Como amplamente divulgado, o Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, alterando o entendimento até então prevalecente[1], por maioria de votos, determinou o registro de convenção matrimonial que, dentre outras disposições, contempla a denominada “renúncia antecipada ao direito sucessório concorrencial”.[2]
Ainda que o acórdão não tenha avalizado a sua juridicidade, pontuando expressamente que “o registro não significa a chancela judicial à validade da cláusula, mas tão somente que não se deve negar eficácia perante terceiros ao pacto antenupcial, até que em momento e na esfera própria a questão da nulidade eventualmente seja arguida e decidida”, é cediço que tal decisum renovou o ânimo daqueles, sobretudo dos advogados e notários, que nos últimos anos sustentaram a sua regularidade, o que é compreensível, pois esses profissionais enfrentam diretamente a justa incredulidade dos nubentes quando são cientificados de que a adoção do regime da separação de bens não elimina a privilegiada posição sucessória do cônjuge supérstite, frustrando, assim, a almejada ausência absoluta de promiscuidade patrimonial, independentemente se a sociedade conjugal vier a ser dissolvida pelo divórcio ou em decorrência do falecimento de um dos consortes.
Ocorre que, como leciona António Menezes Cordeiro[3], “o direito tem natureza científica. Obedece a regras de complexidade crescente, regras essas que dispõem de instituições adequadas para as suas formulação e realização”, não se condicionando, portanto, ao mero alvedrio e às conveniências momentâneas, mesmo que coerentes e pertinentes.
Desta feita, cumprindo a função doutrinária de ponderação crítica das decisões jurisdicionais[4], de forma respeitosa e colaborativa, pretendemos pontuar alguns aspectos do julgado que, em nosso sentir, mereceriam maiores reflexões.
Contexto e advertência
Inicialmente, contudo, revela-se imperiosa uma contextualização histórico-comparativa.
O artigo 426 do Código Civil brasileiro de 2022, repetindo ipsis litteris o teor do artigo 1.089 da revogada lei de 1916, repele a validade em nosso ordenamento dos pactos hereditários, dispondo peremptoriamente que “não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”.
Ambos os preceitos, talvez pela severidade da nulidade infligida, nunca receberam da doutrina pátria um estudo pormenorizado, não sendo incomum que sequer conste nos manuais e nos comentários a informação que o gênero contrato sucessório abarca, na sedimentada classificação idealizada pelos Pós-Glosadores, 3 espécies, isto é, as avenças institutivas (que nomeiam herdeiro ou legatário), renunciativas (que veiculam a abdicação de vindouras participações hereditárias) e dispositivas (que transacionam futuros direitos mortis causa).[5]
Ademais, essa opção político-legislativa, assaz restritiva, jamais foi questionada, e, com mais razão, cotejada com as previsões constantes nas principais codificações, como, por exemplo, o Code Napoléon e os Códigos alemão, suíço e português, que não contemplam semelhante proibição geral e irrestrita (cada um da sua maneira, é bom que se diga).
Em 2018, no entanto, tal cenário ganhou novos contornos. Por qual motivo? Simples. Porque em 14 de agosto de 2018 foi editada em Portugal a Lei nº 48, que faculta a renúncia recíproca à condição de herdeiro legitimário (necessário) na convenção antenupcial.
A partir de então, alguns autores passaram a difundir entre nós fórmulas disfarçadas que, em verdade, objetivam atingir a mesma finalidade da lex lusitana em franco desprezo ao estuário normativo nacional, que, de fato, consagra um regramento obsoleto, mas que enquanto não for reformado, deveria ser observado.
Giza-se: a combinação da legítima sucessória do cônjuge (tão festejada quando do advento do codex de 2002, não esqueçamos) com a vedação in totum dos contratos mortis causa é, sem dúvida, deletéria para um planejamento hereditário que intente privilegiar principalmente os descendentes do autor da herança, mas, reiteramos, a solução para esse anacronismo dar-se-á por meio de regular alteração legislativa, como, aliás, ocorreu no inspirado direito português, e, apenas considerando o chamado civilismo lusófono, não se deve olvidar que o Código de Macau de 1999, desde o seu nascedouro, contempla idêntico mecanismo (artigo 1571º[6]).
Fundamentos do acórdão
No caso concreto, como anteriormente referenciado, a cláusula em discussão estipula a renúncia recíproca ao direito sucessório concorrencial, afastando da transmissão hereditária dos consortes a incidência do artigo 1.829, incisos I e II, do Código Civil.
