolvimento, econômico e social, do Estado e da sociedade.

 

 

 

[1] Com este viés, a Constituição Brasileira dirigente, como ensina Bercovici. Cf. BERCOVICI, Gilberto. A problemática da constituição dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro. Revista de Informação Legislativa, p. 36, 1999.

 

[2] LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2013. pp. 134, 136.

 

[3] Com abordagens distintas, mas também reivindicando um ramo do Direito específico para o fenômeno inovativo, cf. ARIENTE, Eduardo. Curso de Direito da Inovação. São Paulo: D’Plácido, 2023; QUEIROZ, João Eduardo Lopes. Manual de Direito da Inovação. Belo Horizonte: Fórum, 2024.

 

Fonte: Conjur

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