Na parte final aborda-se a constitucionalidade das medidas expropriatórias extrajudiciais e as condições impostas pelo STF na julgamento das ADIns 7.600-7.601-7.608

Alienação fiduciária: Inovações legislativas e alterações jurisprudenciais – Parte final – A constitucionalidade da expropriação extrajudicial

A celeridade e a eficiência na recuperação de créditos são pilares para a saúde do sistema financeiro. Nesse contexto, a expropriação extrajudicial, que permite ao credor fiduciário reaver o bem dado em garantia sem a necessidade de uma prolongada intervenção judicial, tem sido um mecanismo amplamente adotado e, recentemente, reafirmado em sua constitucionalidade pelo STF, mesmo com a introdução de novas modalidades pela lei 14.711/23, conhecida como “Marco Legal das Garantias”.

1. A tendência da desjudicialização e o posicionamento histórico do STF

O movimento de desjudicialização de procedimentos executivos visa a reduzir a sobrecarga do Poder Judiciário, transferindo certas etapas para a esfera administrativa ou cartorária, sempre com a premissa de que o acesso à justiça e a garantia do devido processo legal sejam preservados.

O STF já havia consolidado a constitucionalidade de procedimentos extrajudiciais anteriores à lei 14.711/23. O ministro Dias Toffoli, em seu voto nas ADIns 7.600, 7.601 e 7.608 – Ementa do RE 627.106 (Tema 249) relembra essa jurisprudência, citando:

“É constitucional, pois foi devidamente recepcionado pela Constituição Federal de 1988, o procedimento de execução extrajudicial previsto no Decreto-lei nº 70/66”

E também o RE 860.631 (Tema 982), que validou a execução extrajudicial da alienação fiduciária de bens imóveis prevista na lei 9.514/1997, destacando que:

“A execução extrajudicial nos contratos de mútuo com alienação fiduciária de imóvel, prevista na Lei 9.514/1997, é compatível com as garantias constitucionais, destacando-se inexistir afronta ao princípio da inafastabilidade da jurisdição e do acesso à justiça (art. 5º, inciso XXXV, da CF/88) e do juiz natural (art. 5º, LIII, CF/88), posto que se assegura às partes, a qualquer momento, a possibilidade de controle de legalidade do procedimento executório na via judicial.”

Essa linha de raciocínio é a base para a análise das novas previsões da lei 14.711/23.

2. O marco legal das garantias (lei 14.711/23) e o debate constitucional no STF

A lei 14.711/23 trouxe importantes inovações que ampliaram as possibilidades de execução extrajudicial, alcançando:

  • Alienação fiduciária de bens móveis: Introduziu o procedimento extrajudicial de consolidação da propriedade (art. 8º-B do decreto-lei 911/1969) e de busca e apreensão (art. 8º-C do decreto-lei 911/1969).
  • Créditos garantidos por hipoteca: Estabeleceu um novo procedimento de execução extrajudicial (art. 9º da lei 14.711/23), revogando o anterior do decreto-lei 70/1966.
  • Garantia imobiliária em concurso de credores: Previu a gestão extrajudicial da ordem de prioridade de créditos (art. 10 da lei 14.711/23).

As ADIns – Ações Diretas de Inconstitucionalidade 7.600, 7.601 e 7.608 questionaram esses novos institutos, alegando violação a princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a inafastabilidade da jurisdição, a reserva de jurisdição, e o direito de propriedade.

2.1. O voto do relator, ministro Dias Toffoli: A constitucionalidade com salvaguardas

O ministro Dias Toffoli, relator das ADIns, defendeu a constitucionalidade dos procedimentos extrajudiciais instituídos pela lei 14.711/23. Seu argumento central é que essas inovações se inserem na tendência de desjudicialização já validada pelo STF, e que o acesso ao Poder Judiciário para dirimir controvérsias ou reprimir ilegalidades permanece garantido ao devedor.

Para o ministro Toffoli, os procedimentos administrativos desenvolvidos pelos oficiais de registro, como a notificação e a averbação da consolidação da propriedade, são atos que dispensam a intervenção judicial, salvo em caso de ameaça de violação de direitos.

Ele afirmou que os atos atribuídos ao oficial registrador têm natureza meramente administrativa e que “Nada há nesses atos, em princípio, que sugira a necessidade de atuação do Poder Judiciário”.

ADI7600-ADI7601-ADI7608-Voto-Dias-Toffoli:

“Os atos atribuídos ao oficial registrador têm natureza meramente administrativa. Ele realiza comunicações, faz um juízo administrativo sobre o não cabimento da dívida e averba a consolidação da propriedade, conforme o caso. Nada há nesses atos, em princípio, que sugira a necessidade de atuação do Poder Judiciário. A averbação da consolidação da propriedade dispensa a intermediação judicial, correspondendo ao atesto da circunstância objetiva de ausência de quitação da dívida pelo devedor, o que pode ser realizado por agente imparcial dotado de fé pública, dispensando-se a intermediação judicial, em prol da celeridade e da eficiência na recuperação de bens móveis dados em garantia, em benefício dos credores e dos bons devedores, que são aqueles que não se furtam de cumprir suas obrigações.”

