1. Resumo
Começamos por resumir as principais ideias deste artigo:
Este artigo parte de didático artigo escrito pelo professor Pablo Stolze Gagliano acerca do prazo prescricional das pretensões dos segurados contra a seguradora no ambiente que se inaugurará com a entrada em vigor do marco legal dos seguros – lei 15.040/24.
O marco legal dos seguros pecou em drenar do CC as regras civis de seguro, seja por rebaixar o status normativo desse importante contrato, seja por ter mantido várias outras leis sobre seguros, seja não ter tido nenhum ganho sistemático-axiológico: O deslocamento geográfico da disciplina civil dos contratos, em nada, alterará a função interpretativa e integrativa dos princípios e das normas abertas do CC (capítulo 3).
Três diretrizes interpretativas devem ser observadas em relação ao marco legal dos seguros: (a) Prestígio ao que foi contratado ou legislado com clareza; (b) in dubio pro inertia; e (c) in dubio pro misero (capítulo 4).
Até antes da entrada em vigor do marco legal dos seguros, ao acontecer o sinistro, o segurado tem o prazo prescricional de um ano para pleitear a cobertura (art. 206, § 1º, do CC1). Esse prazo prescricional fica suspenso durante o que chamamos de procedimento administrativo de regulação e liquidação do sinistro (que se inicia com o aviso do sinistro e que se destina a apurar o cabimento e o valor da cobertura securitária). É a súmula 229/STJ. Desconhecemos julgados sobre nova suspensão do prazo prescricional diante de eventual pedido administrativo de reconsideração: Defendemos o cabimento. Há um precedente da 3ª turma que perfilha uma corrente mais favorável ao segurado: O termo inicial da prescrição seria a ciência, pelo segurado, do desfecho desfavorável do procedimento administrativo de regulação e liquidação do sinistro, e não a data da ciência do sinistro (capítulo 5.1.).
Após a entrada em vigor do marco legal dos seguros, o ambiente legal é, no geral, mais favorável ao segurado, embora, no geral, decorra do objetivo de positivar o que era admitido pela jurisprudência anterior, com adoção da corrente jurisprudencial alternativa supracitada, inaugurada por um julgado da 3ª turma do STJ (capítulo 5.2.1.).
A prescrição da pretensão do segurado contra a seguradora é de um ano da ciência da recusa administrativa da seguradora, ou seja, da ciência do desfecho desfavorável do procedimento administrativo de regulação e liquidação do sinistro (art. 126, II, marco legal dos seguros). Eventual pedido de reconsideração suspenderá o prazo prescricional até a ciência de seu indeferimento, vedada nova suspensão do prazo diante de posteriores pedidos de reconsideração (art. 127, marco legal dos seguros) (capítulo 5.2.3.4.).
No caso de desfecho favorável do procedimento administrativo de regulação e liquidação do sinistro, a prescrição para a cobrança da cobertura securitária reconhecida administrativamente é de 10 anos, a contar de 30 dias da data da ciência, pelo segurado, da decisão favorável (art. 205, CC; e art. 87, marco legal dos seguros) (capítulo 5.2.3.2.).
No caso de extrapolação do prazo máximo legal de processamento do procedimento administrativo sem resposta da seguradora (hipótese em que haverá um deferimento tácito do pedido – sunset clause), o prazo prescricional para o segurado cobrar a cobertura é de 10 anos (art. 205, CC). O termo inicial será o 31º dia seguinte à consumação desse prazo máximo de processamento. Esse prazo máximo de processamento será de 30 dias ou, se houver ato da Susep, de até 120 dias, os quais devem ser somados aos períodos em que esses prazos tenham sido suspensos por conta de pedidos de complementação de documentos na forma dos §§ 2º a 4º do art. 86 do marco legal dos seguros (arts. 86 e 87, marco legal dos seguros) (capítulo 5.2.3.3.).