Ao determinar o registro da convenção antenupcial, o voto vencedor, em síntese, sustentou que: a) os pacta corvina vetados pelo artigo 426 somente abrangeriam os ajustes institutivos, cuja sanção se basearia na restrição à liberdade de disposição mortis causa que eles acarretariam, bem como na sua imoralidade, ante o estímulo ao beneficiário em desejar o óbito do auctor successionis; b) tratar-se-ia de renúncia, negócio jurídico unilateral, inconfundível com o contrato (negócio jurídico bilateral); c) a codificação brasileira já reconhece excepcionalmente uma modalidade de pacto sucessório (partilha em vida); d) os pacta de non succedendo são previstos por vários diplomas estrangeiros (ex. Alemanha, Suíça, Itália, França e Portugal); e) nenhum dispositivo do Código explicitaria que a renúncia à herança só pode ser ultimada após a abertura da sucessão; f) o sucessor concorrente, diferentemente do herdeiro necessário, seria titular de uma “mera expectativa de fato”, e não de uma “expectativa de direito”; g) haveria proposta de lege ferenda que ambicionaria inserir tal permissão em nossa legislação.
Posição adotada
Para nós, a fundamentação exposta, data maxima venia, poderia ser contestada com os seguintes argumentos:
1 – o objeto jurídico ou conteúdo do negócio, que, nas palavras de Francisco Amaral[7] “compreende as determinações para a autorregulamentação dos respectivos interesses”, e que Antônio Junqueira de Azevedo[8] entende como o “fim que se manifesta na própria declaração”, não pode envolver, consoante o artigo 416 da lei civil, “a herança de pessoa viva”, não tendo o preciso e objetivo mandamento legal delimitado ou ao menos sugerido qualquer exceção à censura insculpida, que abarca indistintamente os pactos institutivos, renunciativos e dispositivos. Esse posicionamento, convém consignar, não encontra eco apenas entre a clássica doutrina do século 20 (ex. Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda e J. M. de Carvalho Santos), mas também entre diversos invulgares doutrinadores contemporâneos (ex. Cristiano de Sousa Zaneti, Custódio da Piedade Ubaldino Miranda, Flávio Tartuce, Anderson Schreiber e Sílvio de Salvo Venosa)[9]. O legislador pátrio, diferentemente do que se verifica em outros ordenamentos (ex. França, Itália, Suécia, Romênia e Argentina), não admitiu nenhuma hipótese exceptiva[10]. Por oportuno, tem-se que a partilha em vida, disciplinada pelo artigo 2.018 do Código Civil, na esteira de outros institutos estrangeiros, como a donation-partage francesa, não constitui exceção à proibição das avenças hereditárias, tratando-se de negócio jurídico entre vivos (e não mortis causa) de mera antecipação sucessória, tanto que a transferência patrimonial é imediata;
2 – a expressão pacta corvina, raramente utilizada na literatura estrangeira, é frequentemente mencionada nos escritos nacionais sem muita contemplação. Vejamos. De início, deve-se atentar que no direito romano, o receio do votum mortis, ou seja, a reprovável esperança na morte do autor da herança, fora apontado como justificativa para a vedação das avenças dispositivas, e não dos contratos designativos[11], como citado no aresto. Mas não é só. A posição jurídica do sucessor contratual em pouco se difere daquela ostentada pelo herdeiro necessário ou daquele instituído em testamento, não havendo, definitivamente, imoralidade alguma;
3 – parece-nos duvidoso classificar uma abdicação mútua entabulada no bojo de um pacto antenupcial como negócio jurídico unilateral. Curiosamente, em Portugal, a doutrina, de forma uníssona, qualifica a renúncia recíproca à condição de herdeiro legitimário do outro cônjuge como pacto renunciativo (negócio jurídico bilateral)[12];
4 – embora inexista na codificação brasileira preceito que expressamente desautorize a abdicação prévia à morte do auctor successionis e ao início do processo sucessório, como, por sinal, há no Código Civil alemão (§ 1946[13]), tal circunstância não potencializa o efeito expressado no voto, pois toda e qualquer renúncia, como adverte Fabiano Menke[14], “deve recair sobre direito existente, não sendo possível renunciar a direitos eventuais”. Não por outra razão, Emilio Betti[15] já vaticinava que a renúncia pressupõe que a favor do renunciante tenha ocorrido uma eficaz delação da herança, o que torna nula aquela firmada antes da abertura da sucessão. Entre nós, Zeno Veloso[16] igualmente aduzia ser “inválido o repúdio de herança de pessoa viva”, no que é acompanhado por José Fernando Simão[17], que a considera ato eivado de nulidade absoluta, pois “viola uma regra estrutural do sistema e que vem espelhada na vedação ao pacto sucessório (artigo 426 do CC)”.