No entanto, o relator impôs uma interpretação conforme a CF aos §§ 4º, 5º e 7º do art. 8º-C do decreto-lei 911/1969 (que tratam da busca e apreensão extrajudicial de bens móveis). Essa interpretação visa a assegurar que, nas diligências para localização e apreensão do bem, sejam respeitados os direitos fundamentais do devedor, como:

  • Vida privada, honra e imagem.
  • Inviolabilidade do sigilo de dados (só dados públicos ou fornecidos pelo devedor).
  • Vedação ao uso privado da violência.
  • Inviolabilidade do domicílio (exigindo ordem judicial para entrada forçada).
  • Dignidade da pessoa humana e autonomia da vontade (vedando uso de força física ou psicológica).

A tese proposta pelo ministro Dias Toffoli, que veio a prevalecer no julgamento, sintetiza esse entendimento:

ADI7600-ADI7601-ADI7608-Voto-Dias-Toffoli.Proposta de Tese

“1. São constitucionais os procedimentos extrajudiciais instituídos pela Lei nº 14.711/23 de consolidação da propriedade em contratos de alienação fiduciária de bens móveis, de execução dos créditos garantidos por hipoteca e de execução da garantia imobiliária em concurso de credores.

2. Nas diligências para a localização do bem móvel dado em garantia em alienação fiduciária e em sua apreensão, previstas nos §§ 4º, 5º e 7ºdo art. 8º-C do Decreto-Lei nº 911/69 (redação da Lei nº 14.711/23), devem ser assegurados os direitos à vida privada, à honra e à imagem do devedor; a inviolabilidade do sigilo de dados; a vedação ao uso privado da violência; a inviolabilidade do domicílio; a dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade.”

2.2. O voto da ministra Cármen Lúcia: A divergência em prol da reserva de jurisdição

A ministra Cármen Lúcia, por sua vez, divergiu do relator e votou pela inconstitucionalidade dos arts. 6º, 9º e 10 da lei 14.711/23. Seu argumento principal baseou-se na cláusula constitucional de reserva de jurisdição, defendendo que atos de busca e apreensão e de indisponibilidade de bens, por implicarem forte intervenção na esfera de direitos do indivíduo, exigem, em regra, autorização judicial.

A ministra Cármen Lúcia ressaltou que as normas impugnadas, ao permitirem a busca, apreensão e alienação de bens por procedimento que tramita em serventia extrajudicial, sem submeter-se ao controle prévio do Poder Judiciário, contrariam a CF. Ela citou precedentes do STF que já haviam reconhecido a reserva de jurisdição para medidas coercitivas, como a ADIn 1.668 (que declarou inconstitucional a atribuição à ANATEL de realizar busca e apreensão sem ordem judicial).

ADI7600-ADI7601-ADI7608-Voto-Carmen-Lucia.

“Na espécie vertente, as normas impugnadas, ao permitirem a busca, apreensão e alienação de bens de propriedade ou sob posse direta do devedor, por procedimento que tramita em serventia extrajudicial, sem submeter-se ao controle do Poder Judiciário, contrariaram a Constituição da República e, por isso, devem ser declaradas inconstitucionais.”

2.3. Síntese da decisão plenária do STF

A decisão plenária do STF, ao julgar as ADIns 7.600, 7.601 e 7.608, consolidou o entendimento pela constitucionalidade dos institutos previstos na lei 14.711/23, que regulamentam procedimentos extrajudiciais para a execução de créditos.

Em resumo, a Corte decidiu que:

“São constitucionais os institutos previstos nos arts. 8º-B ao 8º-E do Decreto nº 911/1969, incluídos pela Lei nº 14.711/2023 (Marco Legal das Garantias), e no procedimento de busca e apreensão extrajudicial previsto nos parágrafos do art. 8º-C devem ser adotadas, obrigatoriamente, as devidas cautelas para evitar graves violações aos direitos fundamentais do devedor.”

A Suprema Corte alinhou-se à tendência global de desjudicialização da execução, visando a aliviar a sobrecarga do Poder Judiciário. Assim, afastou as alegações de violação aos princípios da inafastabilidade da jurisdição, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, uma vez que o pleno acesso ao Poder Judiciário permanece assegurado ao devedor.

Além disso, a possibilidade de defesa prévia na esfera administrativa, incluindo a purgação da mora antes da consolidação da propriedade ou da adoção de medidas como a busca e apreensão, é garantida.

“Conforme jurisprudência desta Corte (1), são constitucionais as medidas de execução extrajudicial de créditos – como as previstas no Marco Legal das Garantias -, de modo que devem ser afastadas as alegações de violação aos princípios da inafastabilidade da jurisdição, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, pois o pleno acesso ao Poder Judiciário permanece assegurado ao devedor.