Inexiste prazo prescricional ou decadencial contra o segurado antes do término desfavorável do procedimento administrativo de regulação do sinistro. Logo, em tese, o segurado tem o direito potestativo a deflagrar esse procedimento muitos anos depois do sinistro. Todavia, a demora culposa ou dolosa em comunicar o sinistro pode vir a acarretar a perda total ou integral da cobertura, desde que tenha havido prejuízo à seguradora (art. 66, II e §§ 1º a 4º, marco legal dos seguros). O único esforço doutrinário em tentar colocar limite temporal a isso seria forçar a aplicação analógica do prazo prescricional de 10 anos do art. 205 do CC, o que nos parece afrontar a vontade deliberada do legislador, bem como as diretrizes interpretativas que indicamos acima (capítulos 5.2.2.1. e 5.2.3.1.).
Em regra, temos por nula cláusula que fixe prazo decadencial para o segurado realizar o aviso de sinistro, salvo em contratos de seguro paritários e simétricos (capítulo 5.2.2.2.).
O prejuízo da seguradora com a demora na comunicação do sinistro (aviso de sinistro) consiste no eventual apagamento, pelo tempo, dos rastros probatórios de eventual “golpe do seguro” ou de fatos indispensáveis ao eventual direito de regresso da seguradora contra o terceiro culpado pelo sinistro no caso de seguro de dano (capítulo 5.2.4.2.1.).
A ciência, pela seguradora, do sinistro por outro meio torna irrelevante a demora do segurado em efetuar o aviso do sinistro (art. 66, § 3º, marco legal dos seguros). Essa hipótese, porém, deve ser interpretada restritivamente para abranger apenas comunicações específicas feitas por terceiros. O mero fato de o sinistro ter repercutido na mídia não é suficiente (capítulo 5.2.4.2.2.).
Não basta a existência de prejuízo à seguradora para eventual perda total ou parcial do seguro. É também preciso que o segurado tenha agido com dolo ou com culpa nessa demora. E, a depender do tipo do elemento anímico, a consequência será a perda total ou parcial do direito à cobertura (capítulo 5.2.4.3.).
Se houver dolo do segurado na demora em comunicar o sinistro, haverá a perda total do direito à cobertura (art. 66, § 1º, CC), ressalvado o dever de restituir a reserva matemática. Não se trata de qualquer dolo, mas o de apagar os rastros probatórios sobre eventual “golpe do seguro” ou culpa de terceiro vinculado ao segurado. O ônus de provar esse dolo é da seguradora, observado, porém, o dever de colaboração probatória do segurado a pedido da seguradora (capítulo 5.2.4.3.1.).
Se houver culpa (e não dolo) do segurado na demora em comunicar o sinistro, haverá a perda apenas do direito à cobertura dos danos causados pela omissão (art. 66, § 2º). É da seguradora o ônus probatório em demonstrar que o dano poderia ter sido evitado caso ela tivesse sido comunicada do sinistro logo após a ciência do segurado (evitabilidade do dano) (capítulo 5.2.4.3.2.).
Em contratos paritários e simétricos – os quais geralmente ocorrem nos casos de seguros para cobertura de grandes riscos -, são lícitas cláusulas relativas ao ônus probatório e a prazos decadenciais para o aviso do sinistro. É nula, porém, cláusula que altere o prazo prescricional (capítulos 5.2.2.2. e 5.2.4.4.).
No caso de pretensão de terceiro beneficiário contra a seguradora, o prazo prescricional foi reduzido pelo marco legal dos seguros de 10 anos para três anos, contados da ciência do fato gerador. Não se aplicam contra o terceiro beneficiário os deveres de comunicação imediata do sinistro, sob pena de perda total ou parcial da cobertura (capítulos 5.1. e 5.4.).
No caso de desfecho do procedimento administrativo de regulação e liquidação do sinistro envolvendo pleito do terceiro beneficiário, o prazo prescricional voltará a fluir: (a) Com a ciência, pelo segurado, da recusa da seguradora; ou (b) no 31º dia seguinte à ciência, pelo segurado, da decisão favorável (capítulo 5.2.).