5 – inexistem “direitos sucessórios concorrenciais”. Trata-se, efetivamente, de categoria jurídica inexistente. Como doutrina C. Massimo Bianca[18], “a noção de classe é determinante na sucessão legítima. A herança intestada se devolve por classes. As classes são concorrentes quando os sucessíveis de uma classe são chamados juntamente com os sucessíveis de outra (ex. cônjuge e descendente). As classes são prevalentes quando a chamada dos sucessíveis de uma exclui a chamada dos sucessíveis de outra (ex. os descendentes excluem os ascendentes)”. Portanto, o conceito de concorrência sucessória, ou melhor, de classes sucessórias concorrentes, volta-se tão-somente à identificação dos herdeiros do defunto, consoante a ordem de vocação hereditária estatuída pela lei, revelando-se incompreensível a distinção elaborada entre “sucessor concorrente” e “herdeiro necessário”, assim como a diferença entre “expectativa de fato” e “expectativa de direito”, pois, como leciona Rosa Maria de Andrade Nery[19], todo sucessor possui expectativa de direito (Anwartsrecht) de suceder, embora o herdeiro necessário (como o consorte), nos dizeres de Rabindranath Capelo de Souza[20], detém verdadeira “expectativa juridicamente titulada”;
6 – o cônjuge sobrevivente é herdeiro necessário (artigo 1.845), não podendo ser apartado da transmissão mortis causa sequer por testamento, e, com mais razão, por meio de convenção antenupcial, cujo artigo 1.655 do Código Civil veta a inserção de cláusula que contravenha disposição absoluta de lei;
7 – como bem citou o acórdão, vários ordenamentos acolhem a juridicidade do pacto sucessório renunciativo. Todavia, todos aqueles mencionados, bem como outros que poderiam ser lembrados (ex. Áustria; Catalunha), assim o fazem mediante expressa previsão legal;
8 – quanto à existência de proposição que albergaria o desiderato dos nubentes, como bem destacou o desembargador Beretta da Silveira em sua declaração de voto: “o próprio argumento de que há possibilidade de alteração legislativa para ser possível tal renúncia é dizer que hoje a lei não permite”.
Por isso, espera-se que a reforma do Código Civil brasileiro que se avizinha logre êxito em apresentar uma nova formatação da normatização sucessória, inclusive para se alinhar com o modelo preponderante no direito estrangeiro que há muito tempo abandonou a vedação integral dos negócios jurídicos bilaterais mortis causa.
[1] TJ/SP, Conselho Superior da Magistratura, Apelação Cível nº. 1007525-42.2022.8.26.0132, Rel. Des. Fernando Antonio Torres Garcia, j. 22.9.2023; TJ/SP, Conselho Superior da Magistratura, Apelação Cível nº. 1003090-14.2023.8.26.0577, Rel. Des. Fernando Antonio Torres Garcia, j. 30.11.2023.
[2] TJ/SP, Conselho Superior da Magistratura, Apelação Cível nº. 1000348-35.2024.8.26.0236, Rel. Des. Francisco Loureiro, j. 1º.10.2024.
[3] CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil: Introdução. Fontes do Direito. Interpretação da Lei. Aplicação das Leis no Tempo. Doutrina Geral. v.I. 4.ed. Coimbra: Almedina, 2016, p. 668.
[4] Idem, ibidem, p. 668.
[5] POLETTO, Carlos Eduardo Minozzo. Legítima Hereditária e Sucessão Contratual: Estudo Comparado da Autonomia Privada Sucessória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024, p. 229-230.
[6] Art. 1571º. Renúncia à qualidade de herdeiro legitimário. A convenção antenupcial pode, desde que com carácter de reciprocidade, conter a renúncia à qualidade de herdeiro legitimário dos cônjuges.
[7] AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 502.
[8] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico: Existência, Validade e Eficácia. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 32.
[9] POLETTO, Carlos Eduardo Minozzo. Legítima Hereditária e Sucessão Contratual: Estudo Comparado da Autonomia Privada Sucessória…ob. cit., p. 292-293.
[10] Idem, ibidem, p. 273-274.
[11] Idem, ibidem, p. 237.
[12] LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão. Direito das Sucessões. Coimbra: Almedina, 2021, p. 283.
[13] § 1946 Zeitpunkt für Annahme oder Ausschlagung. Der Erbe kann die Erbschaft annehmen oder ausschlagen, sobald der Erbfall eingetreten ist. Cf. RÖTHEL, Anne. Erbrecht. 18.ed. Munique: C. H. Beck, 2020, p. 215.
[14] MENKE, Fabiano. Do Negócio Jurídico in Comentários ao Código Civil: Direito Privado Contemporâneo. Coord. Giovanni Ettore Nanni. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 186
[15] BETTI, Emilio. Appunti di Diritto Civile. Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiane, 2017 p. 306-307.
[16] VELOSO, Zeno. Do Direito das Sucessões in Código Civil Comentado. Coord. Regina Beatriz Tavares da Silva. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 2034.
[17] SIMÃO, José Fernando. Do Direito das Sucessões in Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 1482.
[18] BIANCA, C. Massimo. Diritto Civile: Le Successioni. v.2.2. 5.ed. Milão: Giuffrè, 2015, p. 240-241.
[19] NERY, Rosa Maria de Andrade. Aspectos da Sucessão Legítima in O Novo Código Civil: Homenagem ao Professor Miguel Reale. Coord. Domingos Franciulli Neto, Gilmar Ferreira Mendes e Ives Gandra da Silva Martins Filho. 2.ed. São Paulo: LTr, 2005, p. 1427.
[20] SOUZA, Rabindranath Capelo de. Lições de Direito das Sucessões. v.I. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 141-142.
Fonte: Conjur
Deixe um comentário