Ademais, é garantida a possibilidade de defesa prévia na esfera administrativa, inclusive com a purgação da mora antes da consolidação da propriedade ou da adoção de medidas como a busca e apreensão do bem dado em garantia.”

A decisão, proferida por maioria, resultou na interpretação conforme a CF dos §§ 4º, 5º e 7º (expressão “apreendido o bem pelo oficial da serventia extrajudicial”) do art. 8º-C do decreto-lei 911/1969, com a redação conferida pela lei 14.711/23. Isso significa que, nas diligências para a localização e apreensão do bem móvel dado em garantia em alienação fiduciária, devem ser assegurados os direitos e garantias constitucionais do devedor, já elencados na tese firmada.

“Com base nesses e em outros entendimentos, o Plenário, em apreciação conjunta e por maioria, julgou parcialmente procedentes as ações para conferir interpretação conforme a Constituição aos §§ 4º, 5º e 7º (expressão “apreendido o bem pelo oficial da serventia extrajudicial”) do art. 8º-C do Decreto-Lei nº 911/1969, com a redação conferida pela Lei nº 14.711/2023, de modo que, nas diligências para a localização do bem móvel dado em garantia em alienação fiduciária e em sua apreensão, devem ser assegurados os direitos e garantias constitucionais elencados na tese anteriormente citada, fixada também por maioria.”

Os precedentes que sustentam essa posição incluem julgados anteriores da Corte, como o RE 223.075, AI 509.379 AgR, AI 600.876 AgR, RE 513.546 AgR, RE 627.106 (Tema 249 RG) e RE 860.631 (Tema 982 RG).

3. As condições para a validade da expropriação extrajudicial: A necessidade de estrita observância formal

Apesar da reafirmação da constitucionalidade dos procedimentos extrajudiciais pelo STF (seguindo o voto do relator), é crucial entender que essa validade está condicionada à rigorosa observância de todas as formalidades e requisitos legais. Qualquer vício procedimental pode levar à anulação da expropriação pela via judicial, evidenciando que o controle do Poder Judiciário, mesmo que a posteriori, permanece como uma salvaguarda essencial.

A sentença da Justiça Federal da 1ª Região, na ação de procedimento comum cível 1002560-45.2024.4.01.3506, ilustra precisamente essa condição. Nesse caso, a autora buscou a anulação da consolidação da propriedade fiduciária e do procedimento de execução extrajudicial de um imóvel. O juiz Federal reconheceu a procedência dos pedidos, declarando a nulidade do procedimento em decorrência de “vício insanável”: a falta de comprovação da intimação pessoal da parte autora para purgar a mora.

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“A controvérsia cinge-se à verificação da regularidade da intimação da parte autora para purgação da mora. A CEF alega, em contestação, que houve a devida notificação. Contudo, não apresentou qualquer documento que comprove o cumprimento da formalidade essencial prevista no art. 26 da Lei nº 9.514/1997.”

“A inércia da CEF, nesse ponto, atrai a incidência do art. 373, II, do CPC, impondo-lhe o ônus da prova quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da parte autora. Assim, reputam-se verdadeiros os fatos narrados na exordial. A ausência de prova inequívoca da intimação pessoal invalida o procedimento de consolidação da propriedade fiduciária e, por conseguinte, todos os atos posteriores, inclusive os leilões eventualmente realizados.”

Essa decisão reitera a necessidade de que os credores e os agentes extrajudiciais sigam estritamente os ditames legais, especialmente no que tange às notificações, que garantem ao devedor o direito de purgar a mora e de acompanhar todas as etapas do processo. A constitucionalidade do procedimento extrajudicial não o torna imune à revisão judicial quando comprovadas falhas que violem o devido processo legal em sua esfera administrativa.

Conclusão

A decisão do STF, ao validar a constitucionalidade da expropriação extrajudicial nos termos da lei 14.711/23, reforça a tendência de desjudicialização e a busca por maior eficiência na recuperação de créditos no Brasil. Contudo, essa validação não é irrestrita.

O voto do ministro Dias Toffoli, ao impor salvaguardas e uma “interpretação conforme a Constituição”, especialmente para a busca e apreensão de bens móveis, sinaliza a importância de proteger os direitos fundamentais em um ambiente extrajudicial. A divergência da ministra Cármen Lúcia, embora minoritária, serve como um alerta contínuo sobre a necessidade de se preservar a reserva de jurisdição para atos que impliquem profunda restrição de direitos.

Em última análise, a expropriação extrajudicial, embora reconhecida como mecanismo válido e constitucional, exige uma vigilância constante por parte do Poder Judiciário e uma observância meticulosa das formalidades legais por parte dos agentes envolvidos. Somente assim será possível conciliar a desejada celeridade na recuperação do crédito com a inafastável proteção dos direitos e garantias individuais do devedor.

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ADI 7601 – Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6846515

ADI 7608 – Disponivel em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6865956

ADI 7600 – Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6845229

Fonte: Migalhas

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