Se a seguradora extrapolar o prazo máximo de processamento do procedimento administrativo de regulação e liquidação do sinistro envolvendo pleito do terceiro beneficiário, haverá o deferimento tácito do pedido (sunset clause) e o prazo prescricional voltará a fluir no 31º dia seguinte à consumação desse prazo máximo (capítulo 5.3.).
Sem prévia tentativa extrajudicial de recebimento da cobertura, falta interesse de agir ao terceiro beneficiário para a cobrança judicial. O juiz, porém, deixará de extinguir o feito se a seguradora vier a se insurgir contra o pleito na contestação, por conta da superveniência do interesse de agir. Entendemos que haverá interesse de agir quando o prazo prescricional trienal estiver perto do fim, mas, se a seguradora reconhecer o pedido na contestação, o terceiro beneficiário é que terá de suportar os ônus sucumbenciais (capítulo 5.5.).
2. Introdução
O Professor Pablo Stolze Gagliano, com o didatismo e o talento que o caracteriza, enfrentou um tema importantíssimo: O prazo prescricional de pretensões do segurado e do terceiro beneficiário contra a seguradora2.
Fê-lo, comparando o cenário atual com o ambiente que se descortinará em dezembro deste ano (2025), com a entrada em vigor do marco legal dos seguros – lei 15.040/24.
No presente artigo3, partiremos das incensuráveis reflexões do genial civilista baiano para enfrentar duas questões extremamente sensíveis: Qual é o prazo para o segurado comunicar o sinistro para a seguradora? E qual é a consequência da não observância desse prazo?
3. Deslocamento geográfico da disciplina dos seguros e a impropriedade do nome de batismo da nova Lei
Temos que o marco legal dos seguros – lei 15.040/24 comete um pecado grave: arranca do CC a disciplina de contrato de seguro. Ele revoga todos os dispositivos do Código sobre seguros. Segue caminho diverso do que foi proposto no anteprojeto de reforma do CC pela comissão de juristas do Senado Federal, a qual promovia alterações no próprio CC4.
Parece-nos um grave equívoco, porque o CC representa a centralidade normativa do ordenamento privado. Matérias nele tratadas desfrutam de igual centralidade. Nesse ponto, lembramos estas didáticas palavras do jurista italiano Sandro Schipani na sua consagrada obra “El sistema jurídico romanístico y los Código Modernos”:
(…) Sem dúvida, nunca nos tempos modernos o código foi expressão da totalidade do direito produzido pelas leis de um Estado (…). Com efeito, o código só é o lugar onde foi fixado o núcleo mais sistematicamente ordenado do Direito, e constitui o centro ao redor do qual o sistema se torna estável, com a ajuda da doutrina, no marco de um trabalho de aprimoramento contínuo.5
O marco legal dos seguros jogou a disciplina civil dos contratos para uma posição periférica do ordenamento, como mais uma das várias leis que orbitam ao redor do Código. Talvez essa mudança geográfica acabará por repercutir no próprio estudo da matéria, visto que a grade curricular dos cursos de Direito (e até os editais de concursos públicos) costuma focar o CC e nem sempre incursiona na legislação extravagante.
Enfim, o contrato de seguros – que é um dos mais importantes da nossa sociedade – não mais integra o núcleo do planeta do Direito Privado e passou a enfileirar-se entre os vários satélites que o orbitam.
Mas o deslize não está apenas nesse rebaixamento de status do contrato de seguros, até porque o mais importante é a aplicação prática das leis.
O pecado está no fato de que a nova lei, apesar de ostentar o apelido de marco legal, limitou-se a disciplinar alguns aspectos de Direito Civil do contrato de seguro, sem, porém, reunir outros aspectos do tema. Portanto, a nova lei coexistirá com outras leis que disciplinam o contrato de seguro (ainda que em relação a aspectos de Direito Administrativo Regulatório ou a espécies próprias de seguros).
Assim, seguem em vigor outras leis que também tratam do contrato de seguro: A lei das seguradoras – decreto-lei 73/66, a lei do seguro DPVAT – lei 6.194/74, o decreto-lei 2.063/40. A falta de uma lei única aumenta riscos de contradições e dificulta a sistematicidade da regulamentação.
Portanto, até mesmo o nome de batismo “marco legal dos seguros” não se revela adequado para a nova lei – lei 15.040/24. Além disso, esse nome contrasta com o nome de batismo do decreto-lei 73/66 (conhecido como lei das seguradoras). Seja como for, o epíteto “marco legal dos seguros” grassou no meio jurídico durante a tramitação do processo legislativo, razão por que convém dar continuidade ao apelido para evitar confusões terminológicas.
Por fim, há mais um fato que também demonstra o pecado do marco legal dos seguros em extrair do CC a disciplina do tema. É que, do ponto de vista axiológico-normativo, nada absolutamente mudará.
Explica-se.
Nos corredores dos ambientes jurídicos, costumam ouvir-se críticas (muitas vezes, exageradas) de que o Poder Judiciário agiria com forte intervencionismo nos contratos, frustrando a autonomia privada e a previsibilidade das partes. E um dos culpados disso seria o fato de que o CC teria se valido de conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas abertas. Assim, sob a lógica desse zunido de corredores jurídicos, uma saída seria retirar do CC a disciplina de determinados conteúdos.
Trata-se de infundado raciocínio. Além de muitas das críticas de intervencionismo serem descabidas – ao menos pelo que podemos observar da razoabilidade e temperança própria dos julgados do STJ -, a verdade é que o CC é o planeta ao redor do qual orbitam as leis privadas extravagantes. Por isso, todos os princípios, cláusulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados do CC exercem determinante força gravitacional sobre as leis extravagantes. Isso significa que o deslocamento geográfico da disciplina civil dos contratos, em nada, alterará a função interpretativa e integrativa dos princípios e das normas abertas do CC.
Aliás, é importante lembrar que o próprio CC/02, quando de seu nascimento, foi elogiado pela comunidade jurídica, conforme registra o professor Flávio Tartuce no volume 3 de sua coleção:
Quanto ao contrato de seguro e ao CC/02, lembram Jones Figueirêdo Alves e Mário Delgado que “as mudanças do CC relativas aos contratos securitários foram consideradas positivas durante o III Fórum de Direito do Seguro, promovido pelo IBDS – Instituto Brasileiro de Direito do Seguro, em São Paulo (nov. 2002). Juristas brasileiros e estrangeiros que compareceram ao seminário jurídico demonstraram entusiasmo com as cláusulas gerais e com os princípios do Código, segundo afirmou o presidente do IBDS, Ernesto Tzirulnik. Em sua avaliação, ‘foi unânime durante o evento que o novo Código é um passo enorme para a modernidade. Com ele, agora é possível ter uma lei de seguro moderna’ (…)”6.
Confira na íntegra a coluna.
___________________
1 Art. 206. Prescreve:
§ 1º Em um ano:
I – A pretensão dos hospedeiros ou fornecedores de víveres destinados a consumo no próprio estabelecimento, para o pagamento da hospedagem ou dos alimentos;
II – A pretensão do segurado contra o segurador, ou a deste contra aquele, contado o prazo: Disponível aqui. Disponível aqui.
a) para o segurado, no caso de seguro de responsabilidade civil, da data em que é citado para responder à ação de indenização proposta pelo terceiro prejudicado, ou da data que a este indeniza, com a anuência do segurador;
b) quanto aos demais seguros, da ciência do fato gerador da pretensão.
2 GAGLIANO, Pablo Stolze. A lei 15.040/24 (marco legal dos seguros) e a prescrição. Disponível aqui. Publicado em 6/1/25.
3 Este artigo também foi desenvolvido no contexto do estágio pós-doutoral em Direito Civil que este autor tem realizado na USP, sob a supervisão do professor doutor Eduardo Tomasevicius Filho.
4 Disponível aqui.
5 Tradução livre de excerto extraído de: SCHIPANI, Sandro. El sistema jurídico romanístico y los Código Modernos. Fondo Editorial: Lima/Peru, 2015.
6 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Teoria geral dos contratos e contratos em espécie. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 662.
Fonte: Migalhas